Pentecostes
e Migração
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Três coisas chamam a atenção na liturgia da Solenidade do Pentecostes: o
própro relato do Livro dos Atos dos Apóstolos (At 2,1-11), o paralelo com o
episódio da Torre de Babel (Gn 1,1-9) e a conexão com a imagem da Carta de São
Paulo aos Romanos (Rm 8,22-27).
Barulho, vento forte e fogo. Em várias partes das Sagradas Escrituras, a teofania (manifestação de
Deus) vem associada às imagens do silêncio, da brisa suave ou da luz. No relato
do Livro dos Atos dos Apóstolos, porém, o autor sublinha o fragor ou barulho, o
vento forte e as línguas de fogo. De fato, o grupo embrionário da Igreja, após
o medo, o fracasso, a frustação e a impotência diante do fim trágico na cruz,
fecha-se hermeticamente sobre si mesmo. No episódio dos discípulos de Emaús
assistimos à tristeza e à fuga. Aqui vemos a “comunidade” cerrada a qualquer
contato. O barulho, o vento forte e o fogo parecem indicar que o Espírito de
Deus vem sacudir o torpor dos seguidores de Jesus, restituir-lhes a coragem
para que abram as portas e se ponham a caminho. O mesmo faz o Espírito, por
exemplo, no Concílio Ecumênico Vaticano II, na Assembleia dos bispos da América
Latina e Caribe, em Aparecida. Em síntese, sempre que a sociedade e a Igreja
ameaçam parar no tempo, congelar-se em fórmulas e instituições rígidas e fixas,
fossilizar-se – o Espírito de Deus irrompe para quebrar as cadeias, as
fortalezas, as alianças espúrias e resgatar a fluidez viva e dinâmica do tempo.
Vemos isso no fluxo e refluxo dos migrantes que, com teimosia e tenacidade,
buscam alternativas de vida?
Torre de Babel e Pentecostes. Em nosso imaginário, torre remete a riqueza, domínio e poder. No caso do
Livro do Gênesis representa também a cidade em contraste com o compo, este
sendo obrigado a manter aquela atrvés de pesados impostos. A imagem nos diz que
o egoísmo de uma minoria prevalece sobre a responsabilidade de buscar o bem
comum de toda a população. Daí que, embora falem a mesma língua, a comunicação
torna-se impossível. Os interesses são diferentes, opostos e até conraditórios.
Quanto mais alta a torre, ou quanto maior a distância entre a base e o topo da
pirâmide social na sociedade moderna e urbanizada, mais difícil o entendimento.
É nítido o contraste com o relato do Pentecostes nos Atos dos Apóstolos. Neste
caso, com a vinda do Espírito, respira-se o clima alegre e caloroso da Boa Nova
de Jesus Cristo. Embora provenientes de regiões, povos e línguas distintas,
todos os presentes entendem a comunicação dos Apóstolos, pois estes falam a
linguagem do amor. A essa fraternidade ou cidadania universal nos convidam os
migrantes, com seus desafios ao encontro e ao interculturalismo!
A criação geme e sofre de dores de parto. O Espírito de vida sobrepõe-se ao espírito de morte.
Cada pessoa, juntamente com toda a criação, é convidada a renascer. Nascimento
e renascimento pressupõem dor, sofrimento, perda, renúncia – em vista de uma
vida com horizontes infinitivamente mais amplos. Por isso é que “os sofrimentos
do momento presente não se comparam com a glória futura que deverá ser relelada
em nós”, afirma o apóstolo Paulo. Aqui também a irrupção de Deus surpreende a
história. Enquanto esta tende à inércia e a uma acomodação petrificada, o
Espírito subverte seus alicerces para revelar o dinamismo de uma criação que
continua a evoluir. O tempo de Deus (kairós)
toma o lugar do tempo dos tiranos e tiranias. O curso da trajetória
humano-divina ou divino-humana permanece aberto a alternativas inovadoras. Os
migrantes em movimento reabrem fronteiras cerradas e põem em marcha a própria
história!
Roma,
Itália, 8 de junho de 2014, Solenidade de Pentecostes
Em que órbita nos movemos?
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, CS
São variadas as
órbitas que cruzam e recruzam a complexa rede de caminhos, escolhas e
alternativas da vida humana. Um inextrincável labirinto formado de medos e
dúvidas, buscas e interrogações, desertos e encruzilhadas. Em qual dessas
órbitas nos movemos? Talvez não seja esta a pergunta mais correta, uma vez que,
em maior ou menor grau, cedo ou tarde, não podemos deixar de circular em todas
as órbitas. Cumpre, pois, corrigir a pergunta: qual dessas órbitas
privilegiamos, qual delas é a mais batida por nossos pés frágeis, ansiosos e cansados? Somos capazes de
distinguir, entre elas, o que é essencial daquilo que é secundário? Na breve
trajetória de nossa existência, única e irrepetível, chegamos a descobrir a via
justa?
Órbita do sucesso
A resposta a tais
questionamentos exige, antes de prosseguir, que se lance alguma luz sobre as
diferentes órbitas que a travessia existencial nos oferece. Uma das primeiras é
a órbita do sucesso. Quem não o deseja para si e para seus familiares e amigos?
E quem não o procura com todas as forças a seu alcance? Mas o sucesso tem suas
armadilhas. Quando absolutizado, engendra um egocentrismo doentio e exacerbado.
A experiência mostra que quem é movido a aplausos, elogios e incenso está
condenado a oscilar irremediavelmente na corda bamba, entre altos e baixos. Se
hoje se encontra lá em cima, em evidência nas páginas de jornais e revistas e
na tela da televisão, amanhã poderá ser condenado a morder o pó da terra, pois
o fracasso e a desilusão representam o
outro lado da moeda. Como a mentira, também o sucesso tem vida curta.
Prova disso são as
estrelas do cinema e do esporte: brilham intensamente, mas se apagam na noite
dos tempos. O resultado é que holofotes, câmeras e microfones não nos sustentam
a longo prazo. E ainda por cima costumam nos tornar cegos, míopes e surdos às
possíveis críticas. De fato, as estrelas não costumam prestar atenção às “aves
de mal agouro”, além de não conversarem entre si nem com os planetas. O certo é
que os meios de comunicação social – a mídia – ao mesmo tempo que erguem
estátuas e as iluminam, com a mesma rapidez e indiferença as reduzem a sombras
e escombros, ruínas e cinzas. Surfar na onda do sucesso equivale a perder o equilíbrio
quando a mesma se desfaz e nos atira à praia vazia e soltária.
O fato é que, da
mesma forma que o sucesso produz amigos a mãos cheias, o fracasso os afasta em
questão de instantes, pois se trata de uma “amizade líquida”, para usar a
expresão de Bauman. De resto o adjetivo predileto de Bauman pode bem
estender-se a todo tipo de sucesso e de fama, como veremos adiante. Como já
diziam K. Marx e F. Engels, no Manifesto
Comunista, “tudo que é sólido desmancha no ar”.
Órbita do poder
Uma segunda órbita é a do poder. Anseio oculto e às
vezes inconsciente, que se esconde nas reentrâncias mais recônditas do coração e
das enranhas de cada ser humano. Neste caso, diferentemente da conquista do
sucesso, para ganhar as alturas muitas vezes é necessário apagar o brilho das demais
estrelas. Estamos num campo de disputa feroz e sem tréguas onde, na grande maioria
das vezes, os meios justificam os fins. Enquanto o filósofo britâncio T.
Hobbes, no Leviatã, lembra que o
homem é lobo do próprio homem, o filósofo renascentista italiano N. Maquiavel,
no Príncipe, deixa claro que para
conquistar e manter-se no poder é necessário seguir leis férreas. Nesse jogo,
popularidade e impopularidade são sempre uma faca de dois gumes, usada ou
descartada de acordo com as circunstâncias, os adversários e a correlação de
forças.
Não é à toa que
muitas metáforas e expressões do universo bélico passam a fazer parte da
prática política. Instrumentos de controle e manipulação da opinião pública – e
hoje das pesquisas de opinião – fazem parte da ordem do dia. Daí a emergência
do marqueteiro, profissional
encarregado na imagem e do marketing do candidato. Também integram as regras do
jogo o domínio sobre as informações privadas e sigilosas dos oponentes, o que
costuma reduzir ao nível mais baixo não poucas campanhas eleitorais. Isso sem
falar do uso das massas como trampolim para os cargos públicos, a compra e
venda de votos, o tráfico de influência, a corrupção pura e simples, o
nepotismo, populismo e corporativismo...
Enfim, tudo o que pode levar à conquista de uma cadeira dos altos escalões, bem
como à sua manutenção se possível perpétua.
O poder, além do
mais, implícita ou explicitamente, comporta o risco de cair numa ratoeira: a
evolução ascendente da carreira política. Depois que se começa a subir os
degraus da escada, deve-se olhar sempre para o topo. Qualquer vacilo pode
significar o fim da ascensão e o início do declínio. Daí que, muitas vezes, os
projetos de nação, pensados a longo prazo, se reduzem a projetos de poder, como
moeda de uso imediato para as próxmas elições, em detrimento do bem-estar das
próximas gerações.
Órbita da riqueza
Passemos à órbita da riqueza. Aqui nos deparamos
com outra ratoeira, indissociável da anterior. De fato, se a ratoeira do poder
nos prende pelo rabo, necessita da ratoeira da riqueza para um processo de equilíbrio
e evolução constante. Combinadas, ambas interagem num processo dinâmico e
dialético para sustentar-se reciprocamente: se, de um lado, a riqueza pode
comprar os meios, as imagens e os votos (para não falar das pessoas) com o
objetivo de chegar ao poder; de outro lado, este último abre janelas e portas
para novos investimentos altamente lucrativos, mesclando indevidamente os âmbitos
público e privado. Instala-se uma espiral que se amplia sempre mais, onde
riqueza e poder, numa matrimônio indissolúvel, acumulam um patrimônio crescente
de bens e de influência.
Tudo isso leva a um
sistema, consciente ou não, de usufruto das coisas, das pessoas e das
circunstâncias em favor do patrimônio pessoal ou familiar e, quando mesclado
com a órbita do poder, em favor de um corporativismo de partido ou facção
política. Pouco importa se o luxo leva à devastação do meio ambiente e ao desperdício.
Menos ainda se caminha lada a lado com a pobreza, a miséria e a fome. A própria
riqueza, ao produzir-se e reproduzir-se, cria um muro de isolamento e
distanciamento com aqueles que ficaram à margem da estrada e da vida. Em grande
parte dos casos, sequer se dá conta que tais marginalizados o são por terem
sido antes expulsos, explorados, abandonados...
A riqueza,
cuidadosa e menticulosamente, evita tomar conhecimento que progresso
tecnológico e desenvolvimento, de um lado, injustiça, desigualdade social e
subdesenvolvimento, de outro, constituem duas faces da mesma moeda. Não vê ou
não quer ver que uma pequena minoria da sociedade é muito rica às custas da grande maoria que lhe faz
os serviços mais sujos e pesados, mais perigosos e mal remunerados. Ponte
retorcida que liga não somente pessoas, empresas e regiões no interior de uma
mesma nação, mas igualmente os lados opostos das relações internacionais entre
países centrais e periféricos.
Órbita da moda
Em quarto lugar vem
a órbita da moda. Moda e sucesso se
entrelaçam de forma muito estreita. Uma e outro, além de se darem as mãos,
fazem parte das “coisas sólidas” que facilmente se derretem e se liquidificam,
como ficou claro anteriormente. Mas a moda possui um ingrediente irredutível: a
escravidão aos padrões publicitácios da opinião pública e da mídia. A prova
mais notória e estridente encontra-se no estilo de vida das garotas que se
dispõem a aventurar-se na carreira de top-model
ou do balé clássico. O espelho, a balança e a academia lhes são verdadeiros
tiranos que as seguem de perto, passo a passo, show a show. Também no universo
da moda masculina, bem como em outros tipos de carreira, estão cada vez mais
presentes semelhantes escravos e escravas do mercado de consumo.
Mesmo no conjunto
dos mortais, a disputa pelos objetos de última geração associada aos custos
para acompanhar os lançamentos da moda, engendra uma multidão de outros
escravos. Dupla escravidão do desejo, na verdade. De um lado, o fascínio das
novidades, profusamente iluminadas nas vitrines das lojas, aguça a ânsia do
desejo, da compra e da posse; de outro, o objeto apenas adquirido torna-se
rapidamente banal e obsoleto, tendo de ser descartado diante de um modelo de
ponta, com um design mais moderno e
arrojado. Assim, o desejo, insasiável e irrequieto, oscila sem descanso ao
sabor dos ventos da moda. O pior é que o único fruto de tanta fadiga
normalmente se reduz ao insipido tédio.
Com razão o filósofo
francês Gilles Lepovetsky publicou a livro O
império do efêmero, referindo-se à moda nas sociedade modernas. De fato,
nada mais efêmero, provisório, passageiro, fugaz e esvoaçante. Exposto, além
disso, aos boatos e interesses muitas vezes incofessados e inconfessáveis. Tem
sua beleza e sedução, evidentemente, como a flor que de manhã surge viva e
vicejante, mas à tarde murcha e espalha pelo chão suas pétalas mortas. Nesse
sentido, o tempo costuma ser o pior inimigo da moda, como também o é do
sucesso.
Órbita do prazer
Por fim, a órbita do prazer. Também neste caso não
é exagero dar prosseguimento ao discurso da escravidão, desta vez diante das
paixões, instintos e emoções mais desenfreadas. Predomina a absoluta
impossibilidade de resistir aos impulsos imediatos, em vista de um prazer
futuro, mais consistente e duradouro. Em tal perspectiva, poder-se-ia falar do império do presente, parafraseando a
citada obra de Lepovetsky. Com irresponsável facilidade, renuncia-se a qualquer
tradição, por positiva que seja, como também à elaboração de um projeto de
futuro, com o único objetivo de desfrutar incontidamente o prazer do “aqui e
agora”. Nesta encruzilhada da modernidade ou pósmodernidade, a sociedade do
espetáculo se encontra com a filosofia do hedonismo, que prega o prazer pelo
prazer.
Nota-se em tudo
isso uma visão distorcida de duas lições que nos chegam da antiguidade: o epicurismo ateniense, na Grécia, e o carpe diem latino, do poema de Horácio.
O epicurismo prega a teoria dos prazer, sim, mas de forma moderada, com vistas
a uma tranquila serenidade futura. É a sabedoria de conter o próprio instinto
do prazer imediato, para gozar de um prazer mais sólido e intenso no amanhã. Já
o poeta Horácio convida literalmente a a colhe o dia, aproveitar a justa
oportunidade, usufuir do momento pesente, mas sem esquecer os valores do
passado e a responsabilidade com o futuro. Se e quando mal entendidas, as duas
formas de filosofia do mundo greco-romano podem nos asfixiar num abismo sem
fundo de um presente desfrutado até o extremo de uma embriaguez sem freios.
Levado ao absoluto, o “aqui e agora” pode converter-se em um centro vorticoso,
ao mesmo tempo fascinante e devorador, que em pouco tempo consome todas as
energias, deixando para trás um vácuo de tédio e falta de sentido.
Seguindo a via
larga do prazer sem limites, facilmente tropeçaremos com os becos sem saída do
álcool, da droga e do sexo inconsequente – vícios que se revelam cada vez mais
precoces nos adolescentes e jovens das gerações atuais. Mas o prazer
descontrolado pode ir bem mais longe, chegando às formas patológicas do
masoquismo, sadismo, pedofilia, entre tantas outras. Na sociedade contemporânea
não há desculpas para ignorar o rastro de sofrimento que tudo isso deixa nos
corpos e almas de tantas vítimas.
Órbita de Deus
Esta órbita de Deus não entra na sequência
que elencamos, mas permeia transversalmente cada uma das anteriores. Tampouco
constitui um caminho necessariamente alternativo às demais órbitas, pois, de uma
forma ou de outra, vale insistir, nós circulamos em todas elas. Não se trata,
ainda, de contrapor os ídolos (no plural e supostamente descritos nos itens
anteriores) ao Deus verdadeiro. Mais do que ídolos, se configuram como
dimensões da vida humana, podendo evidentemente ser idolatrados quando, e
somente quando, absolutizados.
Aqui enfatizamos,
antes, uma sintonia que nos coloca em intimidade com o Pai, na perspectiva mística
de Jesus: o Senhor vem habitar nossa casa ou nós experimentamos o repouso
indescritível da Casa de Deus. Tal sintonia não exclui as demais órbitas, quando
estas seguem um meio termo de sabedoria e moderação, para reportar-se à máxima
de Aristóteles. Porém, tendo a órbita de Deus um caráter absoluto, tende a
relativizar as demais. Relativizar não significa diminuir ou descartar, mas
colocar no lugar certo, dar-lhes o justo valor e tempero.
E agora cumpre fazer
novamente a pergunta: que órbita privilegiamos? Encontramo-nos em grau de
discernir o que nos é absoluto, fundamental e primordial daquilo que é
secundário e, por isso mesmo, pode ser negociável? As várias órbitas que apresentamos
constituem uma tentação e uma queda constantes, ou, ao contrário, somos capazes de manter o núcleo, a meta, o
foco de nossa opção de vida? Mesmo transitando por todas as órbitas, o deafio é
ver nelas meios relativos para que ressaltem a órbita de Deus. Somente esta
última, de fato, pode preencher os anseios mais profundos, imprescrutáveis e
desconhecidos de cada pessoa.
Nem precisaria
acrescentar que a vida, obra, palavras e prática de Jesus de Nazaré, bem como
de tantos outros testemunhos ao longo da história (cristãos ou não), nos podem
reconduzir ao que é esencial: simultaneamente à fonte e ao foco, à memória e à
promessa, ao passado e ao futuro – tornando mais intenso o compromisso do
presente. Aliás, é o que nos lembra uma das frases mais repetidas do Evagelho:
“Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6).
Roma, Itália, 25 de maio de
2014
gol de placa
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
No clima da Copa
do Mundo, vale lembrar que bola na rede é o objetivo máximo de qualquer partida
de futebol. Jogadores e torcedores,
gramado e arquibancada, concentram-se todos nesse objetivo. E quando o alcançam,
vem a euforia, os aplausos, a provocação do adversário, as bandeiras
desfraldadas, a festa do gol! Para isso, porém, a cada passe, a cada drible e a
cada jogada, é preciso evitar que o outro time chegue também à meta cobiçada.
Só assim o placar pode continuar positivo. Daí a tensão e a atenção, na defesa
ou no ataquele, durante os 90 minutos de disputa.
Transportando a
imagen para o âmbito da sociedade brasileira atual, como conciliar os
interesses de atores e plateia (=
governo e conjunto dos cidadãos) para chegar a um verdadeiro “gol de placa” no
que diz respeito ao bem-estar da população. Por “gol de placa”, neste caso,
entendemos uma política econômica que responda positivamente às necessidades
básicas e prementes dos extratos mais pobres, excluídos e de baixa renda? Em
outras palabras, como diminuir a distância entre os habitantes do andar de cima
e aqueles do andar de baixo da pirâmide social?Semelhantes perguntas e inquietudes estão nas ruas e praças de várias cidades do país, em diversas manifestações e movimentos sociais. Mais do que gritar contra a Copa do Mundo em si, o protesto de tais mobilizações, ao que tudo indica, visa combater o abismo entre os mais ricos e os mais pobres, entre o pico e a base da pirâmide, entre o padrao Fifa para a infraestrutura do evento internacional, por um lado, e a precariedade dos servicos públicos, por outro. Se o esporte tem e merece sua importância, mais ainda a vida e a dignidade do cidadão.
Mas, como bem o sabemos, “gol de placa” é coisa rara, contando muitas vezes com a sorte eventual. Vez por outra, e em circunstâncias favoráveis, algum atleta colhe a oportunidade e carimba as redes adversárias com uma manobra espetacular. No caso da administração pública, a oportunidade para um “gol de placa”, inesquecível pelo seu brilho, tem a ver com três aspectos complementares: primeiro, é necessário que o fruto esteja maduro para a colheita; segundo, a avaliação de que o momento é oportuno requer um olhar perspicaz e agudo, uma visão de gênio; terceiro, a colheita é sempre um trabalho coletivo, feito em mutirão.
No primeiro caso, a sociedade brasileira está mais do que madura para uma série de mudanças necessárias e urgentes. Múltiplos progetos de reforma (agrária e agrícola, tributária, política, eleitoral... só para citar algumas) permanecem engavetadas por falta de empenho e de interesse dos atores privilegiados do Congresso Nacional. Esses parecem desfilar pelo cenário iluminado da Câmara e do Senado como se fossem seres extraterrestres, alheios aos anseios e apelos que se erguem do solo inculto do planeta terra, num cotidiano de penúria e precariedade. Se é verdade que a prática política nacional encontra-se sobrecarregada por uma porção de entraves históricos e estruturais às mudanças reais e profundas, também é certo que estas encontram-se atrasadas de décadas, para não dizer de séculos.
Em segundo lugar, no palco da administração pública não faltaram gênios que intuiram que o fruto estava maduro e o momento se revelava oportuno para a mudança. Em vez de falar de nomes, cabe a pergunta: por que não o colheram? A resposta, entre outras, tem duas faces marcantes. Por um lado, os nós já citados de nossa histórica política são difíceis de desatar, dado o caráter acentuadamente retrógrado e conservador das classes dominantes do país; por outro, não poucos líderes nacionais, mesmo conhecendo de perto os dramas da Senzala ou até tendo aí suas raízes, quando chegam ao Planalto Central parecem trocar de time. Passam a jogar segundo os interesses da Casa Grande, em particular os grandes monopólios da propriedade da terra, das comunicações e do setor financeiro. Isso para sequer falar do vírus da corrupção, do tráfico de influência, do corporativismo, entre tantas outras mazelas conhecidas e notórias.
Por fim, a colheita não é tarefa dos políticos de plantão, mas da sociedade como um todo. Isso exige duas coisas indispensáveis. Antes de mais nada, a criação de canais, instrumentos e mecanismos eficazes de participação popular, no sentido de construir políticas públicas voltadas para as carências mais notáveis da população, tais como os serviços de infra-estrutura, de apoio ao pequeno e médio produtor e empreendedor, associados a uma distribuição de renda que não seja mera compensação provisória, mas tenha alicerces sólidos na política econômica. Desnecessário acrescentar a necessidade de investir nos serviços públicos de primeira necessidade, como saúde e educação, trabalho e relações trabalhistas, segurança e transporte, e assim por diante. As Semanas Sociais Brasileiras, os Plebiscitos e Assembleias Populares e outras iniciativas do gênero apontam nessa direção.
A segunda exigência nos leva ao campo da ética na política, tema tão alardeado e, em termos concretos, tão pouco considerado. Aqui faltam as ações e sobram os discursos e promessas. Uma verdadeira postura moral na administração pública pressupõe um deslocamento do eixo sobre o qual ela se move. No Brasil das últimas décadas (para não retroceder até 1500) prevalecem as medidas de curto e médio prazo. Carecemos de um projeto de nação com horizontes mais largos. A razão disso é que, não raro, os candidatos aos cargos públicos, e mesmo os já eleitos, parecem ter olhos não para as próximas gerações, e sim para as próximas eleições. Como corrigir essa miopia crônica e contagiosa?
A festa internacional do futebol – centrada na Copa do Mundo/2014 – constitui uma ocasião sem igual para um “gol de placa” nos gramados da política nacional. Jogadores, treinadores, ábitros, bandeirinhas, torcedores, enfim, todos que atuam nesse campo têm a oportunidade de colher o momento para balançar as redes adversárias da injustiça, da concentração de riqueza e renda, da exclusão social e da desigualdade crescente. Padrão Fifa não somente para os estádios e infra-estrutura da Copa, para para a população como um todo! Só assim a festa do futebol pode se converter também numa festa da cidadania!
Roma, Itália, 21 de
maio de 2014
Pessoa, carisma e Igreja
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, CS
Durante seu
Ministério Público, por várias vezes Jesus desloca o centro das atenções de sua
pessoa para sublinhar sua missão. O mais clamoroso exemplo disso, nos relatos
evangélicos, é sua resposta aos enviados de João Batista, os quais lhe
perguntavam: “És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?” Jesus
parece ignorar o núcleo da questão e responde indiretamente: “Voltem e contem a
João o que vocês estão ouvindo e vendo: os cegos recuperam a vista, os
paralíticos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos
ressuscitam e aos pobres é anunciada a Boa Notícia” (Mt 11,2-5).
Mais do que as
palavras, falam as obras! Além disso, nesse e em outros episódios, o profeta
itinerante de Nazaré evita falar de si mesmo, para concentrar-se na Boa Nova do
Reino. Em outras ocasiões, apresentar-se-á como um simples enviado “para fazer
a vontade do Pai”. Somente mais tarde, após sua morte e ressurreição, é que as
primeiras comunidades cristãs irão introduzir o culto do Senhor, do
Cristo-Messias, do Filho de Deus ou do Salvador. Pouco a pouco, a partir de
Antioquia, se impõe o nome de “cristãos” para seus seguidores, ao mesmo tempo
que começarão a desenvolver-se os títulos da cristologia. Antes disso, os
sequazes de Jesus eram chamados “nazarenos” ou o movimento do “caminho”.
Temos aqui um
critério fundamental para toda ação evangelizadora da Igreja, particularmente
em sua dimensão sociopastoral e política. Quando esquecemos que a missão deve prevalecer
sobre o discípulo/missionário, dois desvios são inevitáveis e igualmente
nefastos: o personalismo individual e o narcisismo coletivo.
Entendemos por personalismo individual não o dom de si
mesmo e da própria energia na ação evangelizadora, evidentemente, mas a tentação
e tendência em centrar tal ação missionária sobre os próprios esforços, quando
não sobre os supostos méritos. Disso resulta um número considerável de obras –
de caráter espiritual, social ou político – batizadas com o nome de pessoas
ainda vivas, o que, por si só, faz suspeitar de estridente centralismo. Outros
“ismos” se escondem naturalmente atrás desse, tais como egoísmo, autoritarismo,
despotismo, e assim por diante. Semelhante modo de ser e agir, além de
extremada autosuficiência e arrongância, do ponto de vista religioso ou
teológico denota falta de fé na presença do Espírito. Em vez disso, apela-se
para expressões como “alvo e estratégia”, “correlação de forças”, “ataque e
defesa”, “ brigada e vanguarda”, “palavra de ordem” – todas sintomaticamente
relacionadas ao imaginário bélico.
O personalismo
individual confia na própria força para vencer os obstáculos e adversidades,
mobilizando todos os instrumentos e individuos para impor seu modo de pensar ou
seu projeto pessoal. Daí a prática de “fazer a cabeça” do maior número de
pessoas, no sentido de aprovar, a todo custo, sua proposta. Mas não é só isso:
verifica-se também uma boa dose de egocentrismo na sua maneira de agir. Não
raro é movido a incenso, aplaudos e elogios, muitas vezes sem dar-se conta da
falsidade ou ironia dos mesmos. Como se vê, estamos longe, muito longe, da consciência
do apóstolo Paulo quando se refere ao “espinho na carne” e à “ação da graça”,
ao concluir que “é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder” (2Cor
12,1-10). O Espírito não encontra espaço num coração cheio de si mesmo!
O narcisismo coletivo, por sua vez,
constuma centrar-se sobre a visibilidade da ação da Igreja, Congregação,
Entidade, Movimento, Pastoral ( ou ouras instâncias), e não sobre os desafios
históricos a que é chamada a Instituição. Em lugar de colocar-se a serviço da
causa, tende a mobilizar todos os holofotes, câmeras e microfones para inflar o
próprio balão. Não é à toa que a palavra
visibilidade tem emergido com tanta frequência nos últimos tempos. Via de
regra, justifica-se seu uso pela necessidade de maior incidência pública, seja
esta eclesial, social, política ou cultural. Sem dúvida, deve-se reconhecer que
no mundo atual da comunicação online
ou instantânea, a visibilidade da ação contribui para as transformações
necessárias. O problema é que, em não poucas vezes, a referida ação se limita a
isso.
Todos os esforços e
energias se concentram sobre a divulgação da auto-imagem, como se se tratasse
de medir o próprio desempenho (performace) diante de um espelho imaginário. O
exemplo mais eloquente desse espelho voltado sobre si mesmo são as publicações
– revistas, jornais, boletins, livros – de inúmeras instituições religiosas,
filantrópicas e/ou sociais no interior da sociedade civil e da Igreja. Tais
publicações, da mesma forma que o uso dos meios de comunicação social, põem em
evidência não tanto os desafios de uma realidade a ser transformada, e menos
ainda seus protagonistas reais, e sim as atividades realizadas pela instituição.
Ao invés do rosto desfigurado dos pobres, excluídos e marginalizados, costumam
desfilar por esses espaços da mídia, ad
intra e ad extra, em palavras, imagens e fotos, as faces sorridentes e bem
nutridas dos agentes, intelectuais, assessores... É como se o protagonismo de
deslocasse dos extratos mais carentes da população para os extratos
intermediários.
Vale introduzir no
debate os estudos de Max Weber e Antonio Gramsci. Segundo este último, o
verdadeiro intelectual orgânico ou o
líder, mais do que conduzir o povo, deixa-se conduzir por ele. Torna-se capaz
de identificar suas necessidades e aspirações mais profundas, sistematizá-las
com seu instrumental teórico, para devolvê-las em vista de uma renovada ação
libertadora. Instala-se, assim, um processo dinâmico e dialético de teoria e
práxis, onde uma interpela e deixa-se interpelar pela outra, numa evolução crescente
em espiral.
Max Weber, por seu
lado, alerta para o fato de que muitas vezes uma intuição original, ao
burocratizar-se, pode fossilizar seu dinamismo e incidência sociohistórica. O
carisma cede o lugar ao poder, para usar a expressão de Leonardo Boff (Cfr,
livro Igreja, carisma e poder). Em
termos sociológicos. trata-se da passagem do movimento à instituição. Enquanto
o primeiro mantém-se aberto e fiel à pressão das bases e se orienta por sua
força mobilizadora, a segunda tende a mudar seu objetivo principal (implícita
ou explicitamente) na direção da própria estrutura e manutenção de si mesma. O
movimento mergulha suas raízes no coração dos embates cotidianos para romper
com os tiranos e tiranias, alargando os caminhos da história; a instituição,
embora mantendo o mesmo discurso, volta-se predominantemente sobre a própria
sobrevivência.
A conclusão nos
leva a refletir sobre o confronto inevitável entre, de um lado, a prática de
Jesus, centrada sobre a missão e o Reino de Deus, e, de outro, a preocupação da
Igreja, com forte tendência e tentação de desviar-se da meta (dos pobres e das
exigências do Reino), para concentrar os esforços na “pregação de si mesma”.
Sem dúvida, a postura do Papa Francisco constitui um bom exemplo de retorno ao
Jesus histórico.
Ciudad de Panamá, 14 de maio de
20124
PÁSCOA: fonte de Vida nova
Pe. Alfredo
J. Gonçalcves, CS
Páscoa representa
vida nova. Eis um dos maiores desejos de todas as pessoas, expresso com
frequência nas mensagens pascais. O calendário, aliás, entre outras, tem essa
função: abre espaço e tempo para refazer laços entorpecidos e recomeçar a vida.
Natal, Páscoa, dia de ação de graças, festas cívicas, etc. oportunizam um
renovação mais ou menos generalizada. O desejo de vida nova, porém, ao mesmo tempo pressupõe e esconde uma vida velha, existência em declínio, marcada
pela rotina que paralisa. De fato, o cotidiano costuma desgastar as relações
que, com fios invisíveis e frágeis, tentamos costurar no tecido social:
família, amizade, vida comunitária... A engrenagem dos relacionamentos se
enferruja, destilando não raro tédio desconfiança, asfixia e até veneno.
Quantas vezes lhe falta o óleo lubrificador que faz a máquina funcionar sem
“ranger os dentes”. Como se o outono estivese batendo à porta, anunciando o
frio do inverno. Resignação, comodismo e inércia costumam ser os sintomas desse
processo de envelhecimento precoce.
Disso resulta a
necessidade de uma injeção de ânimo, no sentido de rejuvenescer o corpo e o
espírito. Acomodar-se é ceder o terreno ao inimigo invisível mas inexorável. De
onde provém a energia que nos renova e nos faz retomar o caminho? A resposta é
simples e direta: só o amor pode reanimar um organismo em decadência. Só o amor
é capaz de conferir vitalidade a uma existência ferida pela necrose progressiva.
A necrose, como sabemos, mutila e mata as células de um membro ou de
determinada parte do organismo. Se não for diagnosticada a tempo, estende-se a
outras áreas e pode conduzir à sua total destruição. Uma a uma, lenta e
irremediavelmente, as céulas vão sendo devoradas pelo espectro silencioso e
avassalador da morte.
“Eu vim para que
todos tenham vida” – diz Jesus Cristo – “e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
Aí está o mistério mais profundo da encarnação, vida, obra, morte e
ressurreição de Jesus. O tempo litúrgico da Páscoa relembra e celebra esse dom
da vida em plenitude. A presença do Filho que “se fez carne e armou sua tenda
entre nós” (Jo 1,1-18) revela o amor incondicional do Pai. Revela-o sobretudo
no Mistério Pascal. Primeiro, no alto da cruz, onde, em meio às dores e à
tortura mais atroz, Jesus é capaz de perdoar seus assassinos. Na contramão do
“olho por olho, dente por dente”, o crucificado mostra que, diante da violência
humana mais atroz, a vingança de Deus é o amor. Revela-o, em segundo lugar, na
ressurreição, arrancando o Filho das garras e das trevas da morte e conferindo-lhe
uma vida nova cujo brilho e cuja glória não terão fim.
Como uma espécie de
descarga elétrica, o amor sacode o organismo entorpecido e o chama novamente à
ação. Num olhar retrospectivo à história da salvação, desde o Antigo Testamento
até a Nova Aliança, constatamos que Deus irrompe na trajetória humana, quebra
as cadeias da tirania e o jugo da opressão, para abrir novas veredas no
horizonte. Da excravidão no Egito em direção à travessia do deserto e à
liberdade na Terra Prometida – eis o projeto de Deus. Em termos mais reduzidos,
mas não menos importantes, o mesmo pode ocorrer nas relações interpessoais,
familiares, comunitárias, sociais ou politico-culturais. O amor nos liberta da rotina
e da mesmice, conferindo-nos o milagre de descobrir-nos novos a cada manhã.
Nada é mais vigoroso e vital para a existência do que a novidade de uma pessoa
que ama. Na intimidade do próprio coração, no interior da família ou na tarefa
da vida comunitária – tal pessoa irradia um brilho que fascina e transforma.
Verdadeiro óleo lubrificador em meio a engrenagens bloqueadas pela ação do
tempo.
Como o sol e a
aurora, os pássaros e as crianças, as flores e o céu azul, a música da brisa e
das águas – acordamos para o dia que nasce com uma alma nova, livre, aberta e
transparente. Uma alma que, antes curvada e oprimida sobre si mesma, ganha asas
para voar, pés para caminhar e mãos para saudar e abençoar a luz que renasce.
Por isso será capaz de assobiar e cantar, sorrir e distribuir um “bom dia” à
direita e à esquerda, mesmo com o risco de aparentar loucura. Seu semblante
reflete e transborda a energia que lhe enche o coração e a alma. O olhar de
quem ama confere, ao mesmo tempo, um colorido inédito às coisas e às pessoas e
um tempero novo à vida. Quem ama retira energias do mais íntimo de si mesmo
para recriar a natureza e as relações humanas, bem como para reorientar seus
projetos, seus caminhos e seus passos.
Mas vale repetir a
pergunta: qual a origem e a fonte de tais energias vitalizadoras? Não, o dom da
alegria e da bondade, da misericórdia e da entrega não provém da natueza
humana. Esta, ao contrário, é marcada por um egoísmo e egocentrismo de difícil
superação, chegando às vezes a um narcisismo exacerbado. Normalmente vivemos
concentrados sobre nossos desejos e paixões, nossos impulsos e interesses,
quando não doentiamente envenenados por mágoas, medos e ressentimentos. A
resposta deve ser procurada em outro lugar, outra instância ou em outro Ser. E
novamente aqui é simples e direta: a luz e o amor têm origem em Deus. Na
verdade, como lembra a Doutrna Social da Igreja, “no coração de cada pessoa e
no coração de cada cultura existem sementes do Verbo”. Fazendo-nos à sua imagem
e semelhança, o Criador dotou-nos de tais sementes, as quais, porém, em grande
parte dos casos, permanecem encobertas pelas cinzas ou asfixiadas pela cizânia
do pecado e da morte.
O amor compassivo
do “profeta itinerante de Nazaré”, e em especial o mistério de sua morte e
ressurreição, revela-nos a imensa misericórdia do Pai, mas revela-nos
igualmente os dons e talentos da pessoa humana. Jesus, humano-divino e
divino-humano, é a revelação simultânea de Deus e do Homem. Em seu ministério
público e, com maior luz no Mistério Pascal, desvenda a face oculta do Pai em
seu infinito amor, e desvenda igualmente as potencialidades encobertas do ser
humano na sua capacidade de doar-se, de “ser para o outro”. Se o amor de Deus
pode ser comparado ao sol que tudo ilumina e vivifica, o homem/mulher, a
exemplo da lua, é chamado a refletir e irradiar o seu brilho pela face da terra.
A obtusidade e o individualismo da condição humana, porém, em lugar de espelho
lunar que reflete os raios solares, pode provocar um eclipse, ofuscando a luz e
o brilho da vida que nos é oferecida como máximo dom.
Em conclusão, a
vida, morte e ressurreição de Jesus nos sacode do torpor e da inércia. Desperta-nos
para esse tesouro que carregamos “em vasos de argila”, como lembra o apóstolo
Paulo (2Cor 4,7). Se o colocamos a serviço dos outros, em especial dos pobres,
doentes, indefesos, marginalizados, excluídos – “os necessitados, os pequenos,
os últmos”, diria o Papa Francisco – então sim, a Páscoa terá sabor de vida
nova! Sabor de vida nova não só em termos pessoais, familiares e comunitários,
mas também em âmbito social, político e cultural. Isso porque, vale insistir,
nada é mais sedutor e contagiante, libertador e revolucionário do que uma
pessoa que ama. Por ser luz, ou reflexo da Luz divina, expande por onde passa
seus raios e seu brilho. Portadora natural da felicidade, aquece os corações
desesperançados, reanima as almas atribuladas e fecunda a terra estéril. A
liberdade toma o lugar da escravidão, as trevas detêm-se diante da luz, o
deserto torna-se fértil, a solidão se povoa e a cruz cede lugar á ressurreição.
É Páscoa, é vida nova!
Roma, Itália, 17 de abril de
2014
o Tripé da Vida Religiosa consagrada
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Além das exigências relacionadas aos votos de pobreza, castidade e obediência – e sempre a partir da Boa Nova do
Evangelho – a Vida Religiosa Consagrada (VRC) assenta-se sobre um tripé
indissociável, como um casamento sem qualquer possibilidade de divórcio. O que
vale, de resto, para o comportamento religioso e sociopolítico de todo cristão.
Podemos ilustrá-lo com três alegorias que remetem à prática de Jesus e, ao mesmo tempo, estimulam seu
seguimento, devendo por isso mesmo permear as diversas dimensões da vida
consagrada.
1.
Montanha
Nas páginas bíblicas, montanha aparece como lugar privilegiado de oração,
meditação, contemplação. Percorrendo os relatos evangélicos, por várias vezes
Jesus se ausenta da multidão e dos discípulos. Onde está o Mestre? Num “lugar à
parte”, “no deserto”, “sobindo ou descndo de um monte” – expressões que
representam momentos de oração assídua, intensa e perseverante junto do Pai (= Abba). De olho no Monte da Oliveiras ou
Getsemani, tomemos o termo montanha como metáfora do cultivo progressivo dessa
intimidade, a qual chega ao ponto de Jesus afirmar que “Eu e o Pai somos um”.
Numa visão panorâmica, em episódios como a sarça ardente, o encontro de Moisés
com Deus no monte Sinai e a transfiguração, a montanha simboliza o lugar da
epifania, onde Deus vela e revela sua face resplandecente, bem como sua palavra
rica, viva e ativa, libertadora e criadora.
Bastaria um exemplo para analisar mais de perto esse processo místico de profunda
espiritualidade. Mais do que ritos, formalidades ou sacrifícios – tão presentes
na religião de seu tempo – Jesus busca o diálogo silencioso com Deus, o que se poderia
chamar de “oração mental”. Em linguagem socrática, pode ser vista como um
espelho onde o autoconhecimento gradativo representa um método decisivo para uma
transformação e superação constantes. Mas vamos ao exemplo (Lc 11,1-4): Jesus
está em oração “em certo lugar”. Ao terminar, seu semblante provavelmente
irradia tanta luminosidade que um dos discípulos não se contém: “Senhor,
ensina-nos a rezar, como também João ensinou as discípulos dele”. E dessa
pergunta herdamos a chamada oração do “Pai-Nosso”, menos como uma fórmula a ser
repetida, e mais como uma atitude diante de Deus (primeira parte) e diante dos
irmãos (segunda parte). Prece em que a linha vertical e a linha horizontal se enrtrelaçam
em mútua interpelação.
2. Casa/mesa
Da mesma forma que é comum encontrar Jesus na montanha (deserto ou lugar à
parte) – como símbolo da oração – também o vemos constantemente à mesa, na casa
de amigos e conhecidos. Inúmeras vezes come e bebe em companhia de outras
pessoas, em geral convidadas de algum
anfitrião. Casa e mesa, do ponto de vista humano, são lugares sagrados. A casa
cobre, veste e envolve um grupo íntimo, que se quer bem e que se ama. É como se
fosse a roupa da família. Sem ela, os membros desta ficaríam expostos aos
olhares e à curiosidade alheia, nus em meio à praça pública. Impossibilitados,
portanto, de garantir a própria dignidade. Lar, refúgio, proteção, carinho – são
todos sinônimos de “sentir-se em casa”.
A mesa, por sua vez, é ponto de encontro. Nela nutrimos o corpo, através do
alimento, mas também enriquecemos o espírito, com a presença dos outros. Em
termos bem concretos: na mesa comemos e nos comemos uns aos outros.
Alimentamo-nos do pão, por um lado, e, por outro, do olhar, sorriso, palavras,
histórias, sonhos, lutas e fracassos dos que se encontram ao nosso redor. A
mesa transforma o estranho em irmão, como vemos no episódio dos discípulos de
Emaús. Mais ainda, transforma-o em anfitrião, alguém que tem algo a nos
oferecer, algo a ser colocado em comum. Disso resulta que a mesa tem a sua
liturgia: toalha, flores, luz de vela, pratos e copos enfeitados, prece de
gratidão. Mesa que se converte em altar para a comunhão, a eucaristia! Tudo
isso faz parte dos ingredientes da refeição, mas a pessoa do outro constitui o
maior tempero do alimento. E quanto mais profunda, sincera e transparentea
relação entre os comensais, mais saborosa será a comida. Diferentemente dos
animais, os seres humanos tendem a comer juntos, fazendo desse momento um lugar
de encontro.
É o que os sociólogos denominam “comensalidade”: partilha do pão e da vida.
Nos quatro Evangelhos, Jesus multiplica esses momentos de convivialidade, ao
ponto de ser chamado “beberrão e comilão”. E o faz envolvendo os mais
necessitados, os pequenos, os últimos, como diria o Papa Francisco.
Especialmente os que não têm condições de retribuir o convite, disse o próprio
Jesus, o que explica a dupla multiplicação dos pães. Mas a passagem evangélica
mais significativa a esse respeito é, sem sombra de dúvida, os capítulos do
Quarto Evangelho que formam a sequência da última ceia, do lavapés, do diálogo
com os discípulos e da oração sacerdotal do Filho ao Pai (Jo 13 – 17). Na
linguagem, nos gestos e nas atitudes do Mestre, esse momento de despedida
poderia ser chamado de “testamento espiritual de Jesus”, ou “a expressão viva
de seu coração materno” e ainda “um evangelho dentro do Evangelho”.
3. Caminho
Além da prática frequente da oração e da comensalidade – montanha e
casa/mesa – Jesus é visto com igual frequência pelos caminhos da Galileia,
passando pela Samaria e chegando à Judeia, onde será executado na capital,
Jerusalém. Sua missão se desenvolve sobretudo pelos caminhos onde as pessoas se
cruzam e recruzam nas suas lutas e embates contidianos. Mais do que no templo e
na sinagoga, como que à espera dos “fiéis” a serem evangelizados, Jesus vai ao
encontro dos pobres. E mais do que levar-lhes conforto, alegria e esperança,
Ele mesmo se faz Boa Notícia. “Verbo que se fez carne”: se faz olhar
misericordioso, sorriso que perdoa, palavra que liberta, toque que cura, gesto
solidário, presença vivificante.
Duas passagens neotestamentárias corroboram a prática desse galileu como defensor
incondicional dos pobres, por um lado, e, por outro, como um “profeta
itinerante”. São elas: Lc 4, 16-20 e Mt 9, 35-38. No caso de Lucas, temos o que
os estudiosos costumam chamar de programa
de Jesus: “Anunciar a Boa Notícia aos pobres, proclamar a libertação aos
presos e aos cegos a recuperação da vista, libertar os oprimidos e proclamar o
ano da graça do Senhor” – palavras extraídas do Antigo Testamento, Livro do
profeta Isaías (Is 61, 1-2).
No chamado resumo das atividades de
Jesus, Mateus afirma que Ele “percorria todas as aldeias e povoados,
ensinando em suas sinagogas e pregando a Boa Notícia do Reino”. Ao encontrar
“as multidões cansadas e abatidas, como ovelhas que não têm pastor”, revela uma
compaixão humano/divina. Compaixão que, por mais de uma vez, faz estremecer-lhe
as entranhas e chorar um pranto humano “demasiado humano”. Compaixão neste caso
equivale a um sentimento de quem está disposto não a oferecer coisas, mas de
quem se doa a si mesmo, colocando seu tempo e sua vida a serviço de uma causa.
No coração desta, como seu motor dinamizador, encontra-se a Boa Nova do Reino.
4.
Montanha,
casa/mesa e caminho
Os itens acima representam não três movimentos separados e estanques, mas
três dimensões vivas e dinâmicas da mesma prática. Montanha, casa/mesa e
caminho jamais se dissociam na trajetória de Jesus. Ao contrário, as três se
complementam, integram e se interpelam reciprocamemnte, através de vasos
comunicantes invisíveis. Isso quer dizer que quanto mais Jesus sobe à montanha
para encontrar-se com o Pai (oração), mais se vê atraído à presença dos pobres,
órfãos, sós e perdidos pelos caminhos da exclusão social (missão). Entre ambas,
trata de formar uma comunidade de apóstolos/discípulos para levar adiante sua
obra, partilhando com eles o pão e a vida (casa/mesa). Inversamente, quanto
mais Jesus aprofunda seu compromisso com os doentes e indefesos, frágeis e
marginalizados no caminho (missão), mais sente a necessidade de voltar à
presença do Pai, desenvolvendo uma espiritualidade de intensa intimidade e
confiança (oração). Emtre ambas, novamente, vê a necessidade de intercambiar a
própria experiência com os amigos mais íntmos e companheiros (casa/mesa).
Da mesma forma que a montanha/oração exige e interpela o caminho/missão,
este necessita e se nutre daquela. Em meio a essas duas dimensões, a vida
comunitária, casa/mesa, se apresenta como uma espécie de posto de gasolina. Ali
o carro se abastece não para estacionar, e sim para retormar a estrada. A
casa/mesa constitui, ainda, uma retaguarda segura e sólida para quem, a cada
momento, tropeça com as adversidades da vida missionária (caminho) e com a
noite escura da oração (montanha). Na aridez do processo místico-espiritual,
por uma parte, e nos fracassos e desilusões da atividade sociopastoral, por
outra, a comunidade religiosa é o lugar onde posso encontrar espaço para a
escuta, o diálogo e a compreensão mútua. Se e quando podemos contar com essa
retaguarda da casa e da mesa, lançamo-nos no caminho com muito mais coragem e
confiança. E com igual confiança nos dispomos a atravessar o deserto do
silêncio de Deus. Ao contrário, sem esse ponto de encontro e de recíproco
reforço, pouco a pouco as forças nos abandonam e facilmente abandonamos a luta,
tanto no processo de formação da espiritualidade quanto no processo de
evangelização.
A falta de um desses pilares pode explicar não poucos abandonos da VRC,
marcadamente por parte dos jovens. De fato, a montanha (oração) sem a casa/mesa
e o caminho, leva-nos a um deus feito à nossa imagem e semelhança, que deixa de
nos interpelar e consequentemente de nos interessar; ou seja, um deus que se
faz manipular, justificando todas as nossas atitudes e projetos personalizados.
Por sua vez o caminho (ação missionária), sem a montanha e casa/mesa, pode
conduzir à manipulação dos pobres em vista de interesses individuais ou de
grupo, como o fazem muitos políticos, por exemplo. Enfim, a casa/mesa (vida
comunitária), sem a montanha e o caminho, tende a criar um fã-clube centrado em
si mesmo, utilizando às vezes o espaço religioso para o lazer puro e simples,
sem maiores comprmissos pastorais, sociais ou políticos.
No ministério público de Jesus, as três dimensões se entrelaçam inextrincavelmente.
Uma questiona e se deixa questionar pelas demais. Uma requer e reconduz às
demais. Aliás, um voo de pásaro sobre as páginas da Bíblia bastará para dar-se
conta que a oração verdadeira nos devolve à missão e esta àquela. Figuras como
Moisés, Maria e paulo – além do próprio Jesus – são testemunhas disso. As três
dimensões, portanto, fazem parte de uma espécie de círculo virtuoso que cresce
em espiral aberta, dinâmica e dialética, ampliando cada vez mais o raio de
espiritualidade, vida em comum e ação evangelizadora.
Roma,
Itália, 12 de abril de 2014
MOBILIDADE HUMANA: RETRATO DE UMA ECONOMIA ENFERMA
Pe.
Alfredo J. Gonçalves, CS
Nas últimas 48 horas, cerca de 4
mil imigrantes, refugiados e prófugos desembarcaram no sul da Itália. Desde
janeiro até agora, já são mais de 15 mil. As autoridades italianas calculam que,
na outra margem do Mediterrâneo, especialmente na Líbia, entre 300 a 600 mil
pessoas, aguardam uma oportunidade para cruzar o mar. A Itália continua a
recebê-los, mas o sistema de acolhida e “primeiros socorros” encontra-se
saturado, prestes a entrar em colapso. De resto, o governo italiano não se
cansa de afirmar que o Mediterrâneo é uma fronteira de toda a Europa, não
apenas dos países do sul. Mesmo na Itália, entretanto, vários setores insistem
no combate à “imigração clandestina”, como é o caso do partido Lega Nord.
E a Comunidade Europeia, o que faz?
Os representantes dos demais países europeus seguem em geral a “política da
avestruz”: enterrar a cabeça na areia para não ver os problemas em redor. Ou
seja a política de fechar os olhos e os ouvidos, erguer os ombros e lavar as
mãos, numa preocupante indiferença. Convém reconhecer, por outro lado, que não
são poucos os imigrantes que hoje percorrem as ruas de Paris, Berlim, Londres,
Madrid, Lisboa, Amsterdam... Os “extra-comunitários”, como são pejorativamente
denominados, pressionam de todos os lados. Afinal de contas, como bem sabemos,
a luta pela sobrevivência ou por um destino menos perverso, faz parte do sonho,
da dignidade e da superação de toda pessoa humana.
Se, a esse quadro da zona europeia,
acrescentamos o que ocorre atualmente nas fronteiras da América do Norte,
América Central e América do Sul; se, em seguida, fazemos o retrato dos
movimentos migratórios em toda a região asiática, incluindo a Austrália e Nova
Zelândia; se, ainda, tomamos nas mãos uma fotografia do vaivém da imensa
quantidade de migrantes no interior dos países africanos, árabes ou do Médio
Oriente; e se, por fim, assistimos ao desfile interminável de fugitivos da
pobreza e do desemprego, bem como os refugiados da violência, da guerra ou das
adversidades climáticas... As previsões são alarmantes. Entre deslocamentos
internos e internacionais, estima-se que o número de migrantes poderá crescer
dos atuais 232 milhões a 450 milhões em 2050.
A razão é que a economia mundial,
em seu processo de globalização, está enferma. Igualmente enfermas estão as
relações internacionais, particularmente no que diz respeito à política
trabalhista, à política do meio ambiente e às políticas migratórias. O núcleo
da economia política de matriz neoliberal concentra-se sobre dois objetivos
hoje fortemente questionados: em primeiro lugar, progresso tecnológico e
crescimento da produção de bens ao lado do consumo, o que leva ao acúmulo
indiscriminado de renda, riqueza e poder nas mãos de poucoas pessoas, grupos ou
nações; em segundo lugar, e como consequência do primeiro, exploração dos
recursos naturais, das fontes de energia e da força de trabalho humana até seus
limites suportáveis (ou insuportáveis!). O câncer instalou-se co coração mesmo
do organismo!
O resultado não poderia ser
diferente. Um sistema enfermo revela uma febre progressiva que se faz presente
em todo o organismo. Os sintomas são conhecidos e notórios, visíveis mesmo a
olho nu. Primeiramente, o planeta se desnuda. “Terra nua” é uma expressão que
remete ao terreno preparado para o plantio da nova safra, tera pronta à
fecundação. Nos dias atuais, porém, a mesma expressão parece adquirir outro
significado: a terra se desnuda de suas vestes naturais, como que prostituida
pelo avanço do domínio humano sobre seu corpo frágil. Disso resultam provas que
a “política da avestruz” (também neste caso) não pode mais ignorar, sob pena de
perecer junto com sua mãe-terra: devastação crescente e incontrolável das
florestas e extinção de não poucas espécies de fauna e flora, comprometendo irreversivelmente
o equilíbrio dos ecossistemas; contaminação do solo e do subsolo por
sunstâncias químicas de alta periculosidade; desertificação de enormes áreas geográficas,
até então agricultáveis; poluição dos oceanos, das águas e do ar, com danos
irreparáveis à qualidade de vida; aquecimento global, seguido do
recrudescimento de calamidades ditas “naturais” (furacões, nevascas,
inundações...); opção pelo agrocombustível, com consequências imprevisíveis
para a produção de alimentos e a conservação do meio ambiente; desperdício e
falta de reciclagem de numerosos bens/produtos... Enfim, uma série de sintomas
que leva os estudiosos, entidades ambientalistas e a opinião pública a
propugnar por “uma economia social e ecologicamente sustentável”.
Ao lado dos sintomas ecológicos,
digamos, a febre se revela também no intenso deslocamento de seres humanos.
Movimentos cada vez mais complexos e diversificados cobrem praticamente todos
os países do planeta. Os migrantes pressionam as fronteiras, e as rompem, não
por curiosidade, mas sobretudo pelas precárias condições de vida e trabalho nos
lugares em que nasceram; infringem as leis, e as superam, não porque são
criminosos e violentos, mas para fugir a tantas formas de violência que
golpeiam suas famílias; constroem pontes entre o pólo de origem e os países de
destino, e as transitam, não porque lhes agrade esse vaivém sem fim, mas porque
teimam em viver, mais que sobreviver; põem-se a caminho, e nele enfrentam
marchas forçadas, não porque abandonam a resistência, mas ao contrário, porque
são movidos pela fé e pela esperança de horizontes mais largos.
A “política da avestruz”, no caso
da mobilidade humana, não raro veste a roupagem da ideologia de segurança nacional
ou, pior ainda, do protecionismo aos “nossos trabalhadores, ameaçados pela onda
de estrangeiros”. Aqui vale lembrar que a própria linguagem nunca é neutra.
Quando se refere à migração em termos de “onda”, “invasão” (e palavras
smilares), a impressão é de que esse
modo de falar simultaneamente vela e revela um medo oculto, do qual é
necessário proteger-se. De fato a onda, quando intensa, pode representar um
tsunami que devasta tudo que encontra pela frente. Vale perguntar-se pela
possibilidade de substituir a visão negativa de migrante como probema por uma concepção positiva de
encontro com o outro. Encontro que
pode representar intercâmbio de valores no enriquecimento recíproco e na
construção da paz.
O grande desafio é como gestir a
mobilidade humana planetária e progressiva, sem contradizer o direito de ir e
vir, por um lado, e sem forçar multidões de seres humanos ao desterro e à
diáspora, por outro. Uma coisa parece óbvia: a “goverrnabilidade” das
migrações, se é possível falar assim, está suborninada a uma correspondente
“governabilidade” do movimento de capital, mercadorias, tecnologia e serviços
em geral. Impossível facilitar o processo de globalização econômica e, ao mesmo
tempo, erguer muros, leis e barreiras à circulação dos trabalhadores. Estes
tendem, e sempre tenderão, a acompanhar as oportunidades que a política
econômica mundial cria e recria. A desregulação do capital financeiro (virtual,
andorinha, volátil) e o deslocamento centrífugo da produção mundial, por
exemplo, não podem conviver com a restrição ao movimento dos trabalhadores.
Capital e trabalho continuam sendo duas faces da mesma moeda, uma vez que o
primeiro depende do segundo para se multiplicar. E como ponto final, talvez não
seja exagero afirmar que a força e o valor dos migrantes, entre tantas outras
medidas, constituem um remédio para a economia enferma.
Roma, Itália, 10 de abril de 2014
silêncio e Silêncios
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Iniciemos com o silêncio
mutismo. Silêncio cego, surdo e mudo. Mais do que uma atitude passiva,
se trata de uma forma de ação ativa, profundamente danosa e nociva. Uma recusa tenaz,
consciente ou inconsciente, a todo e qualquer tipo de comunicação. Daí o
fechamento sobre si mesmo, o isolamento, a construção de muros invisíveis. O
indivíduo ou grupo, achando-se cercado de uma hostilidade real ou virtual,
encerra-se numa espécie de gueto
imaginário. Excluído ou achando-se discriminado, fecha-se como o camarujo no
próprio casulo. Cria-se uma linha divisória, também esta real ou virtual, onde
os de “dentro” evitam o contato com os de “fora”, os “nossos” insistem em
desconhecer os “outros”.
No fundo, é um
silênco pesado, constrangedor. Não é difícil encontrá-lo, seja no interior das
famílias, seja nos ambientes de trabalho e até mesmo nas comunidades
religiosas. Circula um ar irrespirável que destila olhares oblíquos, gestos subliminares
e monossílabos envenenados. Desnecessário acrescentar que o monólogo solitário substitui
o diálogo aberto e transparente. O ambiente, se e quando levado ao extremo, ameaça
e asfixia, mutila e mata. O deserto permanece árido, o jardim infértil, o botão
recusa abrir-se em flor; não se ouve o canto do pássaro, da água ou da criança.
O clima se torna a tal ponto insuportável que é preciso caminhar na ponta dos
pés. Silêncio desabitado, ou pior ainda, habitado de demônios malignos e
agressivos.
Mais do que
verdadeiro silêncio, instala-se efetivamente um mutismo hostil, que inibe e
castra qualquer iniciativa conjunta. Mesmo vivendo ou trabalhando sob um teto
comum, o mutismo engendra cegueira e surdez. As pessoas tropeçam umas com as
outras, mas não se veêm; falam de tudo e de todos, mas não escutam. Os raros
“bom dia”, “boa tarde” ou “como vai?” – se os houver – soam falsos e
impessoais. Em lugar de calor humano, predomina o formalismo vazio e uma míopia
que distorce os fatos, desfigura os rostos, azeda as relações, amesquinha o
espírito. Situação que desmente a pérola do poeta português Fernando Pessoa
quando este afirma que “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”.
Temos, em seguida, o silêncio
estridente. Do ponto de vista social, ou de grupo, se anteriormente
reinava o mutismo teimoso e intratável, agora o que surpreende é o excesso de
palavras, embora nem sempre pronunciadas. Mesmo sem dizer nada, fala-se pelos
cotovelos: como na câmara e no senado em geral, todos têm algo a dizer, mas
ninguém se dispõe a ouvir, ninguém é capaz de fazê-lo. Do um ponto de vista
individual, emerge com nitidez uma discrepância entre o exterior, em que se procura fugir aos rumores do cotidiano, e o interior, onde uma multidão de ruídos
impede prestar atenção aos pensamentos, desejos e sentimentos mais ínitmos e secretos.
Tanto pessoal
quanto coletivamente, sente-se que o silêncio encontra-se prenhe de de um
turbilhão de palavras inóquas, que nada transmitem. Em termos mais concretos,
multiplicam-se as palavras justamente porque
nada temos a dizer. Por mais esforços que se façam para reestabelecer o ambiente
silencioso, este se enche de medos e dúvidas, inquietudes e interrogações, das
quais nos sentimos incapazes de desvincilharmo-nos. Disso resulta um silêncio
irrequieto, atribulado, rumuroso, como se estivessemos sentados sobre um
formigueiro. Nessas condições, não há qualquer esperança de paz ou repouso.
Impossível tomar distância dos ruídos, problemas e perturbações do dia-a-adia.
Uma metáfora pode
ilustrar esse silêncio quebrado pelos mais diversos rumores. Não é difícil
imaginar uma lata rolando sobre o asfalto: quanto mais vazia, mais barulho
fará. É presiamente o vácuo interior que nos faz preenchê-lo de pensamentos,
palavras e sons, por mais inexpressivos que sejam. Tal atitude nos impede de
entrar em contato direto e frontal com a própria solidão. Numa palavra, o
silêncio rumuroso é aquele que nos leva a fugir de nós mesmos. Na ameaça do
confronto consigo próprio, busca-se dois caminhos de fuga: interiormente,
justapomos imagem sobre imagem, palavra sobre palavra, sem nos dar ao trabalho
de parar para refletir sobre elas ou sobre a conexão de umas com as outras;
exteriormente, quando nem isso funciona, é preciso ligar o rádio, a televisão,
fazer uma chamada telefônica ou procurar alguém com quem conversar...
Contrariamente ao primeiro caso, aqui não se trata de recusa de contato, e sim
de uma comunicação vazia de qualquer sentido. Escondemo-nos atrás das palavras,
de um bate-papo, de uma relação inconsequente.
Em terceiro lugar,
vem o silêncio povoado. Diferentemente do deserto árido ou do barulho
das palavras sem nexo, aqui entramos num ambiente fecundo, denso, fértil e habitado.
É o silêncio da oração pessoal e da reflexão, da meditação ou contemplação. As
imagens e palavras que o povoam encontram-se grávidas de um novo sentido.
Desfilam pela tela invisível do silêncio, em primeiro lugar, recordações da
história pessoal. Lembranças inesquecíveis, de um ponto de vista positivo ou
negativo, mas que podem ser re-significadas em um novo contexto existencial. O
encontro pessoal e profundo consigo mesmo, aqui e agora, ilumina
retrospectivamente os acontecimentos do passado. Resgata-os, fazendo deles uma
releitura, à luz da fé e da esperança presentes. Por isso é que o passado pode,
sim, ser modificado: não os fatos brutos, evidentemente, mas seu valor e significado
para a vida futura.
Desfilam, depois,
os encontros e reencontros com as pessoas que povoaram nossa trajetória
histórica. Desfilam é se cruzam nomes, rostos, histórias, relacionamentos... Também
neste caso, é possível mudar, resgatar o valor e o sentido de muitas relações à
primeira vista negativas. É o que ocorre, por exemplo, nos encontros entre
Jesus e a Samaritana à beira do poço, de Jesus e Nicodemos, de Jesus e Maria
Madalena, de Jesus e os discípulos após a ressurreição, para citar apenas
alguns. A oração, reflexão, meditação e contemplação atual retroprojeta uma
nova luz sobre os fatos que talvez gostaríamos de esquecer, apagar, ignorar ou
reprmir. O brilho dessa luz, porém, extrai deles lições preciosas e imprevistas.
O silêncio torna-se uma espécie de alquimia que transforma os ruídos e rumores
de nossa existência passada em palavras redescobertas. Só o silêncio, em meio a
tanta verborreia e tanto palavrório, constitui terreno fértil capaz de criar
uma palavra nova: rica, criativa, inovadora, libertadora – palavra de conforto,
paz e repouso.
Além e ao lado da
figura do outro, desfila ainda a presença/ausência do próprio Deus que, ao
mesmo tempo, vela e revela a sua face resplandecente. Aqui as coisas se
entrelaçam de forma inextrincável: a abertura ao outro pavimenta o caminho para
o encontro com o totalmente Outro, o diálogo com o diferente conduz à linguagem
do Transcendente. Dessa maneira, o silêncio povoado de minhas próprias
lembranças, dos encontros e relações com os outros e da intimidade com o divino
faz e refaz da vida uma eterna busca. Em lugar de guetos cerrados, cria comunidades
sem fronteiras; em lugar do mutismo, renasce a abertura que liberta; em lugar
de fechar caminhos, abre horizontes sempre mais amplos e inclusivos.
Por fim, mas não em
último lugar, entra em cena o silêncio solene. Para usar uma
observação o escritor norte-americano William Faulkner, trata-se do “silêncio produzido
por mais de uma pessoa”. Silêncio de um grupo, de uma assembleia reunida ou de
uma multidão – no meio de uma oração comunitária, culto ou celebração, por
exemplo. Atitude respeitosa e reverente diante de uma presença inefável, viva e
vivificante. Além de ricamente povoado, como o anterior, é um silêncio litúrgico,
que nos ultrapassa e faz o ser humano encontrar-se consigo mesmo e com os
demais, para fortalecer o percurso ascendente da própria superação. Silêncio do
ser finito que o reporta ao mistério infinito da divindade.
Semelhante atitude
solene nos remete à obra do teólogo protestante alemão Rudolf Otto, O Sagrado, onde o autor descreve o
sentimento da criatura diante do misteryum
tremendus, “reflexo da numinosa sensação de ser objeto de auto
perpepção”. Ou ainda à obra de Émile
Durkheim, As Formas Elementares da Vida
Religiosa, na qual o sociólogo francês estuda “a religião como fenômeno
social”. Em ambos os casos, o mistério provoca uma reverência silenciosa da
pessoa diante das forças sobrenaturais. Do ponto de vista místo-espiritual,
mais que o temor e o tremor no confronto com tais forças, desenvolve-se uma
intimidade amorosa entre “a alma com e o seu Amado”, como se pode notar no
“século de Ouro” espanhol, particularmente nos escritos de São João da Cruz e
de Santa Tereza D’Ávila.
Mais perto de nós,
basta recordar o “minuto silêncio” solicitado pelo Papa Francisco na celebração
final da Jornada Mundial da Juventude, na praia de Copacabana, Rio de Janeiro,
Brasil. Em termos litúrgicos, a atitude inédita de milhões de pessoas reunidas
em total e absoluto silêncio visa tornar mais evidente a presença do personagem
principal da celebração eucarística: Jesus Cristo. Silêncio que provoca um
encontro vivo do Ressuscitado com todos e com cada um de forma singular. O atual
pontífice, aliás, em suas audiências e celebrações, tem resgatado esse silêncio
como uma das linguagens litúrgicas mais eloquentes.
Linguagem solenemente
“litúrgica” também utilizada habitualmente no deccorrer de competições
esportivas, concertos musicais, datas significativas ou outros eventos, não
raro em reverência de personalidades ilustres ou de acontecimentos marcantes.
Exemplos: a) no aniversário dos atentados às torres gêmas de New York, USA, de
11 de setembro de 2001, um “minuto de silêncio” no horário exato em que o
primeiro avião se chocou com o edifício; b) “minuto de silêncio” em memória de
Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Madre Tereza de Calcutá, Mandela, Oscar
Romero... Ou de algum esportista recém-falecido num acidente competitivo; c)
eventos como as bombas atômicas sobre Yrochima e Nagasaki ou a lembrança dos
que tomabaram em determinadas guerras requerem, igualmente, um “minuto de
silêncio” por ocasião do aniversário ou da visita de chefes de Estado.
Roma, Itália, 31 de março de
2014
Crise, desemprego e migração
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, CS
No último mês de
fevereiro (2014), o desemprego na Itália bateu um novo recorde. Atingiu a marca
de 13% da População Economicamente Ativa (PEA), a mais elevada desde que “la
disocupazione” vem sendo medida regularmente. Entre os jovens de 15 a 25 anos,
porém, a porcentagem é ainda mais alarmante, alcançando a cifra de 42,3%, quase
a metade daqueles que procuram emprego. Outro dado nada animador: nos últimos
doze meses (fevereiro/2013 – fevereiro/2014), foram fechados 365.000 postos de
trabalho no país, nada menos do que uma média de mil por dia. De parte das
empresas e indústris em geral, desde o começo da crise, em 2008, cerca de 25%
dos empreendimentos interromperam e/ou encerraram as atividades. Não são poucos
os pequenos e médios negócios que fecham as portas.
Por outro lado, vem
caindo consideravelmente o rendimento e o consumo médio das famílias, incluindo
os produtos de primeira necessidade, até mesmo os alimentos. Também os aposentados
viram seus rendimentos diminuirem de ano para ano. Nessa atmosfera sombria, de
cada 10 trabalhadores italianos, 6 temem perder o emprego, sendo essa a maior
preocupação da maior parte das famílias. A verdade é que tornou-se praticamente
impossível encontrar outro do mesmo nível e, mesmo para qualquer emprego
inferior, o tempo médio para uma nova oportunidade de trabalho pode chegar a 3
anos.
Somando e
subtraindo, o resultado desses números são preocupantes. Embora os governantes
anunciem que já se pode vislumbrar alguns sinais de recuperação, em termos de
crescimento econômico e do PIB, por exemplo, o desemprego deve continuar
batendo novos recordes durante o ano em curso, dificultando o fortalecimento de
um mercado interno sólido e robusto. De igual modo, as famílias permanecem com
um pé atrás quando se trata de ampliar o volume de compras. O fantasma da
deflação, tão nocivo quanto a inflação, começa a preocupar certos economistas. De
acordo com grande parte dos analistas, as pequenos luzes no fim do túnel
apontam para 2015 como “l’anno della ripresa”.
Dois sintomas
visíveis desse clima vêm se agravando há alguns anos. O primeiro tem sido
chamado de “fuga de cérebros”. Mesmo não
dispondo de estatísticas exatas, cacula-se em milhares os jovens de ambos os
sexos que deixam o país com a perspectiva de um futuro menos precário. Os
destinos mais procurados são Estados Unidos, Grã Bretânia e Alemanha. Fala-se
em “hemoragia de mão de obra especializada”, uma vez que grande parte desses
emigrantes concluiram os estudos superiores. Não poucos apenas esperam receber
o diploma para embarcar. Tal emigração contrasta vivamente com a entrada
contínua de refugiados no sul da Itália, especialemte através de Lampedusa. As
barcaças apinhadas de gente não param de chegar. Nos três primeiros meses de
2014, o número já ultrapassa a casa dos 5 mil. Entre os países de origem,
destacam-se Eritréia, Etiópia, Líbano e norte da África em geral.
O outro sintoma é
bem mais trágico. Tem aumentado de forma mais ou menos visível o número de
suicídios: trata-se, por uma parte, de pessoas relativamente idosas cujos
rendimentos, em alguns casos, sequer conseguem acompanhar o preço do aluguel;
de outra parte, pais ou mães de família incapazes de arcar com o sustento da
mesma. Pior ainda quando, antes de suicidar-se, eliminam fisicamente os
próprios filhos. Não se pode falar de epidemia, evidentemente, mas crescem as
situações de desespero, bastando não muitos casos para aumentar o clima de
temor, instabilidade e insegurança.
Esse cenário de
crise, desemprego, emigração/imigração, e às vezes desespero, vem trazendo à
tona um outro debate, delicado mas que ganha espaço no velho continente.
Trata-se do tema sobre uma Comunidade Europeia cada vez mais fraccionada entre
o norte anglo-saxônico, de um lado, e o sul dos países latinos e mediterrâneos,
de outro. Ao norte, Inglaterra, Alemanha, Holanda, Dinamarca, Suécia, Finlândia
– países relativamente estáveis e mais ou menos à margem da crise, ou que já a
superaram; de outro, Espanha, Portugal, França, Itália, Grécia, Chipre – países
que apresentam sérias dificuldades para retomar o nível socioeconomico de 2008.
Algum tempo artrás
o empresário húngaro-americano George Soros chamava a atenção para o risco de
uma Europa fraturada entre países credores (ao norte) e países devedores (ao
sul). Segundo ele, e seguindo o parecer de outros estudiosos, isso seria umas
das consequências nefastas da política europeia “dell’austerity e del rigore”,
em lugar de incentivar medidas urgentes e necessárias para um crescimento
econômico e o desenvolvimento sustentável. Semelhante política de austeridade,
em linha de mássima, beneficiaria os países do norte, de forma especial a
Alemanha, cujos bancos continuam faturando através da especulação financeira.
Capital que rende acúmulo de mais capital, em vez de produção de bens e
serviços à população. Enquanto isso, Grécia, Espanha e Itália – entre outros –
patinam no lodo da crise, tendo ainda que arcar com o ônus das dívidas e das
carências de ordem sociocultural.
Retomando a
temática da migração, os países do sul que confinam com as águas do
mediterrâneo, são justamente aqueles onde aportam as embarcações de imigrante
refugiados (Itália, Espanha, Grécia). Embora as autoridades italianas venham
insistindo que o mediterrâneo constitui uma fronteira da Europa e não só da
Itália, os países do norte raramente (para evitar um “nunca”) dão sinais de condidivir
o ônus da acolhida aos milhares de refugiados que continuam desembarcamdo em
território europeu. Figuras influentes como Jean-Marie Le Pen e Marine Le Pen,
bem como os líderes do partido da Lega Nord (e estamos em um países latinos,
respectivamente França e Itália) tendem a rechaçar qualquer política de
imigração.
As coisas não são
diferentes nos países como Alemanha, Suiça, Finlândia, Inglaterra, Dinamarca,
Finlândia, etc.? No geral, tanto ao sul quanto ao norte, a verdadeira “política
migratória” é o uso de um filtro rigoroso, uma peneira fina, constituída de
leis sempre mais rígidas, sobre a massa de imigrantes. Têm chance os que
apresentam algum tipo de capacitação ou especialização; os demais raramente
conseguirão o título de cidadania. Estão condenados a perambular pelas ruas de
Paris, Londres, Roma, Berlim... Sobrevidendo a duras penas nos porões do
mercado informal, em boa parte imigrantes “sans-papiers”. Em lugar de uma
possível acolhida, difunde-se um duplo fator de rechaço: o temor de que os
imigrantes venham tomar o posto dos “nossos”, ao lado de palavras e atitudes de
discriminação, preconceito ou perseguição por parte de pessoas e grupos não
raro neonazistas. Prova disso são as manifestações racistas e xenófobas da
torçida contra jogadores de futebol de origem negra. Manifestações que se
verificam tanto nos países do norte europeu quanto nos países do sul.
Roma, Itália, 02 de abril de
2014
Oração rima com ação
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
O mais difícil, no percurso árduo, íngrime e persistente da oração,
consiste em vencer a lei da gravidade que, qual força centrípeta, se concentra
sobre um subjetivismo inerente à
natureza humana e, ao mesmo tempo, resistente a relações abertas, dialógicas, transparentes.
Semelhante individualismo subjetivista, tão recorrente na sociedade contemporânea
(moderna ou pósmoderna, como quisermos), naturalmente comporta-se de maneira egoísta
e egocêntrica, atraindo a atenção sobre si mesmo: sobre suas dores e temores, seus
sonhos e anseios, seus instintos e projetos, seus fracassos e impotências.
Pessoas, vermes e plantas
Semelhante atitude pode ser ilustrada tendo em conta o movimento do átomo.
Este, de fato, faz girar as partículas ao redor do próprio núcleo, o que deu
origem à expressão “sociedade atomizada” para caracterizar os tempos atuais. Hoje,
com efeito, os instintos, paixões e interesses giram em torno do indivíduo,
mais do que nunca centrado sobre o própro umbigo. O certo é que, utilizando
outra metáfora, nos agarramos a nossos
problemas e angústias com a mesma tenacidade com que os vermes se arrastam em
meio ao solo e à lama, perfurando-a e fazendo dela o seu ambiente vital e a sua
casa. Vivem e se alimentam da sombra do solo ou subsolo e, a exemplo do mito da
caverna, em Platão, desconhecemos a luz do dia. Ou ainda, comportamo-nos como
os répteis e serpentes, insistindo em
rastejar com o ventre sobre o pó da terra, incapazes de levantar os olhos ao
alto. Quase que, da mesma forma que as plantas, sentimos a necessidade de criar
raízes, mergulhá-las no chão úmido e escuro, fincando alí os alicerces de uma
morada fixa e eterna!...
Porém, não somos vermes nem somos plantas. Em lugar de raízes, temos pés
que nos convidam a caminhar na descoberta de outras estradas e regiões, ao
encontro de outras pessoas e grupos, povos e nações, outros valores e culturas.
Convidam-nos a marchar em direção ao próprio destino, ou melhor, a construí-lo
a partir dos limites e potencialidades que nos são inerentes, como também a
partir do confronto com “o outro, o estranho,
o diferente”. Parafraseando o escritor e poeta brasileiro Guimarães Rosa, os
pés convidam-nos, enfim, a abrir veredas novas no grande sertão da existência,
em vista de horizontes não raro incógnitos, às vezes selvagens, mas sempre
surpreendentes.
Por outro lado, em lugar de rastejar o ventre no pó da terra e arrastar-se
pelo barro pútrido e pegajoso, somos convidados a uma contínua e desafiadora metaforfose:
converter-nos de vermes em borboletas, com asas invisíveis, sem dúvida, mas nem
por isso menos reais. Asas que nos
estimulam a levantar voo, a buscar o ar livre e primaveril, a sentir o calor
dos raios solares que trazem a aurora, a deixar-se iluminar pela luz do novo dia, a respirar o oxigênio vital e
vivificante do céu azul, belo e infinito. Asas que nos conferem liberdade, além
do olhar alto e amplo dos pássaros, às vezes até mesmo da águia. O apóstolo
Paulo, entretanto, nos alerta para os riscos dessa liberdade: “Foi para a
liberdade que Cristo nos libertou. Portanto, fiquem firmes e não se submetam de
novo ao jugo da escravidão”. E logo adiante: “Irmãos, vocês foram chamados para
serem livre; que esta liberdade, porém, não se torne desculpa para vocês
viverem satisfazendo os instintos egoístas” (Gl 5, 1.13).
Se nos mantemos eternamente obcecados pelas crises e lamentos que afligem o
cotidiano, não faremos outra coisa senão retornar ao próprio vomito, patinando
cegamente sobre ele, como ocorre aos cães. Acabamos por ter de suportar um hoje amargo e absurdo, carregado de
dúvidas e interrogações, sem qualquer significado que lhe acenda uma luz na
escuridão… Tudo porque não nos damos conta que tanto o ontem quanto o amanhã
estão nas mãos de Deus. Não no sentido de uma predistinação divina determinística
e fatalista, mas no sentido de avançar na travessia, com fé e coragem, de
cabeça erguida, confiando na presença do Pai que jamais abandona seus filhos e
filhas. De fato, com frequência nos esquecemos que a memória do passado nos remete aos dons com que Deus
dotou nossa própria existência e a existência da humanidade. E esquecemos, por
outro lado, que a esperança do futuro
depende da vocação e da graça que Ele nos oferece para enfrentar sem medo o
amanhã, na construção pessoal e coletiva da justiça, da solidariedade e da paz,
através de uma ação libertadora. Neste caso, tal esquecimento nos leva a
permanecer eterna e morbidamente debruçados sobre as adversidades que consomem
as forças de nosso presente.
Medos, mágos e culpas
Disso resulta que, em lugar do clássico carpie
diem (literalmente “colhe o dia”,
desfruta-o o aqui e agora), extraído do poeta romano Horácio, fazemos de cada
minuto e de cada hora um tormento para nós mesmos e para os demais. Numa
atitude enfermiça, patologicamente curvados sobre o próprio umbigo, tendemos a
cultivar medos, mágoas e culpas como
se fossem animais ou plantas de estimação, dos quais tememos nos separar.
Cultivamos o pranto, o pesar e o ressentimento como o semeador que espalha o
grão sobre a terra, mas, diferentemente dele, em lugar de exultar e agradecer
pelas folhas, flores e frutos, insistimos em desfilar um rosário sem fim de
lamentações. Como se o sol e a chuva beneficiassem unicamente, e sempre, o
pomar dos outros, esquecendo-se de nossa plantação.
Uma coisa é certa: os sentimentos
relacionados aos medos, mágoas e
culpas costumam ser os sentimentos que mais nos perturbam e aos quais mais
dedicamos nosso tempo. Ao mesmo tempo, contudo, somos dominados por desejos,
paixões e interesses – motores naturais da condição humana. Enquanto os últimos
atormentam a alma e o espírito, os primeiros tendem a paralisar nossas
energias, pois são aqueles que mais partilhamos na convivência do dia-a-dia. Com
uma regularidade inusitada, aproveitamos todas as oportunidades para retornar a
essas chagas vivas, expô-las à luz do sol, mostrando-as aos demais de forma
doentia e escancarada, sem qualquer pudor ou esperança de remédio. Desses
ressentimentos acumulados e mal digeridos, fazemos um verdadeiro “cavalo de
batalha”, como se representassem um tumor incurável, a ponto de neutralizar
toda e qualquer ação positiva.
O mais grave (e quase nunca nos damos conta disso) é que esse tumor cheira
mal, destila pus e veneno, engendra fantasmas, além de contagiar negativamente o
ambiente em que vivemos e nos movemos. Tanto nos apegamos a essas feridas
abertas que, possivelmente, ficaríamos surpreendidos e chateados se elas
cicatrizassem como por milagre... Pois então não teríamos como justificar ou
legitimar a própria existência de lamúrias eternas e eterna paralisia. Uma espécie
de enfermidade mental nos constringe a fazer delas o assunto principal de nossas
conversas... Se por acaso estas tomam outro rumo, utilizamos todos os meios,
ganchos e esforços para retornar àquele dia ou àquela ocasião em que Fulano ou
Sicrano nos trataram desde ou daquele modo... E lá veêm novamente,
doentiamente, o eterno desfile de medos, mágoas, culpas, rancores, reclamações...
Sempre accentuando, de maneira mesquinha e obsessiva, o lado pessimista,
derrotista. Cegos pelo “chororô” cotidiano e por uma baixa auto-estima, não raro dissimulada em falsa humildade,
tornamo-nos igualmente surdos aos apelos e desafios que nos cercam. Incapazes,
portanto, de garimpar as pérolas ocultas no turbilhão diário das coisas e acontecimentos.
Pés para caminhar e asas para voar
Aqui entra em cena o grande desafio da oração: descobrir que, se é verdade
que às vezes parecemos e nos comportanmos como vermes, também é certo que
podemos nos tornar borboletas. E que, em vez de raízes imóveis no campo de um fatalismo
inerte, possuimos pés e, em potencial, possuimos igualmente asas. Temos a
capacidade de levantar do chão, caminhar de olhar voltado para o horizonte e correr
ao encontro de um futuro continuamente renovado e renovador. Somente este
movimento será capaz de vencer a lei da gravidade, invertendo assim a força
centrípeta em um força contrária, isto é, o amor centrífugo. Este, em vez de
concentrar-se sobre si mesma, nos impulsiona em sentido oposto, a partir do
centro para a periferia, irradiando energia sobre nossos pensamentos, progetos
e ações. Tal movimento representa o primeiro passo de um espírito de
missionariedade sadio e saudável. Deixa o núcleo do átomo, sai de si mesma e se
descentraliza em direção a Deus e ao outro, buscando de forma particular os
excluídos e necessitados. Encontramo-nos aqui com a grande lição do rio: da
mesma forma que suas águas correm em direção ao mar, o amor busca
necessariamente os que mais carecem dele.
Nessa perspectiva, oração e ação missionária, transformadora, longe de se
excluirem e dissociarem, interagem entre si, complementando-se, interpelando-se
e enriquecendo-se reciprocamente. “A fé sem obras é morta”, lembra da Carta de
Tiago (Tg 2, 17). Deixando a órbita do personalismo pessoal, podemos entrar, ao
mesmo tempo, na órbita do Pai (=Abba)
e na órbita dos pobres. A prática de Jesus e do apóstolo Paulo, a esse
respeito, se revela illustrativa. Como também o é o testemunho de tantos homens
e mulheres ao longo da trajetória cristã. Rompendo o círculo que poderia encerrá-los
sobre si mesmos e asfixiar-lhes as energias, lançam-se ambos no oceano imenso
do amor e da misericórdia divina. Na Casa do Pai nutrem-se de água viva,
descobrem a força vital que confere novo sentido a toda a existência humana, e
põem-se decisivamente a caminho. Nos caminhos do dia-a-dia, rompem uma segunda
vez o cordão umbilical que os liga a si mesmos e se põem a serviço da missão.
Tropeçam com os embates diários daqueles que devem lutar e trabalhar para
sobreviver. Encontram os doentes, os indefesos, os marginalizados, os pequenos,
os últimos, os que estão à margem da vida e da sociedade, enfim, a grande
“multidão dos sem”.
Assim complementa-se o processo da oração. A intimidade com o Senhor se
desdobra na compaixão pelo outro/pobre: converte-se em compromisso com
implicações simultaneamente pastorais, sociais e políticas. Numa formulação
dinâmica, a verdadeira oração, ao concentrar-se sobre si mesmo, descentra-se em
direção a Deus e ao práximo, para novamente concentrar-se e descentrar-se, num
movimento repetitivo e dialético, mas de forma alguma fechado sobre si mesmo.
Ao contrário, trata-se de uma forma de concentrar-se/descentrar-se
em dimensão aberta e espiral, que cresce e se enriquece ampliando sempre mais o
raio de ação, seja em termos verticais, buscando o brilho da luz divina, seja
em termos horizontais, procurando iluminar os progetos, caminhos e passos humanos.
Por aí se vê onde nos podem conduzir os pés e as asas, se e quando movidos pela
oração e a ação: “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8, 32).
Roma,
Italia, 30 de março de 2014
Marcha para quÊ e para quem?
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, CS
Para quem se
encontra há algum tempo fora do Brasil, soou muito estranha a notícia sobre a
preparação da Marcha da Família com Deus
pela Liberdade, marcada para o dia 22 de março de 2014. O objetivo era
realizar uma espécie de segunda edição da famigerada Marcha de 1964, naquela ocasião em apoio ao Golpe Militar do mesmo
ano, onde religião e política, com o terço de permeio, se davam as mãos sem
maiores problemas. Os problemas surgem somente quando se trata da justiça e do
direito. Bem dizia nosso querido Dom Hélder Câmara: “Quando dou comida aos
pobres, me chamam de santo; quando pergunto por que são pobres, me chamam de
comunista!” O certo é que de longe, eu me perguntava: afinal, que acontece desta
vez em terras de Santa Cruz? Será que as coisas andam tão mal do outro lado do
oceano? Não podia acreditar, uma vez que, nas últimas semanas ou meses e mesmo
à distância, não havia sentido nada que justificasse novamente um regime de
exceção. Por quê a Marcha? Por quê tanto medo? Por quê a volta dos
militares?...
Confesso que senti
um suor frio pela espinha dorsal, ou aquele friozinho na barriga que nos faz
pressentir algo inesperado e indesejável, instalando um sentimento indefinito
de “disagio o malessere”, como se diz em italiano (mal-estar). Além de uma
pulga atrás da orelha, usando desta vez um ditado popular que todos conhecem. Felizmente,
tudo correu bem; ou melhor, tudo correu mal! Sim, porque a tal da segunda edição
da Marchade 1964 não passou de um
“fiasco”, como pude constatar posteriormente pelo noticiário e pelas imagens.
Imagens bem magras, tímidas e pífias, de raras pessoas e raros grupos que se
aventuraram a mostrar a cara. Ou talvez a escondê-la (de vergonha) atrás de
enormes bandeiras e faixas com frases que lembravam a guerra fria, há muito
morta e enterrada. Uff! – que alívio – ainda desta vez o Brasil permanece
isento de terremotos!
De fato, a
intervenção militar, por si só, como pediam algumas faixas e alguns
entrevistados entre os poucos manifestantes, era motivo de temor e tremor.
Depois de três décadas de “experiência democrática”, o retorno das fardas e das
botas, dos soldados, dos generais e dos tanques, deixa qualquer um de cabelos
em pé. O rastro de medo, sangue e violência deixado pelo regime militar jamais
pode ser apagado nas gerações que o conheceram de perto, mais ainda nas pessoas
que sofreram no corpo e na alma suas consequências. Isso para não descer aos detalhes
sobre as dezenas, centenas (milhares?) de perseguições, prisões e torturas. “O
terreno lá de casa não se varre com vassoura; varre com ponta de sabre, bala de
metralhadora”, diz a canção de Geraldo Vandré. Ditadura nunca mais!
Por outro lado, no
parágrafo anterior e neste escrevo “experiência democrática” (não democracia) e
sempre entre aspas. Estas últimas deixam entrever lacunas, limites e entraves que
não podem ser ignorados. De fato, nossa “democracia” (aqui também entre aspas)
tem revelado supresas e sobressaltos que nos assustam e fazem refletir. Não
tanto como a presença dos militares nas ruas e no poder, evidentemente, mas
trazem desencanto, e descrédito, bem como um certo mal-estar e uma incerteza
quanto aos rumos da política brasileira. O que vale, de resto, para a
“experiência democrática” de não poucos países do Ocidente orgulhosamente
democratizado. As sensações de insegurança são as mais diversas e às vezes sem
nome.
A primeira vem do
sentimento de que ainda vivemos numa “democracia” amarrada pela camisa-de-força
da economia neoliberal, com poucas margens de manobra e pouca participação para
as forças populares efetivamente organizadas. Democracia que levanta pequenas
ondas na superfície das águas, com a brisa das ações políticas encenadas no
palco e diante da plateia, mas deixa inalterado o quadro das correntes subterrâneas,
onde prevalece o vento forte da economia de mercado. Isso quer dizer que o
liberalismo, neste caso, equivale à “liberdade de galinhas e rapousas dentro de
uma mesmo galinheiro” ou de “tubarões e sardinhas dentro de um mesmo aquário”
(as aspas, bem como os parêntesis, continuam nos perseguindo). Numa palavra, os
fortes tornam-se mais poderosos às custas dos fracos, cada vez mais
enfraquecidos.
Dessa primeira
sensação deriva uma segunda. Hoje tornou-se amplamente conhecido e notório o
fato de que o país não só faz parte, mas abre a lista do grupo BRICS (Brasil,
Rússia, Índia, China e África do Sul). Mais do que países subdesenvolvidos ou em
vias de desenvolvimento, trata-se de países de economia emergente, com grande
potencial de recursos, naturais e humanos, e expectativa de crescimento
sustentável. Mas não podemos evitar a pergunta: economia emergente para quem?
Quem sai ganhando com a potencialidade deste “gigante adormecido” que resolve
acordar? Na verdade, os benesses e privilégios, renda e riqueza continuam
convergindo para o andar de cima da pirâmide, deixando os habitantes do andar
de baixo em condições tão precárias quanto antes, salvo uma faixa limitada da população
“assistida”. Dai a concentração, ao mesmo tempo, de acúmulo de capital e de
exclusão socioeconômica. Crescimento contraditório e viciado, incapaz de
resolver o abismo da desigualdadade social entre o topo e a base da pirâmide.
Particularmente, eu
e tantos outros cultivamos e nutrimos por longo tempo uma terceira sensação: a
esperança que um “governo popular” (estas aspas não nos querem mesmo
abandonar!), com raízes na Senzala, pudesse substituir o piloto automático da
economia liberal pelo piloto manual de uma política econômica a serviço das
necessidades básicas da população de baixa renda. Disso resultaríam algumas
mudanças necessárias e urgentes, tais como a reforma agrária e agrícola, a
reforma tributária, a reforma política, a reforma jurídico-legislativa… Sem
falar dos serviços públicos de transporte coletivo, da segurança e educação, da
saúde, e habitação, etc. Tendo como berço os movimentos populares e estudantis,
a organizaçao do sindacalismo combativo a partir da base e os campos de força
das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), da Teologia da Libertação (TdL) e das
Pastorais Sociais – esperava-se que o Partido dos Trabalhadores (PT)
representasse uma guinada, pequena mas significativa, susbtantiva, no rumo
desta gigantesca nave chamada Brasil.
Com o passar dos
anos e dos mandatos, porém, nada de substantivo no horizonte! Chegamos assim à quarta
sensação. No fundo, aquela esperança, longa e laboriosamente alimentada, mesmo regada
com o fermento das organizações e movimentos sociais e das Semanas Sociais
Brasileiras (SSBs), com a participarção direta nas Assembleias e nos
Plebiscitos populares, com teimosia da Campanha Jubileu Sul e do Tribunal da Dívida
Pública ou com a repetição anual do Grito dos Excluidos – sofre hoje de uma
decepção crônica. Em lugar de políticas
públicas, de médio e longo prazo, voltadas para as necessidades
fundamentais e estruturais da economia brasileira, o que desfila no cenário nacional
são políticas compensatórias, de curto
prazo, revestidas de uma retórica com fins visivelmente populistas e eleitoreiros.
Para usar a expressao de alguns analistas, um projeto de partido, com a pretensão de garantir a todo custo a
cadeira cativa sobre as rédeas do poder,
substituiu o progeto de nação, em que
o olhar se detém não tanto nas eleições futuras, e sim nas gerações futuras.
Arco, Trento, Italia, 26 de
março de 2014
Palavras de vida eterna
“A partir desse momento, muitos discípulos voltaram atrás,
e não andavam mais com Jesus. Então Jesus disse aos doze:
‘Vocês também querem ir embora?’ Simão Pedro respondeu:
‘A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna’” (Jo 6,66-68).
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Momento de crise, de escândalo e de descrédito. Jesus se lamenta dos que o
abandonam e já prevê a traição. Dirige-se aos discípulos mais íntimos,
perguntando se também eles o estaríam dispostos a deixar. Como sempre, Pedro
não se faz esperar. Não temos onde ir e, além disso, “Tu tens palavras de vida
eterna!” Que significa isso? Podemos refletir a partir de quatro significados
para a expressão “palavras de vida eterna”.
1. Palavras
que nutrem e sustentam
Nutrem e sustentam quando os mares se tornam bravios, revela-se toda a
fragilidade de nossa pequena embarcação, incluindo o perigo de afundar. Quando,
em meio à tormenta e às ondas tumultuosas, somos incapazes de distinguir o
farol e o porto e, por isso, impossibilitados de estabelecer o rumo a seguir.
Quando todas as veredas se apresentam como “becos sem saída”, o caminho
encontra-se cerrado. Para onde ir? Quando a crise se agrava e nossas
interrogações se tornam maiores que a capacidade de responder: as “certezas” se
convertem em dúvidas e as “verdades” não passam de opiniões e hipóteses. Quando
parecíamos haver aprendido a lição, perguntas novas se erguem como gigantescos
pontos de interrogação.... Justamente nesta hora, no silêncio da oração, o
Senhor murmura palavras de vida eterna!
Quando todas as luzes se apagam e não há estrelas na noite escura. Sentimo-nos
saturados de tantas “coisas” que pareciam indispensáveis, desviando-nos daquilo
que é único e essencial. Perdemos a capacidade de distinguir o supérfluo do que
é absoluto. Afastamo-nos do foco central de nossas vidas. Nuvens de chumbo pesa
sobre nossas cabeças, céu surdo e mudo, longínquo e indiferente. Batem à porta,
com fúria e insistência, a solidão, o isolamento e o abandono. Rugem dentro do
peito rajadas de ódio, rancor e vingança. Além disso, a inveja, a mágoa e o
ciúme destilam veneno no coração amargurado. Paixões, instintos e interesses
mesquinhos turvam as águas da alma... Então, sim, mesmo sem falar, o Senhor nos
dirige palavras de vida eterna!
Quando não vislumbramos o fim do deserto, nem qualquer sinal de oásis ou de
fertilidade. No jardim, as folhas deixam de cobrir os ramos secos da árvore e
os botões se recusam a abrir-se em flor. No leito dos rios, as águas se cansam
de sussurrar e cantar as melodias da natureza. Tampouco a brisa suave, matutina
ou vespertina, se dispõe a acariciar nossas faces precocemente envelhecidas e
enrugadas, ou de nos acalentar com cantigas familiares. Até mesmo os pássaros
se esquecem de anunciar a nova aurora e esta surge com cara de inverno. Nas
praças e ruas, as crianças emburradas não querem brincar e correr, gritar e
pular. Os fatos e boatos tornam-se vãos e vazios, como se a existência não passasse
de um absurdo sem qualquer sentido. A exemplo de espectros ou fantasmas,
continuamos a percorrer caminhos órfãos, solitários e perdidos.... É o momento
de ouvir, no fundo da alma, as palavras de vida eterna!
2. Palavras
filhas do “Verbo que se fez carne e armou sua tenda entre nós”
Palavra feita carne, pessoa que vive e caminha, respira e se alimenta,
constrói laços, estabelece relações, cria amigos. Carne que se manifesta em
atitudes e comportamentos reais, concretos humano-divinos ou divino-humanos.
Transforma-se em olhar cheio de amor e compaixão por aqueles que a sociedade
despreza, discrimina e marginaliza – os últimos, os pequenos e os mais
necessitados. É também sorriso livre a aberto, que perdoa e resgata qualquer
ser humano da consciência de pecado-pobreza-enfermidade, três termos
indissociáveis e aparentados na cultura religiosa de então. Ademais, ergue-nos
das fraquezas e fracassos, dos medos e angústias, do desengano e do desespero...
Verbo divino que se faz carne humana!
Verbo/carne que é toque capaz de abençoar, sanar e cicatrizar qualquer
ferida, do corpo ou do espírito. Toque amigo e carinhoso, como só o conhecem
aqueles que muito amam ou muito sofrem. Gesto largo e generoso que se aproxima,
compromete e engendra em seus seguidores um sentimento de solidariedade. Abraço
apertado, linguagem muda e calorosa, mas que transmite paz, serenidade e
segurança. Presença sensível e sempre atenta às necessidades do outro, ao redor
da qual respira-se um ar novo, oxigênio perfumado de primavera... Verbo que se
traduz em Boa Notícia para os pobres!
Palavra que é luz resplandecente e cujos raios desvendam os recantos mais
ocultos e desconhecidos de nosso ser, as reentrâncias indômitas do coração
humano. Difundem-se igualmente pelos cantos escondidos de nossas casas e de
nossas vidas, nada deixando na escuridão. Brilho que se origina na face divina
e que se apresenta como “caminho, verdade e vida” para os que se sentem
transviados. Mais ainda, promessa viva e verdadeira de “permanecer conosco até
o final dos tempos”, assegurando-nos que “não tenhamos medo!”... Verbo que se
faz pão vivo na mesa da Eucaristia e que nutre e fortalece o espírito!
3. Palavra
escrita com os pés nos caminhos humanos
Verbo/palavra diferente daquelas que a boca não se cansa de proferir à enxurrada
e que, depois se soltas, impossível de recolhê-las. Muitas vezes palavreado vazio
e estéril que, a exemplo das folhas secas, terminam varridas pelo vento e se
convertem em lixo. Diferente também daquelas que tantas mãos, ao longo dos
séculos, deixaram escritas. Palavras, palavras, palavras... quantas vezes
corroídas pelas traças, tornadas supérfluas ou ilegíveis pela ação do tempo. A
boca e as mãos humanas, não raro, deixam para as gerações futuras palavras vâs,
fúteis, voláteis, enganosas (a começar por estas que acabo de escrever!)... Ao
contrário, a palavra escrita com os pés deixa marcas para a eternidade!
Os pés, e somente eles, são capazes de escrever palavras que se tornam
rastos nos caminhos de todo peregrino. Deixam no chão pegadas vivas que, nas
veredas mais inóspitas, íngrimes e ignotas, apontam novos horizontes. Verbo que
se faz carne e cujos pés, abençoados e
incansáveis, “percorrem aldeias e povoados” ao encontro dos pobres e excluídos.
Que se dispõem a caminharem ao encontro das “multidões cansadas e abatidas,
como ovelhas sem pastor”. Mas que são capazes de deter-se diante da dor e do
grito, da consciência de culpa e do arrependimento, do sofrimento e da súplica
silenciosa, da pergunta e da busca sincera, da conversão e da fé teimosa e
tenaz, enfim, do “caído e ferido” à beira da estrada e da vida... Pés que
escrevem palavras com a sensibilidade e o encanto de dedos divinos e misteriosos!
Palavra/carne que se fazem pés, partindo em busca dos famintos e sedentos,
para saciá-los. Ou para consolar os aflitos, fazer rir os que choram,
fortalecer a fé e esperança dos perseguidos por causa da justiça. E ainda, para
visitar os doentes, os que estão nus ou na prisão, libertar os oprimidos, dar a
vista aos cegos e a voz aos mudos. Pés e mãos que curam todo tipo de doença,
levantam os encurvados, restituem a vida aos mortos, põem em marcha os
paralíticos. Fazem-se migrantes com os migrantes, sonham e lutam pela conquista
do direito e da justiça... Pés que escrevem para todos e para todos os tempos e
lugares!
4. Palavras
que vento algum apaga
Verbo igual a palavras revestidas de carne e impregnadas de profecia,
porque escritas com os pés sujos pelo pó da estrada, pelo suor dos
trabalhadores, pela lama dos embates cotidianos e pelo sangue dos mártires.
Palavras gravadas no pergaminho da história com caracteres de fogo sobre o
ferro. E que, por isso mesmo, jamais serão apagadas pelo vento efêmero da moda,
das formulações políticas e das ideologias, sempre provisórias. Tampouco
poderão ser ofuscadas na louca disputa pela riqueza e o brilho, pelo nome e a
glória, pelo poder e a tirania. E menos ainda pelo rumor estridente da
corrupção, da violência, das drogas e da guerra. Pés que, por mais frágeis e
humildes, deixam uma mensagem indelével nas encruzilhadas da história!
Os pés, e somente eles, pelo seu testemunho e pela sua coerência, podem
escrever palavras de vida eterna. Na casa de Nazaré, nos caminhos da Galileia,
nos encontros com os que o procuravam, na cidade de Jerusalém, na ceia de
despedida, na agonia do Horto das Oliveiras, no julgamento e condenação à
morte, na flagelação e via crucis ou
no tormento do alto da cruz – palavras não escritas, mas que jamais poderão ser
varridas pelo tempo... Palavras com tempero de amor e sangue que nada e ninguém
pode borrar!
Pés que, no Verbo feito carne, amor e doação sem medida, deixam o legado de
palavras eternas. Eternas não porque nos transportam a outro mundo, acima, além
ou fora da história, mas porque, aqui e agora, no terreno mesmo dos acontecimentos
humanos, transmitem ao corpo e à alma um sabor ao mesmo tempo sólido e inefável
de algo imortal. Palavras eternas porque, embora não escritas pelo protagonista
principal, apontam para a Ressurreição, vitória final e definitiva da vida
sobre a morte, trazendo vestígios antecipatórios da “Jesusalém Celeste”, do
“grande banquete do Reino de Deus”... Sim, “Tu tens palavras de vida eterna”!
Roma,
Itália, 16 de março de 2014
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
José é uma das figuras mais
silenciosas nas narrativas evangélicas. Ao mesmo tempo, porém, aparece sempre
na hora certo e no lugar certo. Quando se trata de proteger a família – mãe e
filho – lá está ele. Verdade que conta com os anjos, mensageiros de Deus, que o
alertam sobre as maquinações dos “filhos das trevas”. Mas, alertado dos riscos
que correm Jesus e Maria, põe-se logo em marcha, seja fugindo para o Egito,
seja de lá retornando. Exerce certo protagonismo na infância de Jesus, porém,
não há registro de sua presença na vida adulta do profeta itinerante. Pouco ou
nada se sabe de seu destino. É lícito supor que também ele estaria ao pé da
cruz, na hora trágica da morte de Jesus!...
Tudo indica que se trata de um
caráter discreto, homem de poucas palavras e de guardar segredos. Podemos
também ver nele um profissional de experiência, o carpinteiro de Nazaré,
trabalhador sério e respeitado. Sinais de uma sabedoria inata que, em lugar de
ações intempestivas frente aos imprevistos da vida (como a gravidez de Maria,
por exemplo), prefere o silêncio, a escuta e a espera. Aqui também temos a
intervenção dos mensageiros de Deus, como atores principais, mas é José que
toma as providências práticas e necessárias. Os seres alados necessitam dos pés
e das mãos de José para garantir a segurança da Sagrada Família.
Não obstante, o humilde
carpinteiro permanece como uma espécie de ator de bastidores. Raramente aparece
em cena. Hoje
diríamos que não parece gostar de holofotes, câmeras e microfones. Como se não
se sentisse à vontade no palco, em evidência diante dos espectadores. Menos à
vontade ainda no cenário dos acontecimentos que, mais tarde, irão se desenrolar
com seu filho adotivo. Se de Jesus se diz que “passou pela vida fazendo bem”,
de José teremos poucas notícias. Não faz barulho, como quem caminha de pés
descalços, silencioso e oculto.
Os estudiosos da Bíblia,
particularmente do Novo Testamento, nos alertam que não podemos olhar para
essas narrativas sobre a infância de Jesus como fatos históricos. Constituem
antes acomodações pós-pascais ao nascimento do Filho de Deus, isto é,
grandioso, misterioso, milagroso. Mas isso não invalida a reflexão sobre a
presença simultaneamente discreta e oportuna de José nesses relatos. Fictícias
ou não, os autores dessas páginas apresentam a figura do “pai adotivo de Jesus”
como alguém com um papel secundário, embora relevante.
Partindo do pano de fundo dos
parágrafos anteriores, surpreende o número de pessoas que, no mundo inteiro e
ao longo da história, foram batizadas com o nome de José. Desnecessário
deter-se em pesquisas para constatar que esse é o nome mais recorrente em
praticamente todos os povos e culturas do mundo ocidental. No judaísmo, no
cristianismo católico ou protestante e nos movimentos religiosos derivados,
José se impõe como nome quase obrigatório de um dos filhos de não poucas
famílias. Mesmo entre os que recebem outro nome de pia, muitos tratam de
intercalar o José como intermediário entre nome e sobrenome.
A surpresa é ainda maior se nos
detemos sobre determinadas manifestações da devoção popular a São José. É sem
dúvida uma das mais disseminadas no universo católico. No nordeste brasileiro,
por exemplo, o dia do santo, a 19 de março, constitui, ao mesmo tempo, um marco
para a carência ou a abundância de chuvas e, consequentemente, um marco para o
novo plantio. De acordo com uma crença popular bastante generalizada, se a
estiagem se prolongar além do São José, o ano tende a ser pobre em feijão,
milho, batata, mandioca, inhame, etc. Chuva no “São José” (19 de março)
significa milho no “São João” (24 de junho). Por outro lado, não são poucos os
religiosos e os sacerdotes que, respectivamente, fazem sua profissão perpétua,
ou se ordenam presbíteros, exatamente nesse mesmo dia.
Como explicar essa dupla
homenagem a São José? Implícita ou explicitamente, é fácil identificar-se com o
José dos Evangelhos. Na sociedade do espetáculo (Guy Debord) em que vivemos e
nos movemos, são poucas as estrelas e incontáveis os planetas. Algumas pessoas
se destacam e brilham com luz própria, mas a imensa maioria apenas reflete o
brilho dos astros mais eminentes. O culto ao corpo e à celebridade se difunde
juntamente com a exacerbação do subjetivismo e do individualismo. Porém, raros
são os senhores Fulano, Sicrano ou Beltrano, e mais raras ainda as beldades,
princesas. A tirania do prazer ou o império do efêmero (para usar expressões de
Jean-Claude Guillebaud e Gilles Lipovetsky), só é possível graças a dezenas,
centenas ou milhares de coadjuvantes. Estes são os Josés, inúmeros e
desconhecidos, com o sobrenome de Silva, Souza, Santos, Oliveira, Gonçalves, e
assim por diante.
No entanto, é preciso estar
atento às pérolas ocultas por trás das mãos calejadas, dos rostos impenetráveis
e das almas rudes desses Josés. Mais do que apoiar-se no sucesso momentâneo e
fugaz, eles seguem com os pés firmes no cotidiano, ainda que cheio de surpresas
e adversidades. Mais do que colher as luzes de espetáculos fulgurantes e efêmeros,
eles procuram lançar sementes no solo úmido e escuro da terra. Mais do que explodir
rojões que sobem e iluminam os céus, mas com a mesma rapidez descem e viram
cinzas, eles acreditam que as mudanças se erguem do chão, através de pequenos
gestos de solidariedade.
Há, contudo, um segredo ainda
mais misterioso, um tesouro escondido, ao qual esses Josés costumam ter acesso
imediato. Sabem pela experiência que a felicidade duradoura não está no
sucesso, no dinheiro, na conta bancária, nos privilégios, nos títulos, no
patrimônio acumulado – mas numa prática diária e silenciosa do bem. Surfar sobre
a onda dos sucessos equivale a surfar nas depressões dos fracassos. Uns são
direta e alternadamente proporcionais aos outros. Expectativas inflacionadas,
tal como os balões de ar, murcham com facilidade e geram frustrações igualmente
infladas. Todo domingo de festa, regado a comida, bebida e embriaguez, é
seguido de uma segunda-feira de ressaca. Se a cruz aponta para a ressurreição,
esta supõe aquela.
Os Josés evitam os saltos de
lebre. Preferem o passo lento e firme da tartaruga ou do jumento, nosso irmão,
diria o nordestino. Depositam sua confiança não nos pulos em falso, mas num
caminhar laborioso, regular e persistente. Sabem como extrair alegrias miúdas
de uma palavra, de um olhar, de um gesto, de uma visita, de um sorriso, de um
beijo, de um abraço, de um toque... E sabem que é nessas mínimas coisas que
reside uma felicidade menos volátil e mais sólida. Aprendem a tirar água de
pedras, a colher flores no deserto estéril, a acender uma vela no meio da
escuridão. Raramente se deixam levar pela aparência de grandiosidade,
desconfiam dos passos largos. Mais ainda: desconfiam da própria energia,
colocando-se nas mãos de uma força que desconhecem, mas em que crêem.
Normalmente não sobem muito
alto, mas tampouco ficam expostos a quedas bruscas. Mais facilmente descem ao
coração da terra e das coisas. Suas palavras costumam ser poucas e
parcimoniosas, mas revestidas de uma sabedoria simples e profunda. Os ditos
populares, ricos e concentrados, nascem, crescem e cruzam as encruzilhadas do
mundo com a persistência dos Josés. São diamantes lapidados com sua experiência
oculta e silenciosa. A própria palavra “José”, concentrada e valorizada como
moeda preciosa, percorre as famílias, os povos e as culturas.
José não deixa de ser, também, a
cara da migração. Esta, de fato, põe em marcha uma grande quantidade de Josés.
O próprio “pai adotivo” de Jesus, esposo de Maria, é testemunha disso. Um novo
olhar aos Evangelhos basta para dar-se conta de como ele, primeiro, por causa
do recenseamento, sobe de Nazaré a Belém, lugar em que se completam os dias de
Maria ela dá á luz um numa manjedoura, “pois não havia lugar para eles”; depois
de nascido o menino, empreende a fuga para o Egito, protegendo o recém-nascido
da fúria e perseguição de Herodes; dessa terra estrangeira, retorna à própria
pátria, quando a tormenta já tinha se acalmado; por fim, ao longo da vida,
quantas vezes terá se deslocado por causa desse Filho “rebelde”, o qual
insistia que “o seu Reino não era deste mundo”!
Não é essa a trajetória de
inúmeros migrantes? De tribulação em tribulação, de fuga em fuga, de sonho em
sonho, de busca em
busca... Sempre perseguindo o futuro, e este como que sempre
lhes escapando entre os dedos. Josés, milhões de pessoas sem terra nem lugar,
sem rumo nem pátria... Josés a caminho! Josés que, por sê-lo, vivem inquietos e
irrequietos. Rompem obstáculos e fronteiras, abrindo com os ombros curvados os
horizontes de um novo amanhã. É nome comum de um povo acostumado à estrada. Não
costuma figurar entre as famílias milionárias, nobres e aristocráticas,
assentadas solidamente sobre suas fortalezas e suas jazidas de ouro e prata.
Josés são pessoas pouco vinculadas a castelos e fazendas, normalmente habitam
tendas. Conhecendo de perto a transitoriedade e a provisoriedade dos bens
terrenos, podem desenvolver uma ambivalência diante da riqueza: ou se agarram
ao pouco que possuem, lutando com unhas e dentes para ter mais, ou amadurecem
um despojamento que os torna mais leves e livres. Neste último caso, aprendem a
lição de depurar a mala e a alma, para caminhar com um fardo menos carregado de
coisas supérfluas.
Por isso, ao contrário daqueles
que nascem em berço de ouro e a ele se apegam morbidamente, os Josés, e entre
estes os migrantes, tendem a uma maior abertura quanto ao futuro. Estão mais
preparados para as surpresas da história. Especialmente em momentos de crise e
tormenta, enquanto os que moram em castelos e fortalezas correm a se abrigar no
berço dourado e saudoso da infância, os Josés costumam ser impelidos para a
fronteira. Os primeiros, com o coração preso aos seus tesouros acumulados,
lutam para mantê-los a todo o custo; os segundos, encontram-se mais preparados
para enfrentar as pedras e espinhos que a existência apresenta. Tenderão a
rasgar veredas novas, a se aventurarem, pois nada têm a perder. Das duas uma:
ou são tomados pelo medo e a angústia da miséria já experimentada na carne e na
alma, agarrando-se mesquinhamente a qualquer migalha; ou se lançam intrépidos à
luta por algo diferente. Neste caso, a coragem lhes é praticamente inata. Mas
com muita raridade terão seu nome gravado nos jornais. Em geral não são
mártires abatidos a tiro, de nome no calendário, de folha na parede. Vivem,
antes, um martírio de gota a gota, passo a passo, miúdo e diário, onde uma
travessia dura e teimosa substitui as ações vistosas, sensacionais e
espetaculares.
Roma, Itália, 19 de março de 2014
O MUNDO COMO PÁTRIA
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, CS
O processo de
globalização, que se acentua a partir dos anos de 1970 e se estende pelas
primeiras décadas do século XXI, vem modificando gradualmente a noção de
pátria. “Minha pátria é a língua portuguesa”, dizia o poeta Fernando Pessoa.
Dom J. B. Scalabrini, bispo de Piacenza, Itália, por sua vez, sustentava, no
final do século XIX, que “para os migrantes a pátria é a terra que lhes dá o
pão”. O mesmo bispo, considerado “pai e apóstolo dos migrantes, acrescentava
que o fenômeno migratório “funde e aperfeiçoa as civilizações, amplia o
conceito de pátria para além dos confins materiais, tornando o mundo a pátria
do homem”.
A emergência
histórica dos estados nacionais amadurece junto com a modernidade, e consolida-se
com a Declaração da Independência dos Estados Unidos (1776) e com a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), dois documentos que nascem,
respectivamente, com a guerra da independência, nas terras novas de além-mar, e
com a Reolução Francesa, no velho continente. Chegava-se, assim, ao ápice de um
longo percurso, onde a subjetividade e a individualidade, que cresceram
gradualmente desde o renascimento, o humanismo e o iluminismo, desembocavam na
consciência de uma cidadania autônoma frente ao Estado
O conceito de
pátria, nação e cidadania, particularmente na Europa, nascia estreitamente
vinculado a uma certa homogeneidade não só física e territorial, mas também
linguística, históricae cultural. De fato, se tomamos a França e a Inglaterra
como dois exemplos clássicos, língua, território, história e cultura unificam a
população numa certa origem comum. Semelhante origem homogênea vinha reforçada
pelo cimento religioso, católico num caso e protestante no outro. Resulta que o
conjunto da população se reportava a uma trajetória que, apesar de não poucas
tensões, guerras e adversidades, constituia uma referência nacional.
A forte emigração
europeia em direção às Américas, como também à Austrália e Nova Zelândia, no
decorrer do século XIX e primeiras décadas do século XX – os historiadores
estimam em mais de 60 milhões o número de pessoas deixaram a Itália, Alemanha,
Grã Bretanha, Polônia, Irlanda, Espanha, Portugal, etc. – a bem dizer, inaugura
uma nova concepção de pátria. Nesta, “a terra que dá o pão” toma o lugar da
terra natal como referência de solo pátrio. Nos países de destino os imigrantes
se mesclam numa população que, longe de contar com um passado comum,
constitui-se a partir de uma origem fortemente heterogênea, quer em termos
territoriais e históricos, quer de um ponto de vista línguístico e cultural.
Tal componente
heterogênea da população, entretanto, acentua-se nos dias atuais com a maior
intensidade, complexidade e diversidade do fenômeno da mobilidade humana. Esta,
de fato, corta raízes, rompe fronteiras e, em perspetiva geográfica, desloca
inteiras massas humanas. Ao mesmo tempo, porém, as desterritorializa,
dissociando-as de um determinado lugar físico. Não é fácil expor as raízes ao
sol, digamos assim, mas, uma vez desenraízadas, as pessoas ou famílias se
encontram mais predispostas a novos deslocamentos, bem como a “optar” por uma
nova pátria, desde que garantam ali uma sobrevivência mais ou menos adequada.
Isso não obstante a saudade das origens e o sonho do retorno. Saudade e sonho
que, de resto, aparecem como uma das características mais recorrentes nas
“histórias de migrantes”.
De um ponto de
vista antropológico e sociocultural, a comunidade religiosa figura muitas vezes como um lugar
privilegiado para a retomada da noção de pátria. Ali, no espaço da Igreja, o
migrante reencontra seus conterrâneos, às vezes consegue reunir a família
dispersa, refaz laços antigos e costura novos relacionamentos. Esse espaço inicial
é condição básica para uma integração menos traumática e menos demorada.
Idioma, expressões culturais do país de origem, devoções populares, festas
religiosas ou patrióticas e visão de mundo de alguma forma unem pessoas e
famílias que a migração havia temporariamente separado. Se, num primeiro momento,
o imigrante conta predominantemente com o suporte dos parentes, amigos e
familiares mais próximos para “conhecer e entrar” na nova realidade, num
segundo momento a comunidade religiosa pode ser-lhe de grande ajuda, tanto para
o encontro/reencontro quanto para regularizar a situação .
Em geral a
comunidade vai de encontro não somente às suas necessidades culturais e/ou
religiosas, mas também ajuda-o no árduo e constrangedor processo de
documentação, na assistência jurídica e às vezes imediata, como também na busca
de trabalho, habitação, escola para os filhos, e outras incunbências. Não sem
razão alguns imigrantes concluem que “o coração de Jesus” – referindo-se aos
espaços, encontros, celebrações comunitárias e à boa aceitação – “é a pátria dos
que estão longe de sua terra e de sua família”. Os recém-chegados sabem da
comunidade através de uma rede capilar de informações, a qual, por outro lado
presta grande serviço à coesão e à defesa do grupo, especialmente quando se
desencadeiam ondas de discriminação, preconceito, xenofobia ou até perseguição
aberta.
Não são poucos os
casos em que pessoas, famílias ou grupos inteiros encontraram na respectiva
Igreja um trampolim para a integração no país de destino. Tropeçamos, deste
modo, com um aparente paradoxo. Por uma parte, os imigrantes utilizam a
religião para reencontrar-se e reconstituir-se como povo, recordar seus
costumes originais, degustar comidas típicas, celebrar as próprias datas
festivas e sentir-se “em casa”, enquanto população etnicamente homogênea, mas
estrangeira. De outra parte, utilizam a Igreja também para inserir-se na
sociedade heterogênea que os recebe e onde terão de viver. Há aqui,
inegavelmente, um duplo instinto de sobrevivência: devem garantir-se quanto às
necessidades básicas, proteger-se frente a uma eventual hostilidade (que não
raro se torna real, rancorosa e racista) e, ao mesmo tempo, mantêm-se atentos a
todos os meios que os levem a integrar-se de forma mais rápida e positiva,
tanto no mercado de trabalho quanto no convívio com outros gruos étnicos.
De forma consciente
ou inconsciente, implícita ou explícita, o conceito de pátria torna-se um
instrumento duplo, simultaneamente de coesão e integração. Duplo e não despido
de certa ambiguidade. Com referêncoa ao país de origem e ao passado comum, a noção de pátria serve como união,
defesa e reforço dos laços primários de nascimento, parentesco, língua,
história e cultura; mas na medida em que, de forma mais ou menos definitiva, passam
a habitar o país de destino, e com
respeito ao futuro, a mesma concepção de pátria adquire um significado
diferente. Representa uma forma de reivindicar os direitos básicos de um
cidadão em toda a sua dignidade. Pátria então torna-se direito à cidadania. E
esta se abre ao leque mais amplo de toda e qualquer nação onde o migrante
chegue e se instale. “We are America”
– lia-se numa faixa exibida por uma multidão de migrantes hispano-americanos em
protesto pelas ruas de Los Angeles.
Roma, Itália, 15 de março de
2014
Vida Religiosa e profecia
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
A Vida Religiosa é chamada, entre outras coisas, a ser terreno fértil para
a profecia, tenha esta um caráter de testemunho ou de denúncia/anúncio. Não
poucas vezes, porém, devido a uma série de fatores, serve-lhe de entrave, de
impecilho. Isto é, a profecia se asfixia no interior mesmo da vivência
comunitária, como um risco a ser evitado. Semelhante ambiguidade deriva, em
geral, do grau de liberdade que se cultiva no dia-a-dia da própria comunidade.
Esta, muitas vezes, em nome de uma coexistência pacífica, confude obediência
com submissão incondicional aos superiores. Pior ainda, confunde vida fraterna
com a “paz do cemitério”, onde viver equivale a fingir-se de “morto”,
indolente, sem vontade própria.
Aqui nunca é demais insistir que a verdadeira obediência
evangélica se fundamenta não no binômio autoritarismo/servilismo, menos ainda
numa anulação pura e simples das opiniões diferentes ou até mesmo contrárias.
Fundamenta-se, isso sim, no diálogo aberto, franco e transparente em meio a
pessoas vivas e, portanto, portadoras de medos e dúvidas, incertezas e
contradições, dores e temores. Nesta perspectiva, obediência representa a contraface
da liberdade. Em outras palavras, quanto mais livre de minhas paixões e
instintos, de meus persnonalismos e projetos pessoais, mais disposto me torno a
dialogar sobre um projeto comunitáro e, consequentemente, a assumi-lo
pessoalmente e a obedecer ao desenrolar natural de seus meios e finalidades.
Quando o “voto de obediência” não é entendido dessa
forma, facilmente o fato de calar-se, de omitir a própria opinião, se converte
em mutismo. O que significa recusa de manifestar o seu parecer, atitude que
leva a um fechamento e isolamento sobre si mesmo. Em lugar de um silêncio
povoado com a riqueza das recordações pessoais e/ou comunitárias e com a
presença do espírito, instala-se um silêncio árido, desértico, estéril e
fortemente corrosivo. Tentando evitar tensões, debates e conflitos, cria-se um
ambiente envenenado, em que as palavras se transformam em setas afiadas e de
duplo sentido, os olhares oblíquos e desconfiados. Não é difícil imaginar os
mal-entendidos que tudo isso provoca.
Convém, portanto, não esquecer que a profecia, por sua
própria natureza, é conflituosa. Não no sentido de que ela, por si só, engendre
e alimente o fogo bélico dos conflitos, mas porque revelando a situação nua e
crua dos fatos desvenda os mecanismos sutis, perversos e tortuosos para
ocultá-los. O profeta tropeça com conflitos porque, a cada passo, bate-se com
os tiranos e tiranias de plantão. Em termos metafóricos, a profecia procura acender
a luz da verdade e esta ilumina os cantos mais obscuros de um determinado
recinto, de uma determinada ação ou de uma determinada prática política.
Aqueles que agem nas trevas da mentira e do erro sentem-se imediatamente a
descoberto, despidos de seus subterfúgios. Da mesma forma que os ratos, têm
medo da luz e tratam de refugiar-se longe de seus raios. Mais concretamente, a
profecia desnuda a face verdadeira de quem se esconde atrás de uma máscara,
revela a hipocrisia muitas vezes envernizada por um falso véu de “bom
comportamento”.
Ocorre que na Vida Religiosa, para não encarar de frente
tais atitudes mesquinhas, camufladas e contraditórias, muitas vezes se apela a
um pseudo-silêncio, às vezes disfarçado de oração, o qual, na verdade não pasa
de um mutismo que destila e se asfixia no próprio veneno. Procura-se salvar as
aparências de uma boa convivência, sacrificando o dever e o direito da
profecia. Substituem-se as exigências evangélicas da verdade e da justiça por
uma espécie de corporativismo tácito entre amigos ou “coirmãos”. Dentro de
casa, as conversas nos corredores e à mesa evitam cuidadosamente os assuntos
“espinhosos”, com a finalidade de não arranhar a imagem da vida comunitária e
fraterna. Neste sentido, não raro vida religiosa e hipocrisia apresentam-se
como irmãs siamesas. Na tentativa de mostrar um aparente convívio pacífico,
deixam-se de lado os temas polêmicos, seja do ponto de vista comunitário, seja
do ponto de vista sociopastoral e político. Troca-se o compromisso empenhativo
da profecia pelo comodismo de uma comunidade “sem problemas”. Com a pretensão
de ser “obedientes, castos, pobres e santos”, joga-se para debaixo do tapete da
sala o lixo que deveria ser definitivamente varrido, não camuflado diante das
visitas. O chamado à “perfeição evangélica”, em lugar de ser um estímulo à
caridade, torna-se um freio a qualquer ação fora dos muros do
seminário/convento.
Não é essa a atitude evangélica no seguimento de Jesus,
se e quanto este é levado a sério. De fato, o profeta itinerante de Nazaré,
longe de evitar as tensões, contrastes, ambiguidades e conflitos do cotidiano,
os enfrentava à plena luz do dia. Em diversos episódios dos relatos
evangélicos, o Mestre põe a nu as armadilhas e inverdades de seus adversários,
especialmente os saduceus, escribas e fariseus. Como seu predecessor João
Batista, não teme chamá-os de raposas, serpentes, raça de víboras, sepúlcros
caiados, hipócritas. Numa palavra, injustiças, desigualdades e formas de
exploração não devem ser encobertas sob pretexto de salvar a harmonia da
comunidade religiosa, mas superadas pelo entendimento recíproco, aberto e
direto. Neste sentido, na vida de comunidade, não basta a coexistência
harmoniosa entre pessoas necessariamente diferentes. É preciso chegar à escuta,
à compreensão, à empatia, ao confronto e ao diálogo – em vista de uma mútua
depuração das próprias opiniões e de um mútuo enriquecimento. De ambas as
partes, sempre há algo a aprender e algo a ensinar. Daí a preocupação constante
a um processo de purificação que jamais chega a um ponto final.
A comunidade religosa, com a franqueza e o respeito
devidos, tanto ad intra quanto ad extra, deve reservar espaço e
liberdade para o debate sobre os problemas e desafios do contexto comunitário, social,
econômico, político e cultural em que vive. Ad
intra, a correção fraterna, feita com equilíbrio, respeito e
responsabilidade, toma o lugar do mutismo, do rancor e da falta de comunicação.
Quando exercida na perspectiva do amor evangélico, não pode ser confundida com
perseguição pessoal, mas aceita com igual equilíbrio e maturidade. Cada
religioso ou religiosa deve sentir-se livre para manifestar seu parecer em
qualquer situação. Neste caso, confronto dialógico, atenção à palavra e aos
sentimentos do outro e transparência são imprescidíveis. O “sim” vocacional, em
determinadas circunstâncias, pode traduzir-se em um “não” diante da mentira e
das formas manifestas de escamotear a realidade dos fatos.
Ad
extra, como se vê no
Magnificat (Lc 1,46-55), a obediência ao projeto divino de salvação se reveste,
ao mesmo tempo, de um “sim” ao plano de Deus, e de um “não” aos poderosos que,
acintosa e inescrupulosamente sentados em seus tronos, desfrutam o rabalho dos
pobres e famintos. Disso resulta que a aparente “harmonia fraterna” no interior
da comunidade não pode ser utilizada como pretexto para deixar de lado a missão
profética a que é chamada a Vida Religiosa Consagrada. A profecia, por sua vez,
se nutre com uma dupla fonte de água viva: de um lado, a intimidade com Deus na
oração, na meditação e na contemplação – o que significa, ao mesmo tempo, um
encontro profundo consigo mesmo e com a pessoa de Jesus Cristo. De outro lado,
a profecia recolhe o clamor que se levanta do chão para fazê-lo chegar ao “ouvidos
do Senhor”, o qual jamais abandona “o órfão, a viúva e o estrangeiro”. Por isso
é que o profeta traça uma ponte entre o céu e a terra, entre a afição do povo e
a misericórdia de Deus.
Roma, Itália, 07 de março de 2014
Mercadores de carne humana
Pe.
Alfredo J. Goncalves, CS
A
frase do titulo representa uma denuncia de Mons. Joao
Batista Scalabrini, entao bispo de Piacenza, norte da Italia, no final do
seculo XIX e inicio do seculo XX. Scalabrini
– chamado “pai e apostolo dos migrantes” – referia-se aos intermediarios gananciosos
e sem piedade que, no fenomeno das grandes migracoes historicas da epoca,
traficavam com a abundante mao-de-obra dos emigrados europeus (especialmente
italianos) para as Americas, a Australia e a Nova Zelandia. Segundo
historiadores da envergadura de Hobsbawn e Peter Gay, entre 1820 e 1920, mais
de 60 milhoes de pessoas deixaram o velho continente com o objetovo de
reconstruir a vida nas “terras novas” de alem-mar. Vitimas
da expulsao em massa do campo para a cidade, enquanto certa porcentagem se
empregava na industria nascente, boa parte nao conseguia trabalho, tendo de
cruzar os oceanos para fugir de um destino de miseria e fome na Europa
rapidamente urbanizada.
Entre
o desemprego, a pobreza e a necessidade, por um lado, e o desafio de “far l’America”, por outro, interpunham-se
os “mercadores de carne humana”. Mercadores,
sim, porque gente sem coracao e sem alma diante dos dramos humanos causados
pelos efeitos da Revolucao Industrial. Ao contrario, aproveitavam-se da
condicao e das esperancas dos emigranets que buscava um futuro melhor para a
familia, comercializando inescrupulosamente os seus sonhos de trabalho e pao,
patria e dignidade. Se e verdade que a mobilidade
humana faz parte do direito de ir e vir,
tambem e certo que muitas vezes tais deslocamentos intercontinentais tornavam-se
forcados e compulsorios, devido ao exodo rural em massa e as condicoes
extremamente precarias nos paises ou regioes de origem.
Passou-se
mais de um seculo, porem a frase/denuncia de Scalabrini continua viva e atual,
como uma chaga aberta em pleno seculo XXI. O trafico de seres humanos para a
exploracao trabalhista ou sexual atualmente atinge milhoes de pessoas no mundo
inteiro, como mostram os debates em torno da Campanha da Fraternidade deste
ano. Juntamente com o trafico de armas e de drogas, constitui uma das fontes de
maior rentabilidade da economia submersa do mundo globalizado. Verdadeira bomba
atomica, oculta e letal, que silenciosamente fere, mutila e mata, deixando
marcas irreparaveis nas vitimas que sobrevivem e em suas familias. Os relatos
de quem conseguiu escapar de tais “infernos humanos” nao deixam margem a
duvidas!
Nos
subterraneos sombrios das relacoes internacionais (e as vezes em plena luz do
dia), a rede mundial do crime organizado nao poupa particularmente mulheres e
criancas, quando o objetivo e a exploracao ao maximo de sua energia. No fim da
linha desse comercio ilegal e ilegitimo, grande parte dos sonhos se convertem
em pesadelos. Como o continente africano nos tempos da escravidao, o Brasil hoje
vem sendo um dos paises que fornecem bom numero de “trabalhadores e
trabalhadoras” para essas transacoes criminosas. O texto-base da CF/2014 traca
um quadro preocupante sobre os pontos nevralgicos das rotas nacionais e
internacionais, bem como da origem e destino das pessoas envolvidas.
As
reflexoes e orientacoes da CF/2014, iluminadas pela Palavra de Deus, nos colocam
diante de um desafio que interpela todos e cada um em particular: o que fazer
diante dessa situacao? Tres palavras poderiam resumir nossas possibilidades de
acao socio-pastoral ou politica: acolhida, denuncia e informacao.
A
acolhida constitui, digamos assim, o
DNA nao somente da Pastoral Migratoria, mas da Pastoral Social de toda a acao
evangelizadora. No caso dos trafico de pessoas humanas, a atitude de acolhida
requer uma sensibilidade especial diante das feridas profundas das vitimas, na
maioria das vezes tao dificeis de serem cicatrizadas. Em nivel pessoal ou
familiar, eclesial ou social, impoe-se uma solidariedade incondicional para com
aqueles e aquelas que sofreram tais abusos. Nao cabem aqui a discriminacao e o
preconceito, nem o racismo e a xenofobia. Tampouco cabem limitacoes
geograficas, eclesiais ou geopoliticas, uma vez que o crime nao respeita
fronteiras de qualquer especie. Em tudo e por tudo,
deve prevalecer a defesa do direito e da dignidade da pessoa humana – fundamento,
fio condutor e coluna vertebral de toda a Doutrina Social da Igreja.
A
denuncia, por sua vez, torna-se a
chave para combater o trafico nacional e internacional. Neste caso, porem,
convem utizar de prudencia: nao se trata tanto uma denuncia em nivel local e
personalizado, a qual, embora corajosa e profetica, pode acarretar perseguicoes
desnecessarias. Ainda que em determinadas circunstancias essa postura nao possa
ser evitada, o mais indicado segue sendo a denuncia em nivel institucional,
envolvendo movimentos e pastorais sociais, entidades, organizacoes nao
governamentais, o conjunto das Igrejas, setores dos governos, da Policia
Federal e do Ministerio Publico, bem como organismos internacionais de defesa
dos direitos humnos. Novamente aqui a acao dever ser ampla, conjunta e
abrangente – sem fronteiras. Devido ao poder e aos meios inescrupulosos do
crime organizado, a protecao das vitimas e das pessoas que defendem sua causa
nao pode ser desconsiderada, mas tornar-se uma preocupacao constante.
Quanto
a informacao, esta se revela uma condition sine qua non, seja nos polos e
regioes de origem, seja nos lugares de destino. Numeros, fatos e rotas do crime
organizado devem ser divulgadas amplamente entre as familias, associacoes, escolas,
comunidades, meios de comunicacao e em toda a sociedade. A revolucao
informatica em geral e Internet em particular pode reveler-se um instrumento
eficaz no combate ao trafico, como de resto o e para os proprios traficantes.
Todos os meios devem ser utilizados para desmascarar e desmantelar a cadeia
internacional do crime organizado em todas as suas ramificacoes. A informacao atualizada
e permanente pode figurar como um verdadeiro antivirus, uma vacina contra a possibilidade de cair na ratoeira do
trafico, nao raro um caminho sem retorno. Semelhante rede, como bem sabemos,
concentra um duplo carater de risco: encontra-se ramificada em praticamente
todo o mundo e nao respeita codigos de conduta, ou pior, segue rigorosamente o
principio radical da eliminacao de “arquivos”.
Tokyo, Japao, 13 de fevereiro de 2014
O século das migrações inversas
Muitos começam a deixar as grandes cidades em busca de qualidade de vida no interior do país
Rafaela Bez
Acordar, levantar, tomar café da manhã, pegar ônibus, trabalhar, almoçar, trabalhar de novo, pegar ônibus, voltar para casa, jantar, ver televisão, tomar banho, dormir. Em meio a isso: estresse, violência, correria, poluição, alimentação incorreta, insônia, preocupação. Essa é a rotina da maioria da população que vive nas grandes metrópoles. Mas, nos últimos anos, algumas pessoas estão revertendo essa situação e fazendo com que o campo, as praias, a roça e a natureza voltem a ter cada vez mais habitantes. O mundo vive a inversão do êxodo rural.
Uma vontade intensa de viver com simplicidade, em comunidade e em comunhão com a natureza. Esses são alguns dos vários fatores que fizeram com que a socióloga Gisele Carneiro, que nasceu no Rio de Janeiro, mudasse primeiro para Curitiba e, recentemente, se transferisse para uma aldeia indígena, no Espírito Santo, transformando o seu estilo de vida. “A cidade grande oferece inúmeras possibilidades culturais, conforto, consumo, opções de lazer e facilidades diversas. No entanto, é preciso pagar um preço alto para tanta comodidade: a distância da natureza, que desumaniza o homem, o apelo capitalista ao consumismo, as relações superficiais entre as pessoas, a desconfiança, o medo, a correria do dia a dia, que prejudicam a reflexão, a escuta, o sentir e a observação de perceber o que está à nossa volta”, ressalta Gisele.
Nem todos querem ou estão preparados para uma mudança radical na questão da mobilidade. É preciso exercitar o desapego do conforto e abdicar das comodidades que o mundo urbano oferece. Há um encanto por cidades grandes. Ainda são fortes o preconceito e a desvalorização das pessoas que vivem e trabalham em áreas rurais. “Para contribuir com esta visão preconceituosa e mítica, há todo o apelo dos meios de comunicação, a própria literatura e o senso comum que coloca o indígena como preguiçoso ou o caipira como ‘jeca’, atrasado, ignorante, alvo de chacota. É preciso afirmar e reafirmar o valor do trabalho rural, problematizando o senso comum, fazer uma reflexão crítica sobre o que é qualidade de vida, solidariedade, valor do trabalho e o cuidado e a comunhão com a natureza”, explica a socióloga.
Em uma pesquisa nacional do Programa Luz para Todos, do Governo Federal, que é coordenado pelo Ministério de Minas e Energia, 10,6 milhões de brasileiros que foram beneficiados pelo projeto, 4,8%, ou 96 mil em todo o país, voltaram a viver no campo por identificarem a oportunidade de ter ali uma qualidade de vida maior do que nas grandes cidades.
Atualmente, o apelo desse tipo de alternativa de vida segue nessa direção, na medida em que o interior do país se transforma. Antes caracterizado pelo isolamento e pelas dificuldades de comunicação, hoje a televisão praticamente se universalizou, assim como o acesso ao telefone celular. Além disso, a internet também está chegando aos rincões mais profundos do país. Ao mesmo tempo se pode, com variações é claro, ter acesso aos bens de consumo.
Dessa maneira, a fronteira entre o urbano e o rural, por exemplo, vai ficando cada vez mais tênue. Além disso, novas, boas e às vezes melhores oportunidades de emprego estão surgindo em localidades distantes dos grandes centros urbanos e que vão atraindo as pessoas. “As cidades maiores, ao mesmo tempo em que oferecem mais facilidades e oportunidades em termos de acesso à saúde, educação e trabalho, sofrem dos problemas próprios das metrópoles: poluição, aumento da violência, problemas relacionados à mobilidade, estresse e correria.” É o que explica o sociólogo do Centro de Pesquisa e Apoio ao Trabalhador André Langer. Para ele, a maior dificuldade da sociedade hoje, em modificar seu estilo de vida, é não saber renunciar a algumas facilidades, como cinema, shopping centers e a possibilidade de comprar as coisas na hora em que fazem falta.
Há também quem mude seu estilo de vida divido as novas oportunidades de emprego originadas no interior ou nas pequenas cidades. “A maior dificuldade talvez seja a adaptação. É preciso estar aberto e não oferecer resistência a esse novo estilo de vida possível. Às vezes, somos viciados em nossos antigos hábitos, o que pode dificultar a mudança. É preciso ter ‘espírito’ aberto ao novo”, afirma o comerciante Valdemir Chimborski, que nasceu em Minas Gerais, morou em Curitiba por mais de 20 anos e hoje reside na cidade de Pitanga (PR), que tem um pouco mais de 8 mil habitantes. Ele mudou-se com a esposa e o filho, de 5 anos, pois sua mulher desejava trabalhar em uma empresa da região. Para isso, deixaram sua vida em Curitiba e partiram rumo ao norte do estado. “A qualidade de vida da população pode ser impulsionada por uma mudança de local de moradia. O motivo principal de mudança de Curitiba para uma cidade menor, além da busca por novas oportunidades, foi também a procura de um novo estilo de vida, onde se possa ter uma maior tranquilidade”, explica Chimborski.
Paises de imigracao?
Pe.
Alfredo J. Goncalces, CS
Estados
Unidos, Canada, Inglaterra e Australia sao os quarto paises historicamente
considerados de imigracao. Nao sao os unicos, evidentemente, mas os que se
proclaim como tal. Os atentados de 11 de setembro de 2001 (New York e
Washington, USA), entretanto, mesmo deixando intacto esse principio historico,
modificaram substancialmente as regras do jogo. De forma generalizada, uma
peneira mais fina e mas rigida filtra e seleciona cuidadosamente os “indesejados”.
Estes o podem ser pelas mais diversas razoes, na base das quais estao,
naturalmente, aos resquicios da ideologia
de suguranca nacional. Herdeira dos tempos sombrios da guerra fria, essa
criminaliza todo tipo de oposicao, de movimento social, organizacao de base e
de mobilizacao. O inimigo real, potencial ou virtual e todo aquele que se opoe
a ordem estabelecida (status quo) e
as determinacoes do regime de platao, seja do ponto de vista da politica
interna, seja nas nas relacoes internacionais.
Nas
ultimas decadas do seculo XX e inicio do seculo XXI (e mais precisamente depois
do citado 11 de setembro), tal
criminalizacao atinge o campo plural, variado e complexo da mobilidade humana.
Nao raro os imigrantes, alem de serem confundidos com narcotraficantes ou
“mulas” usadas para o transporte da droga, sao tidos como criminosos pelo
simples fato de tentar escapar de um destino de miseria e fome no proprio pais
de nascimento. A busca de trabalho e de um futuro mais digno, por si so, pode
ser vista como uma ameaca a ao “bem-estar” da populacao do pais de destino.
Disso resulta, por parte dos governos e autoridades, um tratamento muitas vezes
semelhante aquele utilizado para combater o crime organizado. No fim da linha, hostilidade,
humilhacao, perseguicao, prisao e deportacao costumam ser os cartoes de visitas
que esperam os imigrantes, de maneira particular os menos capacitados. A maior
prova disso emerge no sistematico enrijecimento da Lei de Imigracao em quase
todos os paises.
Os
residuos nefandos e nefastos da ideologia
de seguranca nacional sao motivados, e ao mesmo tempo motivam, a
discriminacao e o preconceito, o racismo e a xenophobia diante do “outro, diferente,
estranho, estrangeiro”. A tal ponto que este, especialmente nos tempos de
crise, torna-se frequentemente o bode
expiatorio ideal para qualquer disturbio ou disfuncao na ordem publica.
Evidencia-se aqui uma contradicao de fundo, nem sempre explicita, nos paises de
imigracao. Por um lado, necessitam da mao-de-obra facil e barata dos imigrantes
para os servicos mais sujos e pesados, mais periogosos e mal remunerados. O que
os leva a abrir-lhes a porta dos fundos, com inumeras formas de contratos de
trabalho, em boa medida degradantes, sem necessariamente concerder-lhes a plena
cidadania ou a simples permanencia. Ou seja, a porta da frente permanence
cerrada. Alguns exemplos sao conhecidos e notorarios: idonesianos, filipinos e
vitnamitas na Australia e Japao; asiaticos e latinoamericanos nos Estados
Unidos e Canada; africanos, asiaticos e hispanoamericanos nos paises da Europa…
A lista poderia prosseguir pela carta geografica de praticamente todo o
planeta.
Por
outro lado, com o processo de aprofundamento da crise socioeconomica, os
estrangeiros estao na lista dos que devem ser imediatamente sacrificados. Os
contratos de trabalho temporarios, a manutencao de uma cumplice clandestinidade
e a precariedade de suas condicoes de vida os tornam mais vulneraveis as
tempestades de inverno na economia globalizada. Sem documentacao devidamente
regularizada costumam ser as canas mais frageis, que o vento varre, verga e
quebra. Nestes momentos, desnuda-se completamente a mascara ou a hipocrisia dos
governantes dos chamados paises de imigracao. Da mesma forma que o mercado, sem
coracao e sem alma, costumam ser implacaveis com os “sens papiers”. O caminho
do retorno (deliberado, compulsorio ou violento) esta sempre a espreita de cada
imigrante. Em numerosos casos, o sonho se converte em pesadelo.
Mas
o pior esta por vir! De acordo com a duracao e profundidade da crise, com o
comportamento das autoridades, com o sensacionalismo da midia e com a cultura
de cada pais – alem de outros fatores circunstanciais – os imigranres podem
converter-se em alvo predileto de uma hostilidade generalizada e incontrolavel.
A populacao pode ser estimulada a agressao pura e simples. Em lugar de
trabalhadores bracais silenciados, ordeiros e silenciosos, passam a ser vistos
como um problema ou ameaca, porque roubam os postos de
trabalho dos desempregados nativos. Dai a violencia aberta, o passo costuma ser
curto e tragico. O problema/ameaca transforma-se em vitima privilegiada. Basta
conferir os frequentes ataques de grupos neonazistas (e outros),
particularmente nos paises centrais, a pessoas marginalizadas e indefesas,
entre as quais aparece com destaque o rosto dos imigrantes. Ou entao o aumento
de casos de deportacao por parte de alguns paises, tais como Estados Unidos,
Inglaterra, Alemanha,..
O
desafio aqui e substituir a concepcao negativa, baseada na ideologia de
seguranca nacional, por uma visao positiva
sobre o intercambio nao so de capital, mercadorias, tecnologia e servicos, mas
tambem de trabalhadores com suas familias. Se e verdade que “no coracao de cada
pessoa e no coracao de cada cultura existem sementes do Verbo” – como insiste a
Doutrina Social da Igreja – tambem e certo que, ao se deslocarem de uma regiao
a outra ou de um pais a outro, as pessoas levam consigo os valores culturais e
religiosos que as nutrem e sustentam. E podem igualmente nutrir e sustentar outras
pessoas e povos, culturas e nacoes. Como o voo dos passaros e a passagem da brisa
fecundam as plantas e as prepara para a colheita, o voo e o intercambio de
pessoas pode fecundar outros grupos. Ou melhor, o encontro e o confronto de
povos e culturas abre espaco para uma fecundacao reciproca, onde ambas as
partes saem mutuamente enriquecidas. Mais do que uma soma, verifica-se uma
multiplicacao de valores que enriquece a propria humanidade. Neste caso, o
problema/ameaca converte-se numa oportunidade
de crescimento, de sangue novo e oxigenio primaveril em organismos que
muitas vezes caminham a passos largos para o outono.
A
tarefa requerida pelo desafio do paragrafo anterior implica supercar a nocao de
gueto pela nocao de comunidade. O gueto
isola-se, teme todo tipo de contato, fecha-se sobre si mesmo, institui uma
fronteira entre os “de dentro” e os “de fora”, levanta barreiras a qualquer
tipo de comunicacao. Buscando a auto-defesa ou a coesao do grupo, consciente ou
inconscientemente, pode engendrar hostilidade de ambas os lados. Diferentemente
do gueto, a comunidade permanence
aberta ao outro/diferente, dispoe-se a receber e oferecer algo de novo,
estimula o encontro e procura cultivar o dialogo, na perspective de um
crescimento reciproco. Evidente que o caminho que vai do gueto a comunidade nao
e facil. Nao ha magia nem receita pronto. Trata-se, pelo contrario, de um
percurso longo e laborioso. O importante e que, nessa tarefa conjunta, cada
pessoa, grupo, povo ou cultura estejam dispostos tanto a critica quanto a autocritica,
tanto a reconhecer os proprios erros e valores quanto os erros e valores do
“outro”. No fundo, esta em jogo um processo de depuracao constante, seja do
ponto de vista pessoal e familiar, seja do ponto de vista social e cultural.
Depurar quer dizer purificar e purificar-se no encontro com o outro.
Sydney,
Australia, 09 de fevereiro de 2014
Mercadores de carne humana
Pe. Alfredo J. Goncalves, CS
A
frase do titulo representa uma denuncia de Mons. Joao Batista Scalabrini, entao
bispo de Piacenza, norte da Italia, no final do seculo XIX e inicio do seculo
XX. Scalabrini – chamado “pai e apostolo dos migrantes” – referia-se aos intermediarios
gananciosos e sem piedade que, no fenomeno das grandes migracoes historicas da
epoca, traficavam com a abundante mao-de-obra dos emigrados europeus
(especialmente italianos) para as Americas, a Australia e a Nova Zelandia.
Segundo historiadores da envergadura de Hobsbawn e Peter Gay, entre 1820 e
1920, mais de 60 milhoes de pessoas deixaram o velho continente com o objetovo
de reconstruir a vida nas “terras novas” de alem-mar. Vitimas da expulsao em massa
do campo para a cidade, enquanto certa porcentagem se empregava na industria
nascente, boa parte nao conseguia trabalho, tendo de cruzar os oceanos para
fugir de um destino de miseria e fome na Europa rapidamente urbanizada.
Entre
o desemprego, a pobreza e a necessidade, por um lado, e o desafio de “far l’America”, por outro, interpunham-se
os “mercadores de carne humana”. Mercadores,
sim, porque gente sem coracao e sem alma diante dos dramos humanos causados
pelos efeitos da Revolucao Industrial. Ao contrario, aproveitavam-se da
condicao e das esperancas dos emigranets que buscava um futuro melhor para a
familia, comercializando inescrupulosamente os seus sonhos de trabalho e pao,
patria e dignidade. Se e verdade que a mobilidade humana faz parte do direito de ir e vir, tambem e certo que
muitas vezes tais deslocamentos intercontinentais tornavam-se forcados e compulsorios,
devido ao exodo rural em massa e as condicoes extremamente precarias nos paises
ou regioes de origem.
Passou-se
mais de um seculo, porem a frase/denuncia de Scalabrini continua viva e atual,
como uma chaga aberta em pleno seculo XXI. O trafico de seres humanos para a
exploracao trabalhista ou sexual atualmente atinge milhoes de pessoas no mundo
inteiro, como mostram os debates em torno da Campanha da Fraternidade deste
ano. Juntamente com o trafico de armas e de drogas, constitui uma das fontes de
maior rentabilidade da economia submersa do mundo globalizado. Verdadeira bomba
atomica, oculta e letal, que silenciosamente fere, mutila e mata, deixando
marcas irreparaveis nas vitimas que sobrevivem e em suas familias. Os relatos
de quem conseguiu escapar de tais “infernos humanos” nao deixam margem a
duvidas!
Nos
subterraneos sombrios das relacoes internacionais (e as vezes em plena luz do
dia), a rede mundial do crime organizado nao poupa particularmente mulheres e
criancas, quando o objetivo e a exploracao ao maximo de sua energia. No fim da
linha desse comercio ilegal e ilegitimo, grande parte dos sonhos se convertem
em pesadelos. Como o continente africano nos tempos da escravidao, o Brasil hoje
vem sendo um dos paises que fornecem bom numero de “trabalhadores e
trabalhadoras” para essas transacoes criminosas. O texto-base da CF/2014 traca
um quadro preocupante sobre os pontos nevralgicos das rotas nacionais e
internacionais, bem como da origem e destino das pessoas envolvidas.
As
reflexoes e orientacoes da CF/2014, iluminadas pela Palavra de Deus, nos colocam
diante de um desafio que interpela todos e cada um em particular: o que fazer
diante dessa situacao? Tres palavras poderiam resumir nossas possibilidades de
acao socio-pastoral ou politica: acolhida, denuncia e informacao.
A
acolhida constitui, digamos assim, o
DNA nao somente da Pastoral Migratoria, mas da Pastoral Social de toda a acao
evangelizadora. No caso dos trafico de pessoas humanas, a atitude de acolhida
requer uma sensibilidade especial diante das feridas profundas das vitimas, na
maioria das vezes tao dificeis de serem cicatrizadas. Em nivel pessoal ou
familiar, eclesial ou social, impoe-se uma solidariedade incondicional para com
aqueles e aquelas que sofreram tais abusos. Nao cabem aqui a discriminacao e o
preconceito, nem o racismo e a xenofobia. Tampouco cabem limitacoes
geograficas, eclesiais ou geopoliticas, uma vez que o crime nao respeita
fronteiras de qualquer especie. Em tudo e por tudo, deve prevalecer a defesa do
direito e da dignidade da pessoa humana – fundamento, fio condutor e coluna
vertebral de toda a Doutrina Social da Igreja.
A
denuncia, por sua vez, torna-se a
chave para combater o trafico nacional e internacional. Neste caso, porem,
convem utizar de prudencia: nao se trata tanto uma denuncia em nivel local e
personalizado, a qual, embora corajosa e profetica, pode acarretar perseguicoes
desnecessarias. Ainda que em determinadas circunstancias essa postura nao possa
ser evitada, o mais indicado segue sendo a denuncia em nivel institucional,
envolvendo movimentos e pastorais sociais, entidades, organizacoes nao
governamentais, o conjunto das Igrejas, setores dos governos, da Policia
Federal e do Ministerio Publico, bem como organismos internacionais de defesa
dos direitos humnos. Novamente aqui a acao dever ser ampla, conjunta e
abrangente – sem fronteiras. Devido ao poder e aos meios inescrupulosos do
crime organizado, a protecao das vitimas e das pessoas que defendem sua causa
nao pode ser desconsiderada, mas tornar-se uma preocupacao constante.
Quanto
a informacao, esta se revela uma condition sine qua non, seja nos polos e
regioes de origem, seja nos lugares de destino. Numeros, fatos e rotas do crime
organizado devem ser divulgadas amplamente entre as familias, associacoes, escolas,
comunidades, meios de comunicacao e em toda a sociedade. A revolucao
informatica em geral e Internet em particular pode reveler-se um instrumento
eficaz no combate ao trafico, como de resto o e para os proprios traficantes.
Todos os meios devem ser utilizados para desmascarar e desmantelar a cadeia
internacional do crime organizado em todas as suas ramificacoes. A informacao atualizada
e permanente pode figurar como um verdadeiro antivirus, uma vacina contra a possibilidade de cair na ratoeira do
trafico, nao raro um caminho sem retorno. Semelhante rede, como bem sabemos,
concentra um duplo carater de risco: encontra-se ramificada em praticamente
todo o mundo e nao respeita codigos de conduta, ou pior, segue rigorosamente o
principio radical da eliminacao de “arquivos”.
Tokyo, Japao, 13 de fevereiro de 2014
FALSIDADE TRAVESTIDA DE VIRTUDE
Tão certo de sua superioridade,
que se dá ao luxo da humildade;
Tão certo de sua riqueza,
Que se dá ao luxo da pobreza;
Tão certo de seu poder,
Que se dá ao luxo da submissão;
Tão certo de sua vitória,
Que se dá ao luxo de apontar o adversário;
Tão certo de seu projeto,
Que se dá ao luxo de aparentar obediência;
Tão certo de sua beleza,
Que se dá ao luxo da simplicidade;
Tão certo de seu sucesso,
Que se dá ao luxo do auto-desprezo;
Tão certo de sua imagem,
Que se dá ao luxo da indiferença;
Tão certo de seu saber,
Que se dá ao luxo da ignorância;
Tão certo de sua força
Que se dá ao luxo de parecer frágil.
Tão certo de sua importância,
Que se dá ao luxo de falar em renúncia.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Roma, Itália, 22 de janeiro de 2014
O livro e a oração
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, CS
Em pleno centro da cidade, entro
numa Igreja e prostro-me por alguns segundos diante do Sacrário, em atitude de
adoração ao Santíssimo. O ambiente é agradável, isolado dos rumores externos e
banhado de uma luz reduzida. Numa palavra, um convite à oração e à meditação. Em
poucos instantes, porém, acomodo-me no primeiro banco, tomo um livro de
espiritualidade (não faltam títulos e sugestões a esse respeito) e, com certa
voracidade, começo a ler. Vou em frente por um par de páginas até que!...
Subitamente sou tomado pela
intuição de que o livro em minhas mãos constitui uma barreira entre o Deus que
eu busco e a minha sede de água viva, ou então, entre o vácuo de meu interior e
a necessidade de algo que alimente em mim o sentido da vida. Em lugar de ponte,
o livro se converte em obstáculo. De fato, na leitura corrida, quase sem
pausas, prevalece a argumentação lógica e conceitual da razão e o esforço
pessoal para compreender. Mais ou menos conscientemente, sinto que aquela
leitura-oração não passa de um monólogo que segue falando, falando, falando!...
Mas não demonstra a mínima possibilidade de escuta. Com isso não entendo
afirmar que, no mergulho da oração, o livro seja sempre inoportuno. Trata-se apenas
de um instrumento, um meio pedagógico. Meio que tanto pode ajudar-nos a rezar,
quanto servir de pretexto para escapar à interpelação de Deus e dos pobres.
Tudo depende da forma como se faz uso de suas palavras, frases e parágrafos.
De qualquer maneira, inquieto e
ansioso, fecho o livro e ponho-me a prescrutar o mistério divino nos diferentes
símbolos que ornam e embelezam o interior da Igreja. Mas a razão parece não estar
satisfeita em sua fome de conceitos e de lógica matemática, digamos assim. Insiste
no retorno imediato à leitura, parecendo temer o vazio, como se teme o abismo.
Resisto-lhe, esforçando-me em escutar a voz do próprio vazio e do silêncio. Em
algum lugar dentro de mim, a tensão se faz cada vez mais aguda. De um lado, a
razão, faminta e voraz, segue solicitando a necessidade de palavras, palavras,
palavras (com letra minúscula)!... De outro, a alma busca e anseia por um pouco
de repouso na quietude da tarde ou no segredo da Palavra (com letra maiúscula).
A muito custo, consigo colocar
entre parêntesis os apelos da razão e, por curtos instantes, esquecer o livro.
Empenho-me em blindar sua lógica eloquente, tanto mais sedutora quanto maior a
pretensão de falar do encontro com Deus. Uma verdadeira avalanche de argumentos
sobre como abrir o coração ao “silêncio do transcendente”. Porém, mesmo sob
tensão, sou capaz de intuir que essa enxurrada de palavras e de razões, na
verdade, fecha a porta à voz do outro, ou do totalmente Outro. Na verdade, o
livro fala de Deus, mas não com Deus, e menos ainda se deixa interpelar
pelo encanto secreto e silencioso de sua presença-ausência. De tanto
verbalizar, não aprendeu a sensibilidade e sabedoria da escuta. Ignora que “o
Verbo se fez carne” e “armou sua tenda entre nós” – caminha conosco na
história.
O livro não se deixa vencer: entrelaça
argumento sobre argumento, procura preencher todos os segundos desse “momento
de oração”, fascina por suas noções abstratas, impõe-se e e grita!... Mas não
se abre ao diálogo, não dá espaço à voz do mistério oculto na penumbra da
Igreja. Mantém-se unilateral no seu eterno monólogo, demonstrando, uma vez
mais, total incapacidade de parar, silenciar e escutar. Se, no início, foi
fácil eliminar os ruídos externos, persistem contudo os ruídos internos. E o
maior deles parece ser justamente o livro: fechado, sem dúvida, mas ali no
banco, ao alcance da mão.
Redobro o esforço de
concentração, procuro esquecer definitivamente aquele objeto cada vez mais inoportuno.
Antenho-me ao silêncio e tento abrir espaço para a escuta. Então sim, o
palavrório do livro deixa de fazer barulho. O rumor dá lugar à Palavra viva e
presente! E, como num passo de mágica, aquele “momento de oração” se torna um espelho
límpido e transparente: vejo-me nu, só, frágil, pecador, impotente e pobre
diante do Pai!... Mas, ao mesmo tempo, com uma vontade férrea de seguir-lhe a
vontade, a voz e os passos. A alma, a mente e o coração dividios: perguntas e
dúvidas, incongruências e contradições se acumulam, se mesclam e se confundem
dentro de mim. Nem por isso me sinto rejeitado, marginalizado de sua presença e
de sua casa. Nem por isso menos amado e próximo do brilho de sua face. Ao contrário,
sinto que Ele se volta em minha direção com tanto mais carinho e intensidade
quanto mais eu me apresento carente, solitário, necessitado de um olhar, de uma
palavra, de um sorriso, de um toque e de um abraço fraterno e amigo!...
Só então percebo que minha
“frágil embarcação”, após a tormenta dos mares bravios, descansa nas águas
serenas de seu perdão e de seu amor, ambos incomensuráveis. Um só e minúsculo
raio de luz basta para eu me sentir em casa, na imensidão luminosa de sua
sabedoria; uma só e minúscula gota de água basta para eu me sentir imerso no
oceano infinito de sua misericórdia; um só e fugaz olhar basta para eu me
sentir revestido de graça no espaço ilimitado de sua bondade; um só e leve
toque de seus dedos invisíveis basta para eu me sentir protegido diante das tempestades
que certamente hão de vir. Lembro aquela imagem do salmista sobre a “criança
recém-amamentada, que, após fazer calar seus desejos, repousa tranquila no colo
de sua mãe” (Sl 131).
Mas minha alma, ao mesmo tempo saciada
e sedenta, segue prescrutando a penumbra do mistério, o inefável segredo da
presença divina. E me pergunto: se o Pai, em suas entranhas maternas, revela
tanta compaixão, transmitindo força e segurança a um pobre e irrelevante
sacerdote, que dizer de sua atenção, sensibilidade e solidariedade para com os
pobres e excluídos, os migrantes e exilados, os doentes e pequenos, “os mais necessitados
e últimos” – para usar uma expressão tão cara ao Papa Francisco? Se seu coração
de Pai/Mãe se abre para receber este indigno ministro, o que não fará para
acolher aqueles que, sobre a face da terra, não têm ninguém por eles? E, por
isso mesmo, são seus prediletos?!
E em meu íntimo o mistério de
seu amor cresce e se alarga a um nível indescritível, onde tudo e todos
encontram pão e paz, casa e pátria. Faz-se “carne” para devolver-nos o
“espírito” perdido, fragmentado e disperso em meio às turbulências da
existência; desce e humilha-se até a “morte de cruz” para elevar-nos à “glória
da ressureição” e da vida sem fim, sem pranto e sem lágrimas; torna-se “homem”
para despertar em nós a centelha “divina” coberta pelas cinzas, ruínas e
escombros de nossos combates diários; franquea-nos a entrada de sua “morada”
para que possamos abrir-lhe o “coração e a alma” quando “está à porta e bate”,
no desejo de cear conosco (Ap 3,20).
Chego assim ao mistério da
encarnação: Deus irrompe na história humana para romper os grilhões do pecado,
da escravidão e da exploração; para derrubar de seus tronos, de seus palácios e
de seu poder tiranos e tiranias; para colocar todos os inimigos debaixo de seus
pés, incluindo a morte. Com seu amor ao mesmo tempo frágil e todo-poderoso, vem
dizer-nos que o tempo não se encerra nas fortalezas, nos calendários e nas
formas socioeconômicas ou político-culturais hoje vigentes. Não! O tempo
permanece aberto, as potencialidades e horizontes da história se expandem,
novas alternativas são possíveis!... Como antecipação do Reino de Deus.
O Menino Deus, pobre mas de uma
riqueza sem medida, vem ensinar-nos a olhar não para trás, mas para frente. Com
sua vida, morte e ressurreição, realiza em parte a promessa do Pai. Mas a
aliança permanece viva e ativa, pois “a origem contém sempre um destino”, diz o
filósofo Heidegger. Por isso ensina-nos também a preparar o terreno para sua
segunda vinda, quando a promessa se realizará por completo no “novo céu e nova
terra” (Ap 21,1-8). De fato, como lembra o teólogo W. Pannenberg, “o futuro é a
dimensão a partir da qual a eternidade sentra no tempo”. A partir da fé e da
esperança no cumprimento total da promessa, Deus nos chama a superar tudo o que
nos acorrenta ao passado e ao presente. Não para fugir do mundo, mas, a exemplo
do Filho, assumindo as contradições socio-históricas para transfigurá-las.
Nisso nos acompanha o Espírito Santo com sua graça e seu discernimento.
Roma, Itália, 19 de janeiro de 2014
Scalabrini e os sinais dos
tempos
por ocasião do dia Mundial do
Migrante
Pe. Alfrdo J. Gonçalves, CS
A expressão “sinais dos tempos” remete ao Evangelho de
Mateus. Jesus reprova a incredulidade dos fariseus porque, sendo capazes de ler
no céu os sintomas que anunciam chuva ou sol, revelam-se ao mesmo tempo
incapazes de ler na terra os sinais dos
tempos (Mt 16,1-4). Estes últimos, em linguagem teológica, representam as
digitais de Deus no pergaminho da história. Os dedos invisíveis do Criador
costuram os fatos aparentemente brutos e absurdos, conferindo-lhes um sentido
mais profundo e oculto a olho nu. No ditado popular, “Deus escreve direito por
linhas tortas”. É justamente esse significado teológico da história que escapa
à percepção dos interlocutoes de do Mestre da Galileia, aferrados que estão ao
cumprimento estrito da lei. Conhecem, sim, os acontecimentos, mas não os
observam com os olhos da fé ou do coração. Voltam-se para o passado, ignorando
a irrupção divina no curso da trajetória humana.
Nesa perspectiva, o bispo de Piacenza, Itália, Giovanni
Batista Scalabrini, foi capaz de ser um homem do seu tempo. Nasceu em 1837 e
faleceu em 1905, tendo se revelado um protagonista do século XIX com os olhos
voltados para o século XX. Historiadores do porte de Peter Gay e Eric Hobsbawn
cunharam esse período como o século das revoluções e do movimento. Movimento
aqui em duplo sentido: o das máquinas e o das pessoas. Estas se moviam não
somente do campo para a cidade, mas também do velho continente europeu para as novas
terras da América, da Austrália e da Nova Zelândia. Quanto às máquinas, basta
pensar na velocidade sem precedentes do trem, do navio e do automóvel,
inicialmente movidos a vapor. Tempos modernos, com “sede de inovações” e em
permanente “agitação febril”, como se lê na abertura da Rerum Novarum, carta encíclica do Papa Leão XIII (1891) que
inaugura a Doutrina Social da Igreja.
Em termos mais concretos, podemos ver isso na figura do
próprio Scalabrini, que vê os migrantes não apenas como vítimas da história,
mas também como sujeitos, protagonistas e profetas de novos tempos. Vale
lembrar, de pasagem, que sua preocupação
com os emigrantes é contemporânea da preoupação da Igreja para com as condições
de trabalho dos operários. Se Leão XIII se volta para estes últimos, Scalabrini
está atento àqueles que sequer conseguiram trabalho na terra natal e são forçados
a cruzar os mares. Em outras palavras, a solicitude com a “questão social” na
Igreja é irmã gêmea da solicitude para com os desterrados e sem pátria ou, se
quisermos, da Pastoral dos Migrantes.
Nessa perspectiva, podemos destacar quatro dmensões da
ação pastoral de Scalabrini, homem de Deus, da Igreja e do povo migrante: a) deixar-se
interpelar pelos embates e combates da história, especialmente em momentos de
transformações estruturais; b) compadecer-se de suas vítimas, com atenção
particular àquelas deixadas à margem, como na parábola do bom samaritano (Lc
10,25-37); c) tomar posição firme e profética em seu favor, assumindo todas as
consequências: e d) superando assim o natural egocentrismo e isolamento a que
somos tentados, por nossa condição humana.
Primeiramente, da mesma forma que os fundadoes e
fundadoras de outras Congregações Religiosas, Scalabrini se impõe como um verdadeiro
termômetro que mede a temperatura do seu tempo. Seus escritos, suas obras e seu
comportamento mostram uma pessoa atenta a tudo que o cerca, que se deixa
interpelar pelas condições de vida dos “mais necessitados” (i più bisognosi). Interpelação
única, mas em quatro dimensões: saber escutar o rumor vivo e ativo dos fatos
históricos; abrir-se ao grito silencioso e silenciado dos que caem à beira da
estrada e da vida; entrar em diálogo com outras pessoas igualmente sensíveis ao
sofrimento alheio; e, como centro de tudo, cultivar uma intensa intimidade com
Deus no silêncio da oração, da meditação e da contemplação. Tanto que o século
do movimento, com milhões de trabalhadores que se deslocam em todas as direções,
também o move e remove. Scalabrnii, de fato, não limita seu zelo de pastor à
circunscrição da diocese, mas seu coração enxerga muito mais longe, inclusive
do outro lado do oceano, onde os emigrantes, sem o “sorriso da pátria e o conforto
da fé”, “nascem e morrem como bestas hmanas”.
Depois, diante das incongruências, injustiças e
contradições de tempos tão tumultuados, Scalabrini se comove com a imagem das
vítimas dessa agitação histórica. No seu relato sobre a “Estação de Milão”,
ícone para quem trabalha no campo da mobilidade humana, transparece uma
compaixão que mergulha suas raízes nas entranhas mais íntimas de sua alma, arrancando-lhes
palavras molhadas de lágrmas. “Eram migrantes!” – escreve, fortemente
interpelado. E acrescenta: “Parti comovido. Uma onda de pensamentos mistos dava-me
um nó no coração”. Faz lembrar os sentimentos de Jesus diante das “multidões
cansadas e abatidas, como ovelhas sem pastor” (Mt 9,35-38). Profundamente
sensível àqueles que buscam “a pátria que lhes dará o pão”, sofre com os que
partem, com os que ficam e com os que se tornam vulneráveis à cobiça e à falta
de escrupulo dos “mercadores de carne humana”.
Mas não lhe basta o impacto, a sensibilidade e a
compaixão para com os trabalhadores e as famílias em fuga. O chamado “pai e
apóstolo dos migrantes” se questiona: “Diante de um estado de coisas tão
lastimável, eu me faço com frequência a pergunta: como poder remediar?”. E o incansável
pastor dá um terceiro passo: parte para a ação solidária. Empreende viagens aos
Estados Unidos, ao Brasil e à Argentina, em busca de suas “ovelhas perdidas”.
Mas também não basta a ação individual ou personalista. Além do esforço
pessoal, funda os diferentes Institutos para levar adiante a sua intuição, a
sua obra e o que hoje chamaos de “carisma Scalabriniano”. O trabalho não pode
depender de uma única pessoa, necessita de uma estrutura mínima frente à
intensidade e diversidade do fenômemo migratório atual, bem como frente aos
desafios de uma sociedade cada vez mais complexa.
Por fim, o binômio gueto/comunidade serve para ilustrar a
superação de nossa tendência ao isolamento em tempos de “mares bravios”.
Enquanto o gueto se encerra sobre si
mesmo e se isola como caramujo, rompe todo contato com o mundo exterior como a
avestruz, promove uma hostilidade recíproca e com isso se empobrece – a
comunidade tende a abrir-se ao dinamismo do diálogo, aceita o intercâmbio de
ideias e valores, interage com o “outro, diferente, estranho”, enriquecendo-se
e enriquecendo o ambiente em que convive. Na diocese, na Igreja e na história, em
tempos de revolução e turbulência, Scalabrini se revelou capaz de superar a
tendência humana à fuga do mundo e à auto-suficiência, abrindo-se aos desafios cada
vez mais exigentes do mundo contemporâneo.
Retomando as quatro dimensões e aplicando-as à chamada
sociedade pósmoderna, impõe-se hoje mais do que nunca uma leitura atenta e
sempre atualizada dos “sinais dos tempos”, expressão usada pelo Papa Bento XVI
para designar o fenômeno das migrações, e retomada pelo Papa Francisco na
mensagem para a Jornada do Migrante de 2014, com o título Migrantes e refugiados: em direção a um mundo melhor. Título que,
de início, sem esquecer “o trabalho escravo, hoje moeda corrente”, sublinha que
“aquilo que anima tantos migrantes e refugiados é o binômio fé e esperança”.
Além disso, na mesma linha de Scalabrini, o Pontífice convida-nos a superar a
“desconfiança, o fechamento e a exclusão”, em vista de um “espírito de profunda
solidariedade e compaixão”. Nem pecisaria insistir que se trata de uma forma de
sair do gueto em direção à convivência comunitária, como nos dois retratos da
Igreja primitiva (At 2,42-47; 4,32-37).
Tomando como modelo a Família de Nazaré, que também foi
submetida “à experiência e ao rechaço” da condição de deslocamento forçado, o
Papa Francisco, em sintonia com o Documento de Aparecida, conclusivo da V
Assembleia dos bispos da América Latina e Caribe, não deixa de lembrar que “as
migrações podem fazer nascer possibilidades de uma nova evangelização, abrir
espaços ao crescimento de uma nova humanidade, preanunciada no Mistério Pascal:
uma humanidade onde cada terra estrangeira é pátria e cada pátria é terra
estrangeira”.
Roma, Itália, 14 de janeiro de 2014
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É noite do dia 6 de janeiro, data na
qual se evoca a memória dos reis magos que foram em busca do menino nascido em
Belém, e o povo Xukuru festeja o Rei do Orubá. Alguns homens da comunidade de
Palmeirinha trazem para o centro do terreiro pedaços de lenha caprichosamente
cortados em partes iguais. Valeriano Xavante se aproxima e, fazendo uso da
habilidade adquirida com seu povo, acende a fogueira em “um piscar de olhos”.
Rapidamente as chamas sobem, aumentando a sensação térmica do ambiente
naturalmente quente nessa época do ano. Crianças, jovens, adultos, anciãos,
todas as expressões geracionais da bonita gente de Palmeirinha vão se achegando
e formando o grande círculo em volta da fogueira onde acontecerá a roda de
conversas, cantos e danças. Um misto de memória e utopia toma conta do
ambiente, nos rostos de todos e todas se vê a tradução do sentimento interior:
prazer, curiosidade, alegria...
Palmeirinha está localizada na região
do Kariri, há cerca de 3 km da cidade de
Juazeiro do Norte. Lugar de peregrinação desde o final do século XIX, quando o
padre Cícero começou a atrair os sertanejos de várias partes do Nordeste que
para lá se deslocavam, inicialmente a pé. Muitos chegando a percorrer
distâncias superiores a mil km. Haroldo, missionário do Cimi que atua no sul da
Bahia, fez uma fala inicial e passou a palavra para Valeriano Xavante e para o
pajé Antonio Celestino, do povo Xukuru-Karri que, de forma breve, saudaram os
participantes daquele momento celebrativo. Como aquela região, território originalmente
ocupado pelos povos indígenas da família Kariri, transformou-se em lugar
sagrado para os nordestinos, que liderados por beatos e beatas protagonizaram
bonitos episódios de fé e resistência popular, os indígenas inicialmente
ouviram as histórias locais, contando com a contribuição da professora Maria do
Carmo, do professor Océlio e do padre Machado.
Alguns deles, principalmente os
pertencentes aos povos de Alagoas e Pernambuco, já tinham certa familiaridade
com os assuntos abordados, mesmo porque o Juazeiro também é uma referência
religiosa para seus povos. Mas outros ali presentes sequer tinham ouvido falar
naquelas experiências de fé. Contudo, a forma como as conversas ocorreram
favoreceram a compreensão por parte de todos e lhes possibilitou fazer uma
interface com as lutas de seus povos, desde a Confederação Kariri, grande
expressão da resistência indígena no final do século XVII, até as lutas
indígenas atuais que acontecem em todo o país. As conversas foram intercaladas
por cantos e danças dos povos Potiguara, Pataxó-Hã-Hã-Hãe, Pankararu e Xerente,
que envolveram todas as pessoas, levando-as a participar conjuntamente. Ali,
observando a fogueira e sendo aquecidos por seu calor, era possível sentir a
força espiritual do lugar, o KARIRI, hoje território sagrado para indígenas,
negros e sertanejos pobres; povos que lutam por justiça, testemunhos proféticos
que nunca se calam, vozes-saberes da periferia do mundo que carregam consigo a
esperança na LIBERTAÇÃO.
A celebração terminou com gosto de
“queremos mais”. Ninguém demonstrava cansaço, mas Haroldo lembrou que
precisávamos dormir e recompor as energias para o dia seguinte, quando na
manhã, ainda cedo, nos deslocamos para a cidade de Nova Olinda, distante 50 km de Palmeirinha, passando pela
Floresta Nacional do Araripe, um verdadeiro oásis em meio ao semiárido
nordestino. Em Nova Olinda, um dos 11 municípios
que integram a microrregião do Kariri cearense, visitamos a Casa Grande, um
ponto de cultura que além de ofertar cursos e atividades artístico-culturais
envolvendo a população local, abriga um pequeno museu sobre a presença indígena
na região. A viagem foi muito prazerosa e informativa. Após o retorno para
Palmeirinha, iniciou-se a preparação para a abertura do 13º Encontro
Intereclesial de Cebs, que ocorreu na noite do dia 7, com a presença de cerca
de 4 mil pessoas, vindas de todos os estados brasileiros, países da América
Latina, Europa, África e Ásia. A celebração aconteceu na Praça do Santuário de
São Francisco das Chagas, em Juazeiro do Norte. Mais um grande momento de
emoção e celebração dos projetos de vida dos povos lutadores da Terra, que dão
legitimidade ao “mote” inspirador do grande encontro: “Justiça e Profecia a
Serviço da Vida”.
VIZINHOS
e distantes DA FELICIDADE
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Era uma vez um preguiçoso que
morava à beira de um rio... Morreu de sede, evitando a fadiga de estender a mão
até o curso de água. Em termos existenciais, todos nos comportamos mais ou
menos assim. Tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão parecidos. Vizinhos da
felicidade, mas nos falta o salto
qualitativo. Ela bate à porta a cada momento, convidando-nos à sua casa;
traz uma gota de sua água viva, para despertar a sede do infinito; oferece-nos
o pão celeste, capaz de matar toda fome; envia-nos um raio de luz, ainda que
fugaz, tentando apontar o caminho do sol; abre-nos as perspectivas de um imenso
oceano de amor e misericórdia – porém, o medo de arriscar nos paralisa.
Acomodamo-nos facilmente à rotina da mesmice do dia-a-dia, daquilo que já nos é
familiar e conhecido, com grande risco de uma asfixia em meio à mediocridade.
Vem à toma a obra do escritor austríaco Robert Musil O homem sem qualidade, na qual o protagonista Ulrich assiste como
que da arquibancada, com ironia e ceticismo, o curso da vida na agitada Vienna
no início do século XX.
Aos ares novos de janelas e
portas abertas, como advertia o Papa João XXIII ao inaugurar o Concílio
Ecumênico Vaticano II, preferimos o oxigênio pesado dos ambientes fechados. Ali
nos sentimos seguros frente ao perigo das “coisas novas” que o mundo nos
apresenta diariamente. Cerramos todas as entradas e saídas da casa, mesmo que
isso possa acarretar a morte pelo própro veneno. Ao caminho minado da sociedade
e da história, preferimos o chão sólido e seguro nas marcas dos passos já
feitos. Com a força e a segurança da tradição, escapamos das vias demasiado
largas ou demasiado estreitas que o mundo externo pode apresentar. Evitamos a
ruas e avenidas, os cruzamentos e multidões, fugindo aos labirintos
entrelaçados e inextrincáveis das relações humanas. Melhor permanecer entre os
“nossos” do que se aventurar no meio dos “outros”. Melhor a garantia da
repetição do que o experimento da inovação.
Por mais paradoxal que pareça,
a rotina representa um dos males da chamada pósmodernidade. Uma espécie de
reação excessiva e doentia, diante da gigantesca avalanche de novidades que nos
cerca; um freio de mão puxado, quase um recuo, para contrabalançar a alucinada
velocidade dos acontecimentos; um cotidiano sob controle, acorrentado com firmeza, na contramão da
realidade buliçosa e virtual. Resulta que a ideia preconcebida de “relações frágeis,
superficiais, efêmeras e descartáveis” da pósmodernidade acaba gerando o seu
oposto, isto é, o isolamento dentro de relacionamentos intrafamiliares e
intracomunitários ou, no máximo, intra-étnicos. Ao pluralismo cultural e
religioso da sociedade pósmoderna, bem como à mescla de línguas e credos,
valores e contravalores, povos e nações, opõe-se o “gueto” encerrado sobre si
mesmo, normalmente hostil e hostilizado em relação à vizinhança.
Em sentido contrário à
globalização da economia, do capital, da tecnologia, das mercadorias, dos
serviços e dos movimentos migratórios, ressurgem com redobrada energia as
comunidades étnicas. Aqui implicações positivas e negativas se misturam, se
confundem e se alternam. Do ponto de vista positivo, a emergência das
identidades, frente à força devastadora do mercado total e ao risco de
uniformização como verdadeiros tratores, significa uma resistência sadia à
manutenção dos próprios valores e da própria unidade étnica. Em termos
negativos, o isolacionismo num mundo fortemente marcado pelo vaivém de gente,
pensamentos e ideias, a médio e a longo prazo tende a empobrecer qualquer
grupo. A esse respeito, convém distinguir comunidade e gueto. Enquanto este
último cria cercas (visíveis e invisíveis) para evitar qualquer aproximação de
fora para dentro ou de dentro para fora, a comunidade se mantém aberta ao fluxo
dos fatos e notícias e, portanto, disposta ao intercâmbio de valores e de
culturas. Em outras palavras, uma verdadeira comunidade se dispõe ao diálogo,
reciprocamente enriquecedor, ao passo que o gueto prefere o monólogo, pelo
temor de ser questionado e interpelado.
A rotina, a repetição, o
isolamento, a mesmice – tudo isso constitui uma forma de se opor à enorme
circulação de pessoas e coisas da pósmodernidade, fechando-lhe as portas ou resistindo-lhe
à frenética sedução. Laços tradicionais, sólidos e se possível imutáveis
contrapõem-se à “sociedade líquida”, ao “amor líquido” ou à “vida líquida”
(Zigmunt Bauman), onde tem-se a impressão que tudo seja “passageiro e
transitório”. Não se trata aqui de idealizar a pósmodernidade, nem demonizá-la,
mas de interrogar-se sobre suas potencialidades ocultas. Como a história não dá
marcha a ré e é impossível recriar o saudosismo do “paraíso perdido”, surge a
pergunta fundamental: como desvendar as digitais de Deus em meio ao tecido
social fragmentado do mundo pósmoderno? Redes sociais, Internet, celular, espaço
virtual, relacionamentos à distância – como identificar aí a face oculta e
resplandecente do Pai?
Voltamos novamente à questão da
felicidade, a qual encontra-se mais perto do que podemos imaginar. Vale
insistir, ela é a nossa vizinha tantas vezes ignorada, mas tememos as surpresas
do salto qualitativo. Dinheiro,
tecnologia, progresso, revolução informática, contatos virtuais, etc. não
trazem necessariamente felicidade, mas tampouco lhe são a priori adversários. Ao contrário, podem revelar inusitadas
oportunidades para chegar mais perto dela, ou de sua fonte. Se é certo que amor
e felicidade caminham de mãos dadas, então, também no mundo virtual e
pósmoderno, o mandamento evangélico de “amar a Deus e ao próximo” é a via mais
curta. Mas esta “via curta” revela-se longa, extremamente laboriosa e árdua.
Requer, além disso, uma tenacidade e uma perseverança que duram todo o percurso
de nossa existência.
O amor a Deus nos introduz num
clima de intimidade profunda, onde a criatura e seu Criador jamais se cansam de
saborear o sentido e o mistério da “Casa de Deus”. Assim reza o salmista:
“Senhor, meu coração não é ambicioso, nem meus olhos altaneiros. Não ando atrás
de grandezas, nem de maravilhas que me ultrapassam. Não! Fiz calar e repousar
meus desejos, como a criança recém-amamentada no colo de sua mãe. Israel,
coloque a esperança no Senhor, desde agora e para sempre” (Sl 131,1-3). Os atrativos
da sociedade contemporânea podem, sim, fascinar e distrair, dispersar e
fragmentar nossos desejos, interesses e paixões. Porém, se nos mantivermos
firmes na meta, “de olhos fixos em Jesus”, focalizados como Ele na presença do
Pai, todo esse fascínio se desfaz, não obstante os apelos do marketingo, da
propaganda e da publicidade. Mais ainda, certamente encontraremos em todas
essas novidades algo que nos fala e nos conduz a Deus. Ele caminha conosco na
história individual e coletiva!
Quanto ao próximo, nada deixa
um coração mais leve e uma alma mais feliz do que saber que somos a causa de um
sorriso, de um agradecimento de um bem-estar. Aqui vale a máxima de que
“ninguém é feliz sozinho”. Fazer feliz outra pessoa tem um sabor e um saláro
imediato, a própria felicidade. Amor e felicidade são sempre inclusivos, não
admitem que alguém fique do lado de fora. Um coração que ama transpira alegria
por todos os poros, de forma especial pelo rosto, pelos olhos, pelas atitudes.
Irradia e contagia a todos que lhe estão por perto. Entretanto, se esse mesmo
coração aferrar-se às coisas que o mercado atual oferece, torna-se sem mais
escravo delas. Pois, “onde está o teu tesouro, aí estará o teu coração”, diz o
Mestre. E ainda: “vocês não podem servir a Deus e às riquezas” (Mt 6, 19-24).
Aí está o segredo: não fugir do
mundo e das novidades que ele nos apresenta. A criatividade humana e o
dinamismo da história são profícuos em
“coisas novas”. Estas não são boas nem más, por princípio, apenas instrumentos
em nosas mãos. Se nos deixarmos seduzir por esse emaranhado de objetos, seremos
como um inseto numa teia de aranha: presos até o momento de ser irremediavelmente
devorados. Se, ao invés, soubermos segurar as rédeas com mão firme, no
horizonte da intimidade com Deus e da solidariedade ao outro, essas mesmas
novidades podem transformar-se em meios para o fim que é o amor e a paz, a
ternura e a bondade, a alegria e a festa sem fim. A partir da Casa de Deus,
podemos nos dispersar em busca do próximo – pobre, excluído, doente, pecador,
indefeso, necessitado, migrante, abandonado, pequeno e último – para
reencontrar a nós mesmos e retornar ao colo de Deus (nome de pai com entranhas
maternas). Desencadeia-se assim um movimento circular que cresce em forma de
espiral, envolvendo cada vez mais o pobre, o “outro” e o totalmente “Outro”. No
centro mesmo desse movimento, em repetidos encontros com Deus e com os irmãos,
podemos desfrutar não de uma felicidade ininterrupta e sem adversidades, mas de
momentos felizes e inesquecíveis. Momentos que antecipam a felicidade do “novo
céu e da nova terra, onde Ele vai enxugar toda lágrima de nossos olhos” (Ap
21,1-8).
Roma, Itália, 1º de Janeiro de 2014
migração e família de Nazaré
Pe. Alfredo
J. Gonçalces, CS
A Família de Nazaré constiui um dos ícones fundamentais da mobilidade
humana e da Pastoral dos Migrantes. Especialmente a imagem da fuga para o Egito
e o seu retorno, tem lugar destacado nas pessoas e instituições que trabalham
com o fenômeno da mobilidade humana. Nos relatos evangélicos de Mateus e Lucas,
os três personagens principais – Jesus, Maria e José – simbolizam milhares e
milhões de famílias que, por algum motivo, devem deixar sua terra natal e
buscar fora uma alternativa de sobrevivência. Hoje, como ontem, os migrantes
continuam cruzando fronteiras na expectativa de um futuro mais promissor, mas o
mapa das migrações tornou-se bem mais intenso, diversificado e complexo. Estatísticas
atualizadas dão conta que mais de 200 milhões de pessoas residem fora do país
em que nasceram, isso sem contar a migração interna, temporária ou pendular.
Nestes parágrafos que seguem, trataremos de fazer um confronto entre o fenômeno
migratório, de um lado, e as idas e
vindas da Família de Nazaré, por outro. Isso a partir de cada personagem dos
relatos sobre a infância de Jesus.
1. Jesus
Jesus representa a vida ameaçada. Na condição de pobre e em plena viagem,
vem à luz na manjedoura de uma gruta, pois “não havia lugar para eles dentro de
casa” (Lc 2,7). Belo e frágil, como a flor e o pássaro, mas, ao mesmo tempo
exposto às imtempéries do tempo e da história. São muitas as ameaças que pesam
sobre a vida de quem se aventura pelas estradas do mundo. No caso de Jesus, em
razão da fúria cega e surda do rei Herodes, temendo um concorrente ao trono,
cedo se vê forçado a partir com a família. Também nos embates da existência,
especialmente nas injustiças, incongruências e contradições da organização
política e econômica, bem como nas relações nacionais, regionais e internacionais,
não são poucos os riscos que rondam a trajetória turbulenta dos migrantes.
Em primeiro lugar estão as precárias condições de vida e trabalho nos
lugares de origem. As motivações socioecônomicas levam muitas pessoas e
famílias, particularmente jovens, a sonhar com uma nova cidadania e uma nova
pátria. As rotas dos deslocamentos migratórios, atualmente, são as mais
diversas, mas prevalecem os fluxos sul-norte e este-oeste, isto é das regiões e
países subdesenvolvidos em direção aos países centrais, sem excluir os movimentos
em sentido inverso, devido à crise dos últimos anos. Mas a violência de todo
tipo e, de forma particular, os conflitos armados e a guerra, também levam
muita gente a uma fuga desesperada. Formam a imensa multidão dos “sem raíz, sem
pátria e sem rumo”: migrantes, refugiados, prófogos, exilados, itinerantes,
expatriados, “desplazados”, fugitivos... Ao longo do tempo, os tiranos e
tiranias, como Herodes, provocam o deslocamento de pessoas, grupos, famílias e
povos inteiros.
Mas as motivações não se esgoam aí. A própria religião ou religiões, em
circunstâncias bem precisas, tem sido fator de deslocamentos cumpulsórios. A
intolerância, o ódio, a retaliação recíproca e o fundamentalismo – este último
pode ser de caráter político, tanto à esquerda quanto à direita – têm lançado
enormes contingentes de pessoas à margem da estrada. Paradoxalmente, o
pluralismo cultural e religioso da sociedade contemporânea não raro vem
manchado pelo preconceito e a discriminação, o racismo e a xenofobia,
resultando no desenraizamento de inúmeras famílias. O encontro diário com “os
mil rostos do outro” carrega uma profunda ambiguidade: pode aproximar línguas,
moedas, bandeiras, credos, costumes, valores e culturas, mas pode igualmente
conduzir ao rechaço do estranho e estrangeiro, quer por razões culturais e
religiosas, quer por divergências políticas e ideológicas.
Não podemos esquecer, ainda, aqueles que se deslocam por terra, mar e ar,
devido a motivos profissionais ou pelo seu modo de vida. Desfilam aqui os
marinheiros e pescadores, os motoristas e técnicos de empresas, os nômades,
missionários e soldados, além dos trabalhadores e trabalhadoras das companhias
aéreas... Só para citar os rostos mais visíveis.
2. José
José e Maria desempenham o papel dos pais em circunstâncias adversas e
hostis: proteger a família dos riscos que a ameaçam. Na tradição judaica, ambos
aprenderam a “ouvir a Palavra de Deus e colocá-la em prática”, atributo central
da sabedoria. Seguem os mandamentos de Javé sobre a justiça e o direito. Ambos
conhecem e sabem ler a mensagem divina, simbolizados na voz dos anjos do
Senhor, mensageiros da sua vontade e de seu projeto de salvação. Limitemo-nos
por enquanto à figura de José. Considerado “um homem justo”, aparece sempre
como a pessoa certa no lugar certo e no momento certo. Silencioso, mas atento,
pronto e obediente à mensagem divina, ainda mais quando se trata de defender a
esposa e o recém nascido. Sobre seus ombros pesa uma grande responsabilidade.
Como todo migrante, José coloca sua profissão de artesão/carpinteiro a
serviço das necessidades da família, esteja esta onde estiver. Não mede esforços
para que nada falte aos seus entes queridos. No fenômeno migratório atual,
predominam jovens solteiros ou casados, com a presença crescente da mulher.
Documentação, trabalho, moradia, formação dos filhos, saúde, sustento da casa,
preservação dos valores... Eis os desafios que esperam pelos estrangeiros que
acabam de chegar a um novo lugar. E em numerosos casos as etapas da migração se
repetem de um lado para outro, num vaivém que parece não ter fim. Repetem-se
igualmente as dificuldades na partida, no trânsito e na chegada. Na ida para a
terra do Egito e no retorno a casa, lá está José diante dos mesmos problemas. É
tipo da pessoa que, se presente, pode passar desapercebida; mas, se ausente, sua
falta será imediatamente notada.
Mas José, a exemplo de tantos migrantes, é responsável também pela
manutenção e fortalecimento dos laços familiares, bem como pela criação de uma
rede de parentesco e de amizade que possa servir de apoio nos momentos mais
críticos, com maior razão em ambientes desconhecidos. O migrante estabelece uma
ponte entre origem e destino, onde as remessas em dinheiro e os contatos
contínuos costumam figurar como elos de ligação e solidariedade recíproca. Na
mesma perspectiva, a José e aos migrantes cabe-lhes a tarefa de reconstruir as
relações familiares depois de cada viagem. É conhecido e notório o fato de que
a migração costuma golpear a família, dividir e dispersar seus membros, às
vezes afastá-los do conforto da fé. Aqui o empenho deve ser firme, tenaz e
perseverante, no sentido de manter os valores culturais e religiosos como
fatores de coesão e de mútua defesa.
No seu slêncio, José não apenas aprendeu a interpretar os “sinais dos
tempos”, mas tornou-se ele mesmo um desses sinais. O mesmo se aplica aos
migrantes: no simples fato de migrar e de fazêlo em massa, denunciam as
deficiências de uma terra que, na origem, lhes nega o chão, o pão e a
cidadania. Ao mesmo tempo, anunciam a necessidade de mudanças necessárias e
urgentes na política macroeconômica, nas relações internacionais e nas leis
migratórias. Verdadeiros profetas e protagonistas de um amanhã novo e recriado:
pondo-se a caminho, abrem horizontes e fazem marchar a própria história, bem
como os representantes dos governos, as instituições e organismos responsáveis
pela justiça e o direito, as Igrejas e seus missionários, os movimentos e
entidades sociais e as organizações de base. Maria e o Menino na estrada, aos
cuidados de José, não representa justamente esse sinal que aponta novos rumos à
história?!
3. Maria
Juntamente com José, Maria deve proteger o recém nascido, como qualquer
casal em movimento. Mas na esposa a sensibilidade materna se faz mais forte e
profunda. O filho foi gestado em suas entranhas e foi por ela nutrido, dela
recebeu estímulo para arriscar os primeiros passos e as primeiras palavras, o
que torna mais vivo o cuidado para com a vida, e para com todas as formas de
vida. Quantas mulheres migrantes tomam as rédeas da situação nesses períodos de
deslocamento forçado, como se despertassem improvisamente de uma letargia
inerte! Porder-se-ia afirmar sem exagero que Maria representa o coração materno
do próprio Deus, da mesma forma que mais tarde o fará a compaixão e
misericórdia de seu Filho Jesus. Compaixão e misericórdia que se revelam
diantes de momentos extremos ou situações/limite de sofrimento e desespero. De
fato, as entranhas maternas de Jesus, em sintonia com o amor do Pai, estremecem
diante da “ovelha perdida”, do “filho pródigo”, da “morte do amigo Lázaro”, da “viúva
que perdera seu único filho”, da “mulher que sofria de fluxo de sangue”, do “ferido
e caído à margem do caminho”, dos “doentes, pobres e pecadores”, da “futura
destruição de Jerusalém”... E para não esquecer o Antigo Testamento, diante dos
“escravos sob a tirania de Faraó”, dos “oprimidos vendidos por um par de
sandálias”, do “órfão, viúva e
estrangeiro”.
A delicadeza do evangelista Lucas, entretanto, nos apresenta uma verdadeira
pérola que ilustra a pesença de Maria junto ao Menino e à família. Por duas
vezes, no capítulo dois, repete mesmo pensamento,
praticamente com as mesmas palavras. “Maria, porém, conservava todos esses
fatos, e meditava sobre eles em seu coração” (2,19); “E sua mãe conservava no
coração todas tosas essas coisas” (2, 51b).
Os verbos conservar e meditar nos remetem a uma dupla memória,
presente com caracteres de fogo nos conceitos de aliança e promessa de Deus com
o Povo de Israel. Em primeiro lugar, tais verbos lembram uma espiritualidade
que amadurece na experência do exílio e que se reflete dos livros da sabedoria.
Longe da pátria, privados da terra e do templo, os exilados interiorizam os
preceitos de Javé, numa fidelidade que muda sua maneira de entender a relação
com o Senhor e a própria história da salvação. Assim reza o salmista: “Junto
aos canais da Babilônia nos sentamos e coramos, com saudades de Sião. Nos
salgueiros de suas margens penduramos nossas harpas. Como cantar um canto de
Javé em tera estrangeira?” (Sl 137,1-2.4).
Essa melancolia do migrante em terra estranha nos leva à segunda forma de
entender a memória viva da aliança/promessa no projeto de Deus. Conservar e
meditar é a maneira de ver e analisar os acontecimentos com o olhar da fé, de
sentir as digitais de Deus no mistério oculto da história. A fé e o silêncio de
Maria representam, simultaneamente, uma compreensão do significado profundo da ação
de Deus na trajetória humana – pessoal e coletiva – e uma semente do Reino de
Deus que haverá de ser o programa central da Boa Nova da missão de Jesus.
Roma,
Itália, 31 de dezembro de 2013
Premissa À análise de conjuntura
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, CS
São inúmeras as
análises de conjuntura: anuais, mensais, semanais e até diárias... Tão variadas
quanto os diferentes pontos de vista de quem as elabora e divulga. Nisso
reside, ao mesmo tempo, uma riqueza e um limite. Enquanto a riqueza está no
pluralismo das visões de mundo e dos enfoques adotados, o limite pode ser um
relativismo onde tudo se nivela pela mesma medida. As múltiplas análises que
desfilam pelos seminários, assembleias, encontros, cursos e reuniões, por um
lado, ou que navegam diariamente pelo espaço virtual da Internet, por outro,
são permeadas por essa ambiguidade. Querendo ou não, toda a tentativa de
análise tem os pés no solo mutável e movediço da história, trazendo nas solas
dos sapatos suas marcas, sejam estas pútridas ou sublimes. De fato, não é
novidade que a história percorre seu curso sempre dilacerada por novas perguntas
e respostas, por dúvidas e incongruências, por combates, contradições e jogos
de interesse. Nem precisaria lembrar que a cabeça pensa a partir do que pisam
os pés. Ou a partir do “lugar social” em que vivemos, trabalhamos e nos
relacionamos.
Do parágrafo
anterior resulta a consciência de que a neutralidade é uma farsa ou um mito. No
substrato de toda forma de pensamento, ou de toda maneira de expressão,
esconde-se um ponto de vista, o qual, de acordo com Leonardo Boff, “não passa
da vista de um ponto”. O problema está justamente na fórmula esconde-se. Quando esse substrato se faz
consciente e auto-reconhecido, abrindo-se à transparência do conteúdo e dos
argumentos abordados, torna-se igualmente possível um diáogo entre as distintas
formas de ver o mundo, os acontecimentos e a história. Mas, inversamente,
quando prevalece a ideia da neutralidade, permanecendo ocultos o ponto de
partida e a posição social e política, desenvolve-se necessariamente a
pretensão da verdade absluta. Consciente ou inconscientemente, consolida-se a
base para a tirania do “pensamento único” (tanto à esquerda quanto á direita),
ou pior ainda, para o autoritarismo intelectual ou fundamentalismo que pode ser
de ordem política, religiosa ou étnico-cultural (às vezes, tudo isso misturado).
Além disso, a pressuposição da neutralidade, por ignorância ou má fé, presta-se
às mais diferentes manipulações, como ocorre com os “ingênuos úteis”.
1. Binômio
crise/encruzilhada
Diante de
semelhante ambiguidade no esforço de esclarecer a realidade dos fatos e boatos,
tomo emprestado de J. Moltman uma observação que pode contribuir para uma
análise mais real e menos ingênua dos acontecimentos (Cfr. Telogia da Esperança). Ou então, para balancear de forma mais
correta a dose de pessimismo e otimismo de qualquer forma de visão social ou
histórica. Diz o teólogo protestante alemão: “A palavra ‘crise’ mede o evento
novo e incompreendido sobre a base da ordem tradicional da vida humana, que
agora entrou em crise e encontra-se ameaçada, e por isso deve ser salva,
conservada ou renovada. A expressão ‘crise’ refere-se sempre à ordem. A ‘crise’
põe em questão a ordem e, portanto, pode ser dominada somente mediante uma nova
ordem”. Se entendemos bem as palavras do autor, no fundo implícito ou explícito
do conceito de “crise” pode esconder-se um medo que paralisa toda e qualquer
ação. Mais grave ainda, pode ativar uma reação retrógrada, no sentido de
recuperar a todo custo um status quo
perdido ou ameaçado. Entra em cena uma espécie de saudosismo do “paraíso perdido”
que bloqueia o movimento em vista de mudanças urgentes e necessárias. Ao invés
de um novo horizonte a ser conquistado, a concepção de crise pode desencadear
um passo atrás na tentativa de manter tudo como está.
Neste perído de festas
e de passagem de ano (2013-2014), quando as análises costumam tornar-se simultaneamente
mais ambrangentes e mais numerosas, talvez seja útil introduzir aqui o binômio
crise/encruzilhada, tendo presente a tensão dinâmica e dialética entre os dois
termos. Reporto-me, evidentemente, a citação anterior de Moltman. Enquanto o
conceito de crise supõe o rompimento de uma ordem e a necessidade de
restabelecê-la o mais rápido possível, ou um esdtado de coisas a ser conservado
custe o que custar, o conceito de encruzilhada
pressupõe a existência de vários caminhos e, portanto, a possibilidade de
escolha em vista de uma ação renovada, libertadora, transformadora. No primeiro
caso, a história tende a fechar-se sobre si mesma, numa compreensão cíclica e
repetitiva (círculo vicioso); no segundo, seu horizonte permanece aberto às
novas potencialidades que estão em jogo. Exige uma tomada de posição, uma opção
que sempre pode acolher novas perspectivas direcionadas a um fim.
Na concepção de
história como crise, o “novo” é sempre um perigo a ser exorcizado, ao passo que
na concepção de história como encruzilhada o “novo” traz embutida uma
oportunidade de avanço, rompendo com os padrões tirânicos e catastróficos da
mesmice. Esta mesmice compõe-se, não raro, de injustiça e desigualdade,
opressão e exploração. Numa palavra, concentração de renda, riqueza e poder e,
ao mesmo tempo, pobreza, misérie, fome e exclusão social. Por isso, enquanto a
visão que tem como pano de fundo a noção de crise tende a ser conservadora, o
conceito de encruzilhada tem como perspectiva desencadear ações revolucionárias,
abrindo novas veredas no grande sertão da história – parafraseando a obra de
Guimarães Rosa.
Deixemos, uma vez
mas, a papalvra a Moltman: “O fato que este evento visto como ‘crise’ possua,
por outro lado, também o ‘novo’ é um fato que permanece ignorado. A filosofia
da história que assume o aspecto de filosofia da crise tem, portanto, um
caráter sempre conservador”. A crise, pessoal, social ou macro-histórica, é o
momento do pranto e do lamento. A dor e as lágrimas nos deixam cegos, mudos e
surdos a tudo e a todos. Instala-se uma forte tendência ao isolamento, ao
fechamento sobre si mesmo. Tornamo-nos como caramujos que, ameaçados e sem
forças para reagir, nos escondemos no próprio casulo; ou como a avestruz que,
segundo a lenda, na hora do perigo enterra a cabeça na areia. Em ambos os
casos, o risco desperta a reação de proteger-se naquilo que já é familiar,
conhecido. Nada de aventuras.
2. “Levanta-te,
come e anda porque o caminho é longo”
Mas, como bem o sabemos,
toda crise é ambígua, cheia de labirintos ignotos, entrelaçados e
inextrincáveis. Por uma parte, devido ao temor do desconhecido, pode levar ao
colo da mãe, ao berço aconchegante da infância, ao saudosismo do status quo, ao choro inconsolável e,
portanto, ao conservadorismo – comportamento que representa o lado negativo da
crise. Por outra parte, porém, a mesma crise é capaz de nos desafiar,
levando-nos a encarar novidades da fronteira, justamente na linha da auto-superação,
nma atitude de reação inovadora e não reacionária – o que significa o lado
positivo da mesma. Se é verdade que toda crise pode nos conduzir ao berço e, no
limite extremo, ao anulamento e à vontade de retornar ao seio materno, como nos
exemplos dos profetas Geremias e Jonas (neste último, simbolizado pelo retorno
ao ventre o peixe), também é certo que ela conduz boa parte das pessoas aos
desafios da encruzilhada, como o profeta Elias que, após uma crise, “sentou-se
debaixo de uma árvore e desejou a morte (...). Mas o anjo do Senhor o tocou e
disse: ‘levanta-te, come e anda porque o caminho é longo” (1Rs 19, 4-8).
O “anjo do Senhor”
pode ser um familiar, um amigo do peito, um companheiro de caminhada, uma
pessoa com mais experiência ou, pura e simplesmente, o impacto da realidade nua
e crua, onde milhões de pessoas continuam desfiguradas e crucificadas, à margem
da vida e da história. Quantas vezes, à beira do abismo, sós e isolados, ou às
vésperas de abandonar tudo e desistir da luta, sentimos um toque no ombro e uma
voz que nos sussurra: “Força e coragem, levanta a cabeça! Muita gente espera
por você, em frente!”. Faz lembrar a canção do grupo Noite Ilustrada: “Levanta,
sacode a poeira e dá a volta por cima”. Nos dias de hoje, em que os deslocamentos
humanos de massa se tornaram um fenômeno estrutural, não seria difícil imaginar
semelhante reviravolta, de natureza positiva, na tragetória turbulenta e
adversa dos migrantes, prófugos, refugiados, exilados, perseguidos, itinerantes
– quando o pesadelo da fuga se converte numa peregrinação em busca de cidadania
e pátria.
Num resumo um pouco
simplista, podemos afirmar que toda a crise costuma levar-nos ao berço,
deixando aí os fracos e desafiando os fortes a tomar novas decisões. Neste
caso, a crise torna-se fecunda; fértil, o árido deserto; o tronco ressequido,
engendra brotos vocejantes; a brasa, antes apagada, ressurge viva das cinzas; sobre
as ruínas e escombros, ergue-se um novo edifício... Surge uma luz inesperada no
fim do túnel. Retornando ao nosso binômio, a
crise pode sim converter-se em encruzilhada! Isso ocorre quanto cessa o
lamento, saímos à rua, enxugamos as lágrimas, levantamos a cabeça e... nos
defrontamos com um cruzamento múltiplo e variado de caminhos e oportunidades.
Então damo-nos conta que o momento crítico não representou o “fim do mundo”, mas
apenas uma fase difícil da travessia. E damo-nos conta, sobretudo, que várias outras
potencialidades estão em jogo.
“Deus fecha uma
porta e abre uma janela”, diz com razão o ditado popular.Temos a possibilidade
de escolha. As estradas se bifurcam e, diante de nossos olhos, apresenta-se a extraordináia
capacidade de optar. Antes tudo parecia escuro, o choro tolhia nossa vista;
agora o sol volta a brilhar e a nova aurora aponta uma série de horizontes. De
cabeça erguida, analisando as novas circunstâncias posteriores à crise, somos
capazes de tomar a vereda que nos parece mais adequada. O pranto, a mágoa e o
lamento impediam o raciocínio, agora podemos ver claro e fazer a escolha histórica
mais correta. Longe de atemorizar, o “novo” desperta novas energias, pesa e
avalia potencialidades até então ocultas e inéditas.
Por isso é que,
para finalizar, qualquer análise em meio a uma devastadora tempestade tende a
carregar as tintas do pessimismo, da mesma forma que a euforia desenfreada
acentua o lado otimista. Diante das turbulência do terremoto e das ondas
gigantes, nossa frágil embarcação se debate como casca de noz. Nada vemos, nada
ouvimos, não sabemos o que falar, inteiramente tomados pelo perigo do
naufrágio. Toda e qualquer tentativa não passa de braçadas de náufragos em meio
ao desespero. A escuridão e o mar bravio escondem a visão do porto e do farol,
as estrelas se apagaram no céu. A crise se faz viva e ameaçadora: não é o
momento adequado para decidir o rumo a ser tomado. Passada a tempestade, porém,
acalmadas as águas, com espírito mais sereno e sem a euforia de um entusiasmo
fácil e descabido... apresenta-se a encruzilhada. Agora, sim, é possível
enxergar mais longe. O farol e o porto podem ser vislumbrados à distãncia. O
tempo se faz maduro para uma decisão.
Roma, Itália, 26 de dezembro de
2013
MIGRAÇÃO E DIREITOS: Utopia para o Bem Viver!
As migrações atuais constituem o maior movimento de pessoas de todos os tempos, envolvendo cerca de duzentos e quarenta milhões de seres humanos (ONU, 2013). Elas tornam-se cada vez mais complexas do ponto de vista social, cultural, político, religioso, econômico e pastoral. “Milhões de pessoas migram, ou se veem forçadas a migrar dentro e fora de seus países. As causas são diversas e estão relacionadas à situação econômica, às várias formas de violência, à pobreza à falta de oportunidades para a pesquisa e o desenvolvimento profissional”(DA.73). Têm a ver com as mudanças ambientais (enchentes, secas, tsunamis, maremotos, terremotos, etc.), a busca por trabalho e a globalização. Entretanto, “esta abriu os mercados, mas não as fronteiras. Derrubou os limites para a livre circulação do capital, mas não para a livre circulação das pessoas” (EM. 4).
Quantos migrantes sofrem algum tipo de violência, de abandono e de exploração, medo, solidão, rejeição e discriminação? Quantos são vítimas de exploração, violência sexual, trafico, abuso de autoridades, de policiais e de funcionários corruptos. Outros adoecem por excesso de trabalho. Quantos estão presos? Quantos jovens se escondem nas drogas e na violência? Outros acabam como refugiados e sem dignidade. Quantos migrantes são explorados e escravizados no agronegócio, nas grandes obras, empresas e mega eventos? Quanta dor e sofrimento carregam os retornados e deportados devido às fronteiras militarizadas e a falta de documento? E os que se encontram deprimidos, com dificuldade de reintegração social em seus lugares de origem? Quantas famílias se dividem e se desestruturam por falta de apoio? Que triste ver a migração silenciosa e invisibilizada dos povos indígenas empurrados para o fundo das matas pelo avanço do capital. “Essa situação precária de tantos migrantes, que deveria provocar a solidariedade de todos, causa, ao contrário, temores e o medo de muitos, que os olham como um peso, ou como suspeitos e os consideram uma ameaça, com manifestações de intolerância, de xenofobia e de racismo” (DA. 377).
Mas, há um gesto iluminador que pode nos orientar como pastoral, Igreja e sociedade. Trata-se do encontro que o Papa Francisco teve com os migrantes e refugiados em Lampedusa – Itália: “Peçamos ao Senhor a graça de chorar pela nossa indiferença, pela crueldade que reina no mundo, em nós, e naqueles que tomam decisões sócio econômicas, que abrem estradas para dramas como estes. Peçamos perdão pela indiferença com tantos irmãos e irmãs; pelos acomodados, fechados em seus corações anestesiados; perdão por aqueles que, por causa das suas decisões, em nível mundial, criaram situações que se concluem com estes dramas” (Papa Francisco – Julho/2013).
Nesse sentido, há que se reconhecer os migrantes como protagonistas da historia. A despeito das violências sofridas, eles representam um caminho novo para a humanidade e nos chamam à convivência intercultural; animam-nos a derrubar as barreiras do etnocentrismo e a construir a utopia da vida social justa e harmoniosa. Quanta riqueza os migrantes levam aos países e às comunidades com as suas culturas, arte e criatividades, linguagens, devoções, resistências e fé na vida! Neste sentido a migração é como terra fértil para brotar o diálogo e a acolhida.
O Brasil nasceu, cresceu e se fortaleceu com a presença dos migrantes internos e de outros países. Portanto, é nosso dever histórico nos sintonizar com o Marco Jurídico Internacional dos Direitos Humanos e com uma política migratória que salvaguarde a condição humana dos migrantes independentemente do seu status jurídico, se documentado ou não, criando condições reais e acessíveis aos direitos de cidadania. Não podemos naturalizar a exploração, o preconceito, o medo e a exclusão do migrante por causa da falsa mentalidade que só o concebe como força de trabalho, ou como inimigo que coloca em risco a segurança do país e as nossas oportunidades de emprego. O migrante é um ser humano que busca, como todos nós, vida melhor e dignidade humana.
O SPM renova e confirma sua missão de apoiar a luta dos migrantes por dignidade, educação, saúde, transporte, lazer, trabalho decente, justiça, protagonismo político, social, econômico, cultural, religioso, ambiental, etc. Apelamos a toda a sociedade, ao Poder Público a discutir, formular e implementar políticas públicas que priorizem o bem estar da pessoa humana independente do sua condição migratória; que o Estado brasileiro seja signatário da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias – ONU - Resolução 45/158, de 18/12/1990; que garanta tratamento igual a “todo Brasileiro e Estrangeiro residente” em nosso País. Convidamos a todas as pessoas, grupos, movimentos, instituições de boa vontade a somar forças na causa pelo cuidado da vida e sonhando com a sociedade do Bem Viver. Somente juntos poderemos enfrentar o desafio de romper fronteiras e fazer acontecer a pátria como “a terra que nos dá o pão”, para lembrar João B. Scalabrini.
Serviço Pastoral dos Migrantes - SPM
São Paulo, 18 de Dezembro de 2013
Dia Internacional do Imigrante!
NATAL – Saudade de Deus
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, cs
As festividades do Natal costumam alargar o coração e a
alma, dirimir tensões e conflitos, aproximar coisas e pessoas, trazer à memória
carinhosas lembranças. O brilho das luzes e das cores, o encanto do presépio e
da música própria, a singeleza das imagens e dos enfeites, a troca de presentes
e a atmosfeta natalina, o comportamento mais aberto e solidário para com os
outros – tudo concorre para despertar uma longínqua e estranha “saudade de
Deus”. Não se trata apenas de algo que vem de uma infância longínqua ou da
tradição familiar cristã, mas de um sentimento ao mesmo tempo conhecido e
ignoto, estranho e confortante, que faz emergir um ambiente, um calor e um momento
indefinidos. Espaço e tempo resvestidos de um véu que, simultaneamente, vela e
revela um tesouro encontrado e logo abandonado num lugar sem nome nem endereço.
Sim, tais festividades evocam emoções não de todo ignoradas, mas submersas
pelos afazeres e pela correria que nos toma todo tempo.
Por isso é que os sinos do Natal dobram como se algo ou
Alguém batesse à porta. Algo ou Alguém momentaneamente esquecido, mas que
reside adormecido nas entranhas mais íntimas e profundas de cada ser humano.
Seu toque é inconfundível, uma espécie de chave encantada, que abre um tesouro
deixado de lado com certo descuido. Brasa sobre cinza, às vezes incultivada,
mas que ao vir à tona descortina sensações tão caras quanto remotas.
Inegavelmente, o período natalino nos transporta a um mundo secreto, chama viva
mas apagada, do qual nos chega o reflexo de doces e ternas recordações. Resgata
um mistério que mal conseguimos vislumbrar, porque envolto na neblina do tempo
e das preocupações cotidianas. É como um canto de ninar, um perfume intenso,
uma cor preferida, ou ainda como o famoso “biscoito molhado no chá” de Marcel Proust,
o qual, na monumental obra Em busca do
tempo perdido, lhe desperta múltiplas e diferenciadas “reminiscências do
coração”.
O tempo natalício possui o dom de romper em muitas
pessoas diques invisíveis e empedernidos, fazendo correr e cantar as águas de
sensações inexplicáveis, mas, ao mesmo tempo, bem presentes e prementes no
coração e na memória. Abre em nós um leque de olhares e sorrisos, gestos e toques,
visitas e relações que mal reconheceríamos, mas que de repente se tornam
familiares, e nos surpreendemos com nossas próprias ações, como se nos guiasse a
estrela de uma alegria incontida. As distâncias se encurtam, alguns venenos
parecem derreter-se como que por magia e nos aproximamos com maior facilidade
uns dos outros. Isso vale não apenas para o ambiente da família e dos amigos,
mas também para os lugares de vizinhança, de trabalho, de lazer, de esporte, de
turismo... Tênues laços, muitas vezes prestes a desfazer-se, se refazem e se
fortalecem. Tanto do ponto de vista pessoal e familiar quanto do ponto de vista
comunitário e sociocultural, criam-se novos canais comunicantes. Não há dúvida
que a celebração do nascimento de Jesus torna o terreno em que pisamos mais
fecundo à amizade, aos relacionamentos humanos, à solidariedade com os pobres e
necessitados e ao amor em sentido amplo.
Não sem razão os relatos do nascimento e da infância de
Jesus, nos Evangelhos de Mateus e Lucas, falam da alegria e do louvor dos
anjos, da surpresa e do despertar dos pastores, da manjedoura e do calor dos
animais, da chegada dos reis do Oriente com ouro, incenso e mirra para o Menino
que acabara de nascer. Não sem razão Francisco de Assis iniciou a tradição do
presépio, procurando retratar o mistério oculto nessas páginas cheias de poesia
dos evangelistas citados. Além disso, a pobreza e simplicidade, a nudez e o
exílio de José e Maria, bem como o véu da noite e a presença da estrela que
guia os magos, nos tocam profundamente. Fazem vibrar cordas musicais até então
silenciosas e mal conhecidas. Sentimo-nos tão próximos ao drama desses
estrangeiros, num momento e hora absolutamente inusitados, que as barreiras da
discriminação e do preconceito, ou simplesmente os cuidados com a prudência
diante dos demais, se desvanecem no ardor da Boa Nova anunciada e por tanto
tempo esperada. As cercas de separação parecem quebrar-se com a força represada
dessa grandiosa novidade. A solidão da pobre família de Nazaré em meio à
indiferença, “pois não havia lugar para eles dentro de casa” (Lc 2,7), a fúria
do rei Herodes pelo temor de um concorrente ao trono, como também os cuidados
da maternidade comparados ao rigor de um ambiente tão inóspito, nos fazem tomar
partido pelos protagonistas de semelhantes relatos.
Consciente ou inconscientemente, nos transportamos para
junto dos pais na gruta de Belém, acompanhamos os pastores e os reis que de
longe visitam o recém-nascido. Uma onda de misericórdia e compaixão percorre
nossas entranhas, sacode a apatia costumeira e como que nos põe em marcha em
direção ao próximo. No
dizer do Papa Francisco, “non aver paura
della tenerezza e della bontà!” (não tenhamos medo da ternura e
da bondade!). Deus nos visita, bate à porta como nos recorda o Livro do
Apocalipse (Ap 3,20) e, àquele que lhe abre, dispõe-se a sentar com ele à mesa,
num gesto de companhia, partilha comensalidade. A abertura à visita de Deus,
porém, não se esgota nesse gesto tão antigo quanto a humanidade e tão
característico do profeta de Nazaré. Amplia-se a um número crescente de
pessoas, com especial atenção para as mais infefesas e excluídas, mais solitárias
e abandonadas. Ou seja, abrir a porta ao Pai significa, contemporaneamente,
franqueá-la aos irmãos e irmãs. Aliás, é o que rezamos diariamente, com
frequência mais de uma vez ao dia: quando dizemos “Pai nosso” nos comprometemos
com a busca do “Pão nosso de cada dia”. “Nosso” e não “meu” – tanto o Pai como
o pão!
Convém ter em conta que essa visita de Deus se dá em meio
aos ruídos de uma publicidade estridente, de um consumo exagerado e de festas
marcadas, não raro, pela abundância e o desperdício. O lado positivo da alegria
e do encontro vem mesclado com o lado negativo do contraste entre pobreza e
riqueza, luxo e miséria, opulência e fome. Em meio a tanto “barulho”, como
reservar um tempo para o encontro pessoal, familiar ou comunitário com Deus?
Talvez esteja aqui um dos maiores desafios das festividades relativas ao Natal.
De um lado, a prática agitada, rumurosa e dispersiva do comércio e da
exterioridade natalina; de outro, a necessidade do silêncio interno e externo
na busca de uma intimidade que possa saciar a sede (saudade) da presença
divina. Mais grave ainda, tanto mais fortes os apelos e o fascínio das compra e
do ativismo, tanto mais premente o desejo do encontro com Deus. Nessa hora, para
que lado pende o fiel da balança? Para aqueles que já experimentaram a extrema
sensibilidade e delicadeza da Palavra viva – que chama nutre e envia – a agitação
febril que circunda os dias de Natal vem acompanhada pela sedução de uma voz
interior, inconfundível, em que Deus nos convida à dupla conversão pessoal e
social. Voz que nos impele a abrir o coração e a porta a Ele e aos irmãos. Em
geral, que tendência seguimos? Será possível conciliar as duas dimensões, os
dois apelos? Não se trata, evidentemente, de iliminar a festa. Mas como
transfigurar a euforia externa numa alegria serena e íntima com o Senhor que
vem e renova a promessa do “novo céu e da nova terra (...), onde “nunca mais
haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor” (Ap 21,1-8)?
Resulta que o encontro com Deus nunca se reduz a um eu-tu intimista e espiritualizante. Além
dessa dimensão pessoal, se é verdadeiro, jamais será estéril do ponto de vista
da ação solidária. Tem sempre implicações pastorais, sociais e políticas sobre
o contexto histórico, uma vez que é no espírito de Deus que “vivemos, nos
movemos e existimos” (At17,28). A espiritualidade cristã não pode ser
desvinculada do compromisso com a transformação de um mundo que nega o projeto
de Deus. Rezar e refletir sobre a Palavra, meditar e contemplar seu sentido
mais profundo, por uma parte; e participar do combate contra toda espécie de
opressão e exploração, por outra, constituem duas faces da mesma moeda. A
mística cristã, vale lembrar, não se configura como fuga do mundo, mas presença
em meio a seus conflitos e problemas, incongruências e contradições. Trata-se
da dimensão socio-política da mensagem evangélica com vistas à construção da
justiça e da paz. O “discipulado criativo”, na expressão de Ernest Wolf, nos
chama à missão e esta, a exemplo da prática de Jesus, reabre o horizonte da
história, arrancando-alhe as rédeas das mãos dos tiranos e das tiranias de
todos os tempos, lugares e espécies. Isso só é possível graças “à orientação da
esperança cristã direcionada para o futuro do Reino de Deus e do homem” (J.
Moltman, em Teologia da Esperança).
Roma, Itália, 17 de dezembro de 2013
Natal do Menino migrante
Eu o vi nos grandes centros comerciais, os
shopping-centers,
deitado num simulacro de manjedoura, no interior
de uma gruta,
rodeado de Maria, José, os pastores, os reis magos
e alguns animais;
mas as atenções das pessoas concentravam-se sobre
o Papai Noel:
sentado num trono, distribuía sorrisos, abraços e
presentes;
o protagonista da festa, permanecia ignorado pela imensa
maioria,
acanhado a um canto, a exemplo de tantos meninos e
meninas,
filhos de pais estrangeiros e sem pátria nos
porões da cidade.
Eu o vi em algumas ruas ou praças da grande
metrópole,
presépios artísticos, profusamente iluminadas e
enfeitadas;
mas os transeuntes, embriagados pelo brilho das
luzes e presentes,
viam-se arrastados pela frenética sede de encontros
e compras;
o personagem principal desaparecia na torrente da
multidão ansiosa,
da mesma forma que milhares de crianças filhas de
migrantes
sós e perdidas, em busca de pão e carinho, como
órfãs de pais vivos,
nos becos sem saída do álcool ou da droga.
Eu o vi no interior das casas, como parte da
tradição cristã:
o mesmo menino, os mesmas animais e figuras, o
mesmo arranjo;
mas a família tinha outros afazeres, próprios do
final de ano:
roupas e sapatos, eletrônicos e móveis, novidades
de todo tipo;
pouca ou nenhuma atenção merecia a imagem do
recém-nascido,
como milhões de crianças recém-chegadas do campo
ou de outro país,
sem casa nem escola, poucas possibilidades de
futuro,
marcados pelo abandono, o preconceito e a
discriminação.
Eu o vi em muitas Igrejas, com a sagrada família e
demais imagens;
porém, como aos saduceus e fariseus de todos os
tempos,
a miopia e a cegueira impediam de sentir a aurora
do Reino de Deus
na face simples e singela do Menino que acabara de
nascer,
como também no rosto desfigurado de inúmeros
meninos e meninas, refugiados, prófugos, exilados, fugitivos da violência e da
guerra:
longe da terra natal, já nascem à margem da
estrada e da vida.
Entretanto, Ele ali estava como Boa Nova para os
pobres,
esperança viva daqueles que, apesar das
adversidades,
se põem a caminho, na tentativa de abrir
horizontes novos!
Pe. Alfredo J.
Gonçalves, cs, Roma, 15 de novembro de 2013
Direitos Humanos e humanos direitos
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, cs
O Dia Internacional dos Direitos Humanos é
celebrado anualmente em 10 de dezembro. Por quê essa data? Porque justamente
nesse dia, no ano de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a
Declaração Universal dos Direitos do Homem. Assinada por nada menos do que 58
países, o objetivo da declaração era, por um lado, o de combater todo tipo de
preconceito, discriminação e xenofobia e, por outro, após os sangrentos
conflitos da Segunda Guerra Mundial que deixaram um rastro macabro de milhões
de mortos e mutilados, promover a paz entre os países e em toda a humanidade.
Hoje, como sabemos,
a cultura dos direitos humanos se
estende aos mais variados grupos, setores, classes, extratos sociais, minorias
étnicas, situações e campos da existência humana, sem falar de cada ser humano
individualmente único e irrepetível. Em outras palavras, povos e nações, bem
como populações inteiras abrigam-se nesses amplo chapéu que é a defesa, o
respeito e a garantia dos direitos humanos. À cultura do ódio ou da
intolerância, da violência ou da guerra, do individualismo ou do nacionalismo
exacerbado – sobrepõe-se a ideia de uma convivência pacífica. À cultura da
indiferença (Papa Francisco) e do consumo frenético e indiscriminado,
centralizada num hedonismo egocêntrico – sobrepõe-se a solidariedade com as
vítimas do mercado total e da economia globalizada.
Mas, entre pessoas,
povos e nações diferentes, não bastam a tolerância e a coexistência pacífica.
Não basta levar em conta apenas o conceito de multiculturalismo. Não basta o
lado quantitativo ou exterior do pluralismo, seja este de caráter religioso ou
cultural, seja de natureza política ou ideológica. Não basta cruzar e recruzar,
quase que diariamente – na rua e no trabalho, na televisão ou na Internet – com
os “mil rostos do outro”. Não basta conhecer, observar e admirar os costumes e
a visão de mundo de outros seres humanos, como se o globo não passasse de um
gigantesco teatro onde as pessoas desfilam no palco iluminado, ao mesmo temo
como atores e espectadores de vidas exóticas. Ou pior ainda, como se todos
fizéssemos parte de um colossal zoológico, onde, simultaneamente, observamos e
nos deixamos observar em nossos comportamentos estranhos um ao outro. Em uma
palavra, não basta a letra morta da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
É preciso um passo adiante!
O espírito da
Declaração exige um salto qualitativono relacionamento com o outro e diferente.
Requer escuta e atenção, empatia e compreensão, aceitação e diálogo... Nisto
encontra-se a chave do verdadeiro encontro. Não um monólogo entre dois surdos
ou dois mudos indiferentes enre si, mas o intercâmbio respeitoso de ideias, a
argumentação racional e sadia, o confronto dialógico de corações, mentes e
almas. O segredo desse encontro é que os valores de cada pessoa ou cultura,
apesar de diferentes (ou precisamente por isso) se enriquecem reciprocamente.
Ao dialogarem entre si, tendem a crescer, a se purificar e a se depurar um ao
outro. No debate aberto, sincero e corajoso, incorporam novas ideias e filtram
impurezas acumuladas. Se é no confronto que se constrói a própria identidade,
esta aperfeiçoa sua imagem (faz, desfaz e a refaz) diante do espelho que é a
face do outro. No dizer de Martin Buber, o encontro só é possível entre
diferentes!
Um novo conceito
entra em cena: o de interculturalismo. De fato, enquanto o multiculturalismo pressupõe a coexistência mais ou menos pacífica
entre pessoas e povos, costumes e culturas diversas, o interculturalismo passa necessariamente pelo diálogo e pelo
confronto, onde ambas as partes saem mutuamente questionadas e enriquecidas. No
primeiro caso, as diferenças se justapõem, convivem lado a lado, toleram-se uma
à outra, numa espécie de mistura entre água a azeite – mas não mudam
absolutamente nada da sua visão de mundo e de seu comportamento. No segundo
caso, ao contrário, as diferenças se entrelaçam e se interpelam, uma buscando
contemporaneamente aprender e enriquecer a outra. Aqui cada momento de diálogo
muda, transforma, faz crescer. Não se trata de mera justaposição, mas de
encontro de almas e culturas, onde cada uma se abre aos valores da outra. Como
ambas constituem uma mistura de água e sede ou de luz e sombra, ambas têm a
ganhar com o intercâmbio. Com razão lembrava o filósofo francês Emanuel Levinás
que o caminho para mim mesmo passa pelo outro, enquanto H.J.Gadamer, filósofo
alemão, insistia que o outro tem mais a dizer sobre mim do que sobre ele mesmo.
A conclusão é que o
espírito mais profundo da cultura dos Direitos
Humanos assenta-se sobre a sabedoria e a grandeza de Humanos Direitos. Estes, numa conditio
sine qua non, preparam o campo para a conquista, o respeito e a garantia à
dignidade de cada pessoa humana, a qual, por sua vez, constitui o fio condutor
da Doutrina Social da Igreja. Aqui, porém, mais do que subordinar a primeira
expressão à segunda ou fazer um jogo de palavras, o acento deve recair sobre
uma dinâmica dialética entre os dois aspectos da questão. Se, por um lado, os
direitos humanos requerem a existência de humanos direitos, por outro, estes só
podem proliferar num ambiente livre, aberto e solidário com todas as pessoas,
povos e culturas. Em outras palavras, ao mesmo tempo que a cultura dos direitos
humanos engendra as condições para o surgimento de humanos direitos, estes
últimos pavimentam o terreno para o fortalecimento daquela. Direitos humanos e
humanos direitos são duas faces da mesma moeda.
Nesse terreno, o
joio se compõe de discriminação, preconceito, racismo, xenofobia, perseguição,
intolerância, fundamentalismo (político, religioso ou ideológico)... Enquanto o
trigo encontra-se na abertura dialógica entre as pessoas, para usar o conceito
de Paulo Freire em seus livros Pedagogia
do oprmido e Educação como prática da
liberdade. Semelhante abertura ao outro ou diferente dá início a uma
espécie de movimento espiral de compreensão e respeito, o qual, a partir de um
encontro eu-tu como ponto central, expande-se centrifugamente em todas as
direções e a todas as relações humanas. No centro, no coração, está a pessoa
humana capaz de abrir-se e de escutar, de dar e receber, de ensinar e aprender.
É nesse caminho de mão dupla que se levanta o edifício dos Direitos Humanos, independentemente
de sexo, cor, raça, língua, credo, nação, bandeira, ideologia, costumes,
cultura...
É igualmente esse
ponto central – encontro eu-tu – que dá origem ao verdadeiro conceito de
evangelização. Também neste caso a Boa Nova do Evangelho pressupõe e ao mesmo
tempo engendra mulheres e homens novos. Instala-se uma dinâmica espiral entre a
conversão pessoal e as transformações de ordem social, econômica, política e
cultural. Por uma parte, mulheres e homens convertidos abrem o caminho para a
Boa Notícia, por outra, a evangelização alarga as oportunidades para novas
conversões. Os dois aspectos são indissociáveis, fazem parte de um único
processo evangelizador.
Roma, Itália, 10 de dezembro de
2013
Evangelii
Gaudum e Grito dos Excluídos
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, CS
En sua recente
Exortação Apostólica Evangelii Gaudium
(A alegria do Evangelho), o Papa Francisco não exita em utilizar o termo
“grito” para denuncuar a situação de tantos seres humanos marcados pela pobreza
e exclusão social: grito de pessoas e grito de povos inteiros. Textualmente diz
o Pontífice: “ A Igreja reconheceu que a exigência de escutar este grito deriva
da própria obra libertadora da graça em cada um de nós, por isso não se trata
de uma missão reservada somente a alguns (...). A solidariedade é uma reação
espontânea de quem reconhece a função social da propriedade e a destinação
universal dos bens como realidade anterior à propriedade privada” (Cfr. EG, nº 188-9). E prossegue: “Às vezes se trata de escutar o
grito de povos inteiros, dos povos mais pobres da terra, porque ‘a paz
fundamenta-se não só sobre o respeito dos direitos humanos, mas também sobre os
direitos dos povos’ – Doutrina Social da Igreja” (Cfr. EV, nº 190).
Há algumas décadas,
de fato, a Igreja parece surda, muda e
apática frente a esse grito generalizado que se levanta do chão de tantos
países e regiões, particularmente no mundo subdesenvolvido, bem como na
periferia e nos porões da zona urbana. Grito tanto mais eloquente quanto mais
silencioso ou silenciado. Estas duas últimas palavras designam concepções
entrelaçadas, na medida em que todo grito silenciado pela tirania, pela
opressão ou pelas forças da ordem, torna-se com o tempo um grito silencioso,
auto-reprimido. Com frequência, o medo sufoca o clamor, estrangulando-o no
fundo da garganta, obrigando pessoas e povos a engolir em seco as lágrimas de
um sofrimento mudo, hereditário, às vezes secular. Diante desse mutismo
reprimido, não raro a Igreja mantém-se comodamente intra-muros, ao abrigo da
sacristia, de uma idumentária suntuosa e de um liturgismo ritualista, satisfeita com o “fã clube de seus fiéis” (o
que em princípio não deixa de ser importante), mas indiferente ao grito que vem
do lado de fora do “rebanho”. É justamete essa surdez e essa indiferença que o
atual Papa procura romper, não só com seus escritos, mas sobretudo com suas
palavras, gestos, comportamento e ações.
O Evangelho de
Marcos narra um episódio emblemático a esse respeito (Mc 5,25-34). Trata-se da
cura de “uma mulher que sofria de hemoragia já há doze anos”. No relato, três
atitudes emergem com uma limpidez cristalina. Antes de tudo, o comportamento da mulher: timidamente, aproxima-se
de Jesus, procurando ao menos tocar nas suas vestes, “porque pensava: ainda que
eu toque só na roupa dele, ficarei curada”. Sua atitude assemelha-se à de um
cão sem dono, acostumado a ser escorraçado. O evangelista decreve-a como “cheia
de medo e tremendo”. Descoberta e exposta ao olhar de todos, “caiu aos pés de
Jesus e contou toda verdade”. Emudecida pelo sofrimento, o preconceito e a
discriminação, não tem palavras. Talvez ela mesma tivesse já introjetado o
julgamento social da trilogia “doente-pobre-pecadora” e, por isso, comunica-se
através do gesto e do toque, linguagem bem conhecida de quem muito sofre ou
muito ama.
Em segundo lugar,
vem a atitude dos discípulos. Tratam,
a todo custo, de afastar e desencorajar a mulher, ao mesmo tempo que tentam
desviar a atenção do Mestre: “Estás vendo a multidão que te aperta e ainda
perguntas ‘quem me tocou’”? Entra em ação o “fã clube dos fiéis”, que
reivindicam o líder só para si. Levantam uma barreira entre o grito aflito da
mulher, solitária e perdida, e os ouvidos atentos de Jesus. Não é essa, de
resto, a atitude de muitos representantes da Igreja, consciente ou
inconscientemente!? Privilegiam de tal forma os graus da hierarquia e o
formalismo inóquo, acrescidos da pompa e da solenidade exagerada – tudo isso
lenta e trabalhosamente marcado pelo ritmo de uma burocracia estéril – que o
pobre se vê cada vez mais afastado e à margem da Igreja e da casa de Deus.
Por fim, a atitude de Jesus, prática
caracterizada pela figura do Bom Pastor. Mesmo em meio à multidão rumurosa, o
Nazareno pergunta: “Quem foi que tocou na minha roupa”? Revela uma
sensibilidade extrema para com o grito que vem de fora. Para além de todos os
rumores e de todas as dores, “alguém me tocou”! Aguém que, a seu ouvido e a seu
coração paterno/materno, merece uma atenção especial, pois encontra-se à beira
do abismo. O socorro deve ser imediato e sem prévios julgamentos. Por isso, não
se deixa enganar pelas desculpas e pelos aplausos fáceis do “fã clube dos
fiéis”, pelo “canto da sereia”. Como em outras episódios, está atento a quem se
lhe aproxima com uma necessidade mais urgente. “Alguém me tocou” de forma
desesperada, como última tábua de salvação. De forma alguma a mulher pode ser uma
vez mais rechaçada. Transparece aqui, claramente, a predileção de Deus por
aqueles que se encontram mais abandonados, mais necessitados, sem ninguém que
lhes abrace a própria causa – isto é, “o órfão, a viúva e o estrangeiro” no
Antigo Testamento; os pobres, famintos, sedentos, migrantes, nus, doentes,
prisioneiros do Novo Testamento (Mt 25,31-46); os últimos, excluídos,
descartáveis da economia globalizada.Convém ter presente que, de tal predileção
divina, a qual atravessa toda trajetória judaico-cristã, deriva a “opção
preferencial pelos pobres”.
No final do relato,
a palavra de Jesus é confortadora: “Minha filha, tua fé te curou, vai em paz”!
O “Verbo que se fez carne” – se fez olhar, sorriso, gesto, toque, presença,
solidariedade – sabe que dor, fome e solidão são como que três irmãs gêmeas:
seu grito não podem esperar! Disso resulta que, enquanto a mulher busca cura e
salvação e os discípulos fingem ignorar sua presença e sua necessidade, Jesus a
acolhe com toda a solicitude. É justamente esta solicitude para com o grito
abafado que vem do chão, da pobreza e da exclusão social que o Papa Francisco
exige da Igreja no texto da Evangelii
Gaudium. E o faz chamando a atenção para a “dimensão social da
evangelização”, título do quarto capítulo da exortação apostólica. E por falar
nisso, vale a pena citar, ainda que de passagem, os subtítulos que o Pontífice
utiliza para desenvolver o tema: 1) As repercussões comunitárias e sociais do kerygma; 2) A inclusão social dos
pobres; 3) O bem comum e a paz social: 4) O diálogo social como contribuição
para a paz.
É notória a
sintonia e a continuidade com as linhas mestras e os princípios fundamentais
não somente da Doutrina Social da Igreja como um todo – vida e dignidade da
pessoa humana em primeiro lugar – mas também com as janelas abertas pelo
Concílio Ecumênico Vaticano II e pelos documentos publicados como conclusão das
Assembleias dos bispos da América Latina e Caribe (Medellín, Colômia, 1968;
Puebla, México, 1979; Santo Domingo, República Dominicana, 1992; Aparecida, Brasil,
2007). E não só porque o compromisso socio-político com a justiça e o direito,
a verdade e a paz formam uma dimensão constitutiva, intrínseca, do Evangelho e
da evangelização. Mas, de uma forma vital, mais profunda e existencial, porque
disso decorre a alegria, a felicidade e a salvação dos seguidores de Jesus
Cristo. O que nos leva a utilizar a frase de abertura do documento como nosso ponto final: “A
alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram
com Jesus” (EG, nº 1).
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs
Roma, Itália, 30 de novembro de 2013
Migração na Evangegii Gaudium
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, CS
Talvez a história, como é de costume, acabe por cunhar Jorge Mário
Bergoglio como o “Papa da alegria” ou o “Papa do sorriso” e ainda o “Papa dos
pobres, dos últimos”... O que não estaria em dissonância com a trajetória do
pobre de Assis, de quem tomou o nome, e, ao mesmo tempo, traduziria uma das
características da prática de Jesus, o Homem de Nazaré. A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (A alegria do
Evangelho) que o Pontífice acaba de publicar aponta claramente nessa direção. O
que mais impressina, porém, é que se trata de uma alegria direcionada
justamente para aqueles que dispõem de menos motivos para sorrir e ou cultivar
esse sentimento. Trata-se, portanto, não de uma alegria aparente, visível ou, digamos,
eufórica, e sim de uma profunda serenidade de coração e de espírito, que nasce
da total confiança em Deus, mesmo nos momentos de adversidade e turbulência.
1. Dimensão
social do Evangelho
Tendo presente esse pano de fundo, vale tentar uma leitura mais atenta
sobre o quarto capítulo do documento, intitulado A dimensão social da evangelização. O acento desta leitura recairá
sobre a situação dos pobres em geral, e dos migranes em particular, tendo
pesente o 126º de Fundação da Congregação dos Missionários de São Carlos
(Scalabrinianos), cujo carisma é justamente o trabalho pastoral junto ao mundo
da mobilidade humana. As migrações constituem hoje um fenômeno estrutural
intenso, complexo e diversificado, comportando séros desafos de ordem social,
econômica, plítica e religiosa – como lembra a Eraga Migrantes Caristas Christi, documento do Pontifício Conselho
para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes.
Convém, de início, sublinhar os temas desenvolvidos no referido capítulo
quarto da Evangelii Gaudium: 1) As
repercussões comunitárias e sociais do
kerygma; 2) inclusão social dos
pobres; 3) o bem comum e a paz social; 4) O diálogo social como contribuição
para a paz. Como se pode notar, o Papa Francisco retoma as linhas mestras ou
princípos fundamentais da Doutrina Social da Igreja (DSI) ao longo do tempo,
bem como seu fio condutor, isto é, a defesa dos direitos e da dignidade da
pessoa humana. Mas o atual Pontífice acrescenta-lhes um revestimento especial, uma
característica própria de sua índole, uma espécie de olhar paterno/materno
sobre os mais necessitados e os indefesos, como o Bom Pastor sobre a “ovelha
perdida” ou “o homem caído à beira da estrada”. Vejamos isso de mais perto, transcrevendo,
obsservando e comentando alguns subítulos desse capítulo.
O primeiro deles revela a consonância intrínseca entre a Confissão da fé e o epenho social. “Esta
indissolúvel ligação entre a acolhida do anúncio salvífico e um efetivo amor
fraterno está expressa em alguns textos da Sagrada Escritura que vale a pena
considerar e meditar atentamente, no sentido de extrair-lhes todas as
consequências (...): ‘tudo aquilo que fizeste a um só destes meus irmãos mais
pequenos, foi a mim que o fizeste’” – diz o texto citando Mt 25,40 (Cfr. EG, nº 179). Na verdade, nada de novo
debaixo do sol! Trata-se de palavras já bem conhecidas, lidas e relidas vezes
sem fim nos atos litúrgicos, momentos de oração e celebrações eucarísticas. Novo
aqui é o fato de reler estas palavras à luz dos gestos, das atitudes e do
comportamento do Papa Francisco desde que foi eleito para a cátera petrina. O
modo de tornar-se próximo à população que o busca por parte do atual pontífice
confere e essas e a outras palavras do Evangelho uma tonalidade e um colorido todo
especial quando. Bastaria um olhar retorvisor sobre suas audiências e o seu
dia-a-adia, para dar-se conta de como o bispo de Roma privilegia precisamente “i più bisognosi e gli ultimi” (os mais
necessitados e últimos).
Unidos a Deus escutemos um
grito, nos convida um
outro subtítulo. E o texto precisa: “A Igreja reconheceu que a exigência de
escutar este grito deriva da própria obra libertadora da graça em cada um de
nós, por isso não se trata de uma missão reservada somente a alguns (...). A
solidariedade é uma reação espontânea de quem reconhece a função social da
propriedade e a destinação universal dos bens como realidade anterior à
propriedade privada” (Cfr. EG, nº 188-9).
“Às vezes se trata de escutar o grito de povos inteiros, dos povos mais pobres
da terra, porque ‘a paz fundamenta-se não só sobre o respieito dos direitos
humanos, mas também sobre os direitos dos povos’ – DSI” (Cfr. EV,
nº 190). Quantas vezes, no interior da Igreja, nos contentamos em
acompahar o fã clube dos fiéis que
participam das práticas e atividaes comus (o que, evidentemente, não deixa de
ser importante), mas ignoramos quase por completo o lamento que vem do lado de
fora dos muros eclesiais. Ignoramos ou nos tornamos indiferentes apelo das
periferias e dos porões da sociedade, tanto mais eloquente quanto mais
silencioso ou silenciado.
Mais adiante encontramos um subtítulo que, a bem da verdade, atravesa toda
a trajetória judaico-cristã, desde a antiga até a nova aliança, desde o Antigo
ao Novo Testamento – passando também pela trajetória da Igreja (não obstante
seu lado obscurantista). Trata-se da expressão O rosto privilegiado dos pobres no Povo de Deus: “Para a Igreja a
opção preferencial pelos pobres é uma categoria teológica, antes que cultural,
sociológica, política ou filosófica. Deus concede a eles a sua primeira
bem-aventurança. Esta preferência tem consequências na vida de fé de todos os
cristãos, chamados a ter “os mesmos sentimentos de Jesus’” (Fil, 2,5).
Inspirada nessa misericórdia divina, “a Igreja fez uma opção pelos pobres etendida como uma ‘forma especial de primazia no
exercício da caridade cristã, da qual dá testemunho toda a tradiçã da Igreja’”
(Cfr. EG, nº 198). O Papa retoma o
horizonte largo, aberto e promissor não só do Concílio Ecumênico Vaticano II,
mas de forma especial dos documentos das Assembleias dos bispos da América
Latina e Caribe (Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida).
2. O
cuidado paterno/materno com os mais frágeis
Com o subtítulo O ensinamernto da
Igreja sobre a questão social, o Papa retoma uma preocupação que nasce no
decorrer do século XX, em pleno contexto da Revolução Industrial, com seus
avanços tecnológicos e suas consequências de ordem socioeconômica. De fato, a
chamada “questão social”, particularmente sob a forma de “condição dos
operários”, é tema não somente de um estudo de Frederic Engels sobre os
trabalhadores nas cidades da Inglaterra (1944) e do Manifesto Comunista de Marx e Engels (1948), como também subtítulo
da Rerum Novarum do Papa Leão XIII
(1991), encíclica que inaugura a Doutrina Social da Igreja, tendo no coração a
situação concreta das condições de trabalho e moradia dos operários da
indústria nascente.
“Em consequência” – afirma a
exortação pontifícia – “ninguém pode dizer que nós ligamos a religião à secreta
intimidade das pessoas, sem alguma influência sobre a vida social e nacional,
sem preocupar-se pela saúde das instituições da sociedade civil, sem exprmir-se
sobre os acontecimentos que interesam os cidadãos. Quem ousaria fechar-se no
tempo e fazer calar a mensagem de São Francisco de Assis e da bem-aventurada
Teresa de Calcutá. Esses não poderáim aceitar. Uma fé autêntica – che jamais
será cômoda e individualista – implica sempre um profundo desejo de transformar
o mundo, de transmitir vaores, de deixar algo de melhor depois de nossa pasagem
sobre a terra” (Cfr. EG, nº 183).
Cabe aqui um rápido recuo no documento, detendo-nos por um pouco no tema
que desenvolve Alguns desafios do mundo
atual, especificamente no subtítulo do primeiro capítulo, denominado Não a uma economia da exclusão. Escreve
textualmente o Papa: “Assim como o mandamento “não matar” coloca um limite
claro para assegurar o valor da vida humana, hoje devemos dizer ‘não a uma
economia da exclusão e da iniquidade’. Esta econmia mata (...). Isto é
exclusão. Não se pode mais tolerar o fato que se jogue fora a comida, quando há
gente que sore de fome. Isto é iniquidade. Hoje tudo entra no jogo da
competividade e da lei do mais forte, onde o poderoso come o mais débil. Como
consequência desta situação, grandes masas de população se vêm excluídas e
marginalizadas: sem trabalho, sem perspectiva, sem via de saída. Considera-se o
ser humano em si mesmo como bem de consumo, que se pode usar e depois jogar
fora. Demos início à cultura do ‘descartável’, a qual, além do mais, acaba
sendo promovida” (Cfr. EG, nº 53).
Em perfeita sintonia com o Documento de Aparecida, utilizando não o
conceito sociológico de exploração, mas de exclusão social, prossegue o texto:
“Não se trata mais simplesmente da exploração e da opressão, mas de algo novo:
com a exclusão, torna-se atingida na sua própria raiz, a pertença à sociedade
na qual se vive, desde o o momento em que nessa não se está nem nos porões, nem
na periferia, ou sem poder, mas se esá fora. Os excluídos não são ‘explorados’,
mas recusados, ‘descartados’” (Cfr, EG,
nº 53).
3. Migrantes,
refugiados, exilados, sem pátria
Retomando a linha do capítulo quarto, o Pontífice nos convida a Tomar cuidado da fragilidade: “É
indispensável prestar atenção para estar vizinhos às novas formas de pobreza e
de fragilidade, onde somos chamados a reconhecer Cristo sofredor, mesmo se isso
aparentemente não nos traz vantagens imediatas: os sem teto, os toxicodependentes,
os refugiados, os povos indígenas, os anciãos cada vez mais sós e abandonados,
etc. Os migrantes me colocam um desafio particular porque sou Pastor de uma
Igreja sem fronteiras que se sente mãe de todos. Por isso exorto os países a
uma generosa abertura, que em vez de temer a destruição da identidade local,
seja capaz de criar novas sínteses culturais. Como são belas as cidades” –
continua o Papa Francisco, com forte acento sobre um desejo que o domina – “que
superam a desconfiança maligna e integram os diferentes, e que fazem de tal
integração um novo fator de desenvolvimento! Como são belas as cidades que,
mesmo no seu desenho arquitetônico, estão cheias de espaços que entrelaçam,
põem em relação, favorecem o reconhecimento do outro” (Cfr. EG, nº 210).
Depois de sublinhar a situação generalizada de milhões de sem pátria, o
texto se detém sobre uma temática bem específica, tema da Campanha da
Fraternidade de 2013, promovida pela Conferência Nacinal dos Bispos do Brasil
(CNBB) durante o temo da Quaresma. “Faz-me sofrer a situação daqueles que são
objeto das diversas formas de tráfico de pessoas. Gostaria que se escutasse o
grito de Deus que pergunta a todos nós ‘Onde está o teu irmão?’ (Gn 4,9). Onde
está o teu irmão escravo? Onde está aquele que você está matando cada dia na
pequena fábrica clandestina, na rede da prostituição, nas crianças que você
alicia para exploração, naqueles que devem trabalhar escondidos porque não
encontram-se em situação irregular? Não façamos de conta que nada existe.
Existem muitas complicações. A pergnta se impõe para todos! Nas nossas cidades
está implantado este crime mafioso e aberrante, e muitos têm as mãos que
gotejam sangue por causa de uma cumplicidade cômoda e muda” (Cfr. EG, nº 211).
Retomando um tema caro à Populorum
Progressio de Paulo VI (1967) e à Solicitudo
Rei Socialis de João Paulo II (1987), o Papa Francisco diz “que a paz
social não pode ser entendida como inércia ou como uma mera ausência de
violência, obtida mediante a imposição de uma parte sobre a outra. Seria
igualmente uma falsa paz aquela que servisse como desculpa para justificar uma
organização social que tenha como meta fazer calar ou tranquilizar os mais
pobres, de modo que aqueles que gozam de maiores benefícios possam manter o seu
estilo de vida sem abalos, enquanto os outros sobrevivem como podem” (Cfr. EG, nº 218). Vem à tona, como nas
encíclicas precedentes acima citadas, o contraste flagrante entre o progresso
tecnológico e o crescimento econômico, nos países e regiões centrais ou
desenvolvidas, de um lado, e, de outro, os países ou regiões periféricas e
subdesenvolvidas. Contraste que se agrava com a concentração de renda e riqueza
ao lado da exclusão social, o desperdício e a “idolatria do consumo” ao lado da
pobreza e da fome, o luxo ao lado da miséria – todos fatores de deslocamento de
massa, especialmente do sul pobre do planeta em direção ao norte rico.
“As reivindicações sociais” – continua o Santo Padre – “que têm a ver com a
distribuição das entradas, a inclusão social dos pobres e os direitos humanos,
não podem ser sufocados com o pretexto de construir um consenso sobre a mesa ou
uma efêmera paz para uma minoria feliz. A dignidade da pessoa humana e o bem
comum estão acima da tranquilidade de alguns que não querem renunciar a seus
privilégios. Quando estes valores são sacrificados, faz-se necessária uma voz
profética” (Cfr. EG, nº 218). Voz
que, no caso do ataul pontífice, se faz “carne”: gesto, presença,
solidariedade, como por exemlo, na visita à ilha de Lampedusa, ponto de chegada
dos refugiados e prófugos da África e Oriente Médio, numa tentativa de chegar à
Europa.
Citando literalmente a Populorum
Progressio (PP), conclui o Papa Fracisco: “A paz ‘não se reduz a uma
ausência de guerra, fruto do equilíbrio sempre precário das forças. Ela se
constrói dia a dia, perseguindo uma ordem que está na vontade de Deus, a qual
comporta uma justiça mais perfeita entre os homens’. Definitivamente, uma paz
que não emerge como fruto do desenvolvimento integral de todos, sequer terá
futuro e será sempre causa de novos conflitos e de várias formas de volência”
(Cfr. nº 219). Conflitos e volência que, como sabemos, constituem
frequentemente a causa imediata de tantos deslocamentos humanos.
Evidente que o desenvolvimento entendido como “novo nome da paz”, para usar
uma expressão basilar da encíclica PP,
evitaria a migração desesperada de tantos jovens, de ambos os sexos, boa parte
de nível superior, em busca de melhores condições de vida fora do país em que
nasceram. Fuga, hemoragia ou circulação de cérebros, o fato é que esse
movimento de massa tende a aprofundar o desequilíbrio entre as nações, tornando
os fortes mais fortes e os fracos mais fracos. É a lei da seleção natural, de
Darwin, aplicada no contexto socioeconômico da globalização. Ao “direito de ir
e vir” assegurado a todo cidadão, corresponde o “direito de ficar” – de
construir o próprio futuro e o da família na pátria de nascimento. Um e outro,
de qualquer forma, devem estar subordinados a uma cidadania mais ampla e sem
fronteiras que inclui o mundo como pátria universal, como lugar de passagem e antecipação
do Reino definitivo e eterno.
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, cs
Roma,
Itália, 28 de novembro de 2014, 126º aniversário de fundação
da
Congregação dos Missionários dos Migrantes (Scalabrinianos)
Natal do Menino migrante
Eu o vi nos grandes centros comerciais, os
shopping-centers,
deitado num simulacro de manjedoura, no interior de uma
gruta,
rodeado de Maria, José, os pastores, os reis magos e
alguns animais;
mas as atenções das pessoas concentravam-se sobre o Papai
Noel:
sentado num trono, distribuía sorrisos, abraços e
presentes;
o protagonista da festa, permanecia ignorado pela imensa maioria,
acanhado a um canto, a exemplo de tantos meninos e meninas,
filhos de pais estrangeiros e sem pátria nos porões da
cidade.
Eu o vi em algumas ruas ou praças da grande metrópole,
presépios artísticos, profusamente iluminadas e enfeitadas;
mas os transeuntes, embriagados pelo brilho das luzes e
presentes,
viam-se arrastados pela frenética sede de encontros e compras;
o personagem principal desaparecia na torrente da multidão
ansiosa,
da mesma forma que milhares de crianças filhas de
migrantes
sós e perdidas, em busca de pão e carinho, como órfãs de
pais vivos,
nos becos sem saída do álcool ou da droga.
Eu o vi no interior das casas, como parte da tradição
cristã:
o mesmo menino, os mesmas animais e figuras, o mesmo
arranjo;
mas a família tinha outros afazeres, próprios do final de
ano:
roupas e sapatos, eletrônicos e móveis, novidades de todo
tipo;
pouca ou nenhuma atenção merecia a imagem do recém-nascido,
como milhões de crianças recém-chegadas do campo ou de
outro país,
sem casa nem escola, poucas possibilidades de futuro,
marcados pelo abandono, o preconceito e a discriminação.
Eu o vi em muitas Igrejas , com a sagrada família e demais
imagens;
porém, como aos saduceus e fariseus de todos os tempos,
a miopia e a cegueira impediam de sentir a aurora do Reino
de Deus
na face simples e singela do Menino que acabara de nascer,
como também no rosto desfigurado de inúmeros meninos e
meninas, refugiados, prófugos, exilados, fugitivos da violência e da guerra:
longe da terra natal, já nascem à margem da estrada e da
vida.
Entretanto, Ele ali estava como Boa Nova para os pobres,
esperança viva daqueles que, apesar das adversidades,
se põem a caminho, na tentativa de abrir horizontes novos!
Pe. Alfredo J.
Gonçalves, cs, Roma, 15 de novembro de 2013
Olhar materno de Deus
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, cs
Não existe fórmula para um relacionamento sadio e
reciprocamente enriquecedor com o “outro,
estranho e diferente”. Não existe receita para um verdadeiro contato com
quem vem de outro país, fala outra língua, professa outro credo, delfralda
outra bandeira e se rege por outras referências culturais. Não existe cartilha
para a acolhida ao imigrante, estrangeiro, exilado, prófugo, refugiado... O
estabelecimento e o cultivo de novos laços e relações humanas, neste e em
outros casos, não seguem a lógica
matemática dos conceitos racionais, mas o intrincado labirinto dos afetos,
sensações e sentimentos.
A construção de pontes entre pessoas, grupos e povos
diversos não se faz com o concreto do ferro, da pedra e do cimento, e sim com a
massa rica, indefinida e indescritível de olhares cruzados, sorrisos trocados,
gestos solidários, sons que se hamonizam e palavras bi ou trilíngues. Não me
refiro a uma coexistência pacífica ou a uma mera tolerância entre diferenças, como
justaposição de água e ajeite. Tampouco falo de uma trégua forçada, onde a paz
se reduz ao equilíbrio das armas. Não basta isso, entretanto, é preciso chegar
ao dom da escuta, do diálogo, da compreensão, da simpatia ou da abertura... Em
síntese, o confronto e encontro profundo, verdadeiro, de espíritos e de valores
humanos e culturais.
Vale, contudo, uma tentativa de aproximação. Ou melhor, uma
vereda mais curta no caminho a ser percorrido entre o “eu ou nós”, de uma
parte, e o “ele ou eles”, de outra. Como encurtar a distância entre os “nossos”
e os “outros”, os de “dentro” e os de
“fora”? A vereda ou atalho consiste na tentativa de colocar-se no lugar da mãe,
ou seja, na arte de olhar para o outro/a – pessoa, grupo, etnia, nação – com o
olhar materno. Não será essa, por outro lado, a maneira de Jesus olhar as
pessoas, especialmente as mais pobres e excluídas, mais doentes e abandonadas,
mais pecadoras e marginalizadas, mais perseguidas e indefesas... “I più bisognosi e gli ultimi” (os mais
necessitados e os últimos – diria o Papa Francisco)? Bastaria trazer aqui o
rosto ferido e desfigurado dos possuídos pelo demônio, dos doentes e leprosos,
dos samaritanos e estrangeiros, das mulheres e crianças, dos cegos e aflitos...
Um exemplo: caminho pela rua de um bairro mais ou menos
suspeito e me deparo com uma pessoa completamente estranha, seja no jeito de
vestir, de falar, de andar, de olhar, seja no modo de comportar-se... Talvez
mal-vestida, meia esfarrapada, suja, de cor diferente, atitude aparentemente
ameaçadora... Enfim, alguém com quem definitivamente não simpatizo, ou, pior
ainda, alguém que temo. Por instinto, levo a mão ao bolso, verifico a carteira,
desvio uns passos à direira ou à esquerda, posso até cruzar para o outro lado
da calçada, evito olhar em sua direção... Em outras palavras, a primeira reação
é a de proteger-me e, no limite, partir para a agressão.
Mas se, num relance renpentino, me pergunto “qual será
seu nome e sua profissão, se é que tem alguma? Onde habitará, terá endereço
fixo, uma família, irmãos, irmãs, tios, tias, sobrinhos? Será casado, com esosa
e filhos? Mais particularmente, como se chamará a sua mãe e como ela vê este
seu filho meio abandonado, para mim simplesmente tão esranho?” No mesmo
instante, um vago sentimento de simpatia parece sacudir-me as entranhas. Uma
onda de ternura percorre-me as veias, abranda-me o coração. Barreiras
invisíveis se quebram e abre-se uma pequena possibilidade de compreensão, por
menor que seja...
Outro exemplo: encontro-me diante da televisão, é hora do
telejornal. O noticiário destaca um assalto, flagrado pelo sistema eletônico de
segurança, onde vítimas e agressores se desencontram. Correria, tiros, feridos,
fuga... Depois, já na delegacia, sob as câmeras, holofotes e microfones
indiscretos da mídia, desfilam os rostos dos assaltantes. Uma vez mais,
estranhos, malvestidos, pulsos com algemas, olhares enviezados; uns meio
envergonhados, outros cínicos ou indiferentes; um menor, outro negro, um
terceiro com aparência de classe média... Resumindo, pessoas que tanto os
policiais e os repórteres televisivos, de um lado, quanto os espectadores, do
outro, classificam como “bandidos, marginais, safados, sem-vergonha”!... Cadeia
neles! Minha reação à cena, embora secreta, acanhada e tímida, não é diferente.
Prevalecem a antipatia e o instinto de agressividade.
Porém se, num relâmpago, me pergunto “quem serão seus
familiares e onde habitarão? Como o estarão vendo neste momento? E mais
especificamente, como o vê sua mãe?” Esta, contra tudo e todos, talvez esteja
pensando que “tudo isso é verdade, sem dúvida, mas no fundo ele é um bom
rapaz”!... Ela conhece seu coração! Novamente percorre-me o corpo uma onda
desconhecida de calor humano, como se o sangue tivesse sido irrigado pelo
efeito de um antibiótico, uma espécie de remédio contra o um coraçao de gelo.
E, ainda desta vez, uma sombra pesada parece cair de meu rosto de pedra, um véu
se abre, e sinto vontade de conhecer seus nomes, sua história, como chegaram
até ali... Até meus olhos parecem umedecidos! Muros se rompem e surge a luz de
uma pequena dose de compaixão, por menor que seja...
Nem precisaria voltar às páginas do Evangelho para
darmo-nos conta que o olhar de Jesus
é como um olhar materno sobre pessoas
e fatos: os temores e tremores, os embates e turbulências, as assimetrias e contradições da história,
seja esta de caráter pessoal, familiar ou coletivo. É com essa visão
misericordiosa e compassiva que Deus se revela na pessoa, obras, palavras,
gestos e atitudes do profeta itinerante de Nazaré. Deus com nome de Pai (Abba),
coração e olhar de mãe! Os encontros de Jesus com seres humanos curvados pelo
peso da lei e do pecado, da culpa e da discriminação, da enfermidade e do
abandono, da pobreza e da exclusão social – emergem como a prova mais evidente
e eloquente desse olhar materno.
Olhar que transparece até mesmo em seus dedos e em suas mãos, no cuidado
maternal para com as feridas mais diversificadas do corpo e da alma de cada
pessoa, única e irrepetível. Pai que acolhe e perdoa o “filho pródigo”, pastor
que conhece a voz e carrega ao colo a “ovelha perdida”, mãe que se compadece e
devolve a outra o “filho único da viúva”. De fato, o perdão dos pecados, por
uma parte, e a fé dos interlocutores, por outra, constituem a marca registrada
de seus milagres e parábolas. Entre ambos, porém, se interpõe o olhar materno
de Deus.
Essa marca registrada e a atitude maternal do Messias
ganham força especial e inusitada nos capítulos 13 a 17 do Quarto Evangelho:
trata-se de uma sequência que incorpora o lava-pés, a última ceia, o diálogo
com os discípulos e a oração sacerdotal. Somente João, o discípulo mais amado, poderia
ter escrito esses capítulos, tamanhas são “la
bontà e la tenerezza” (a “bondade e a ternura”, ainda na expressão do Papa
Francisco) que neles se respira. Oxigênio vital, indispensável, para toda e qualquer existência humana. Nas
palavras do quarto evangelista e na linguagem e gestos de Jesus torna-se
cristalino não somente seu olhar, mas também seu coração materno.
Ao dar-se conta que logo será entregue na mão das
autoridades e será condenado à morte, num gesto característico de comensalidade (partilha de pão e vida) e
numa espécie de testamento espiritual, trata seus seguidores como “filhinhos”,
comprometendo-se que jamais os deixará “orfãos”; mostra-lhes que no Reino de
Deus poder é igual a serviço; recomenda-lhes o amor recíproco acima de qualquer
coisa, “amai-vos uns aos outros”; promete-lhes o envio do Espírito Santo, como
o Paráclito e defensor; garante-lhes que
se fará presente até o fim dos tempos, para vencer as forças do maligno; adverte-os
para os perigos que os aguardam no mundo do pecado e das trevas; e por fim, intercede
por eles junto a Deus, como que devolvendo aqueles que o Pai lhes “havia
confiado”. Não parece – tudo isso – o comportamento de uma mãe que,
pressentindo a morte, reúne seus filhos ao redor do leito e irriga-lhes o
coração e a alma com o bálsamo de suas últimas e mais preciosas palavras?!...
Roma, Itália, 22 de novembro de 2013
Migrantes: vítimas e sujeitos
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, CS
O tema do título
poderia ser formulado da seguinte maneira: os migrantes em geral sofrem a migração ou, ao contrário, são capazes de fazer dela uma força motriz que move a história? Grande
parte dos estudiosos que se debruça sobre o fenômeno da mobilidade humana
coloca o acento na primeira dessas hipóteses. Segundo suas análises, os
migrantes, refugiados, prófugos, exilados, trabalhadores temporários, etc., não
passam de vítimas de algum fator externo, com poucas ou nenhuma chance de
alternativa. Vítimas de condições socioeconômicas adversas, do ponto de vista
histórico e estrutural; de políticas públicas insuficientes, injustas ou
excludentes; de catástrofes naturais que devastam, ao mesmo tempo, seus
pertences e a vida de suas famílias; de prenconceitos religiosos, discriminação
ou perseguição ideológica, de tensões e conflitos, violência e guerras
sangrantas, e assim por diante.
Neste caso,
migração converte-se em sinônimo de fuga. Na retaguarda ficaram os destroços de
uma existência sacudida violentamente por um terremoto, seja este de natureza
sísmica, socioeconômica, política ou bélica. Impossível o retorno, a única
alternativa de sobrevivência descortina-se no horizonte do amanhã, embora
nebuloso, desconhecido e incerto. A decisão pessoal de migrar encontra resposta
num conjunto mais amplo de circunstâncias que envolvem o indivíduo, o grupo
familiar ou todo um povo ou nação. Um período mais prolongado de seca, uma
enchente ou um conflito armado, por exemplo, podem ser a causa imediata da
migração. Marcam a hora da saída. No fundo, porém, a falta de água ou o excesso
dela, bem como a luta aberta entre facções inimigas, não fizeram senão agravar
causas remotas e há muito em curso, tais como a estrutura agrária e agrícola, o
abandono em que vivem os pequenos produtores,
a disputa ideológica pelo poder ou a sedução das “luzes da cidade”.
Deste modo, fatores bem precisos e visíveis fazem aflorar fatores subterrâneos
e invisíveis, determinando o momento da partida.
Nem por isso a
segunda alternativa deve ser descartada. Apesar de vítimas de causas remotas e
imediatas, os migrantes podem fazer da
fuga uma nova busca. De forma consciente ou inconsciente, o próprio fato de
migrar, e de fazê-lo em massa, converte-se em protagonismo. Os fluxos
migratórios, a exemplo das ondas do mar, sempre desencadeiam energias que mexem
com as águas paradas. Os grandes deslocamentos humanos, como as marés,
interferem no ritmo dos acontecimentos. Numa palavra, as migrações fazem
história, sim, e os migrantes se transformam em sujeitos da mesma! De fato, se,
por um lado, a saída em bloco da própria terra questiona a região ou país que
não é capaz de oferecer cidadania a seus filhos, por outro, a chegada a um novo
lugar obriga a uma tomada de posição diante dos “diferentes e estranhos”. Tanto
na origem quanto no destino, os deslocamentos humanos interpelam a sociedade,
exigindo mudanças urgentes e necessárias nas relações inter-regionais e/ou
internacionais.
A presença do outro – seja ele quem for, venha ele de
onde vier, tenha ele os hábitos que tiver, fale ele a língua que falar – sempre
perturba e às vezes revolucina a mesmice do cotidiano. De início, porque a
identidade de cada pessoa e de cada grupo ou povo só amadurece no confronto com
os valores de outra cultura. Mas não é só isso. No caso dos migrantes, além da
questão étnica, que nunca deixa de ser relevante, sobrepõe-se a problemática
socioeconômica. Ou seja, o outro é também pobre:
fugitivo, retirante, esilado, sem nome, sem família, sem lugar, sem papéis e
sem pátria. Interpela não somente a minha identidade, mas também o meu bolso, o
meu emprego, a minha posição social, o meu filho na escola, a minha paz. Não me
deixa indiferente, obriga-me a tomar consciência da situação. Positiva ou
negativamente, devo dar uma resposta. Resposta que se torna uma exigência não
apenas para cada pessoa, família ou grupo, mas para as associações e
organizações de base, movimentos sociais e partidos políticos, instituições e
entidades, Igrejas e autoridades em geral.
“Eu era estrangeiro
e me receberam em sua casa” ou “eu era estrangeiro e não me receberam em sua
casa”, diz o Evangelho (Mt 25, 35.43). Diante do migrante que bate à porta
(representando a figura do próprio Jesus), duas posições opostas, contrastantes:
enquanto a primeira acolhe o forasteiro, a segunda finge ignorá-lo. Mas a
história não há de perdoar aqueles que, nos momentos mais decisivos e trágicos
dos embates humanos, permaneceram de braços cruzados, argumentando neutralidade.
Há muito o mito da neutralidade está morto e sepultado. Ainda segundo o texto
bíblico, a uns o juiz chamará de “benditos de meu Pai”; aos outros, “malditos
de meu Pai”. O comportamento para com o outro/estrangeiro
torna-se critério para enrtrar no Reino de Deus. Quando o outro, além de
estranho e pobre, é uma vítima caída quase
sem vida à beira da estrada, o critério de salvação torna-se igualmente
decisivo, como na parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37). Aqui, porém, ainda
resta uma oportunidade de conversão e ação solidária: “Vá, e faça a mesma
coisa!”, diz Jesus ao doutor da lei.
Justamente essa
oportunidade que nos dá a presença do outro pode tornar-se em força motriz da história, a segunda
hipótese a que nos referíamos no início. O migrante nunca é somente vítima, mas
energia viva que protagoniza mudanças. Pondo-se em marcha, e fazendo-o em forma
coletiva, como as águas de um rio em movimento, o migrante inquieta, incomoda e
interpela, mas também irriga e fecunda a terra com seus valores culturais e
religiosos, seu trabalho, sua inteligência e criatividade. Requer, por isso,
uma tomada de posição, seja em termos individuais e familiaes, seja em termos
sociais e eclesiais, seja ainda em termos de grupo, partido ou governo. Ao
movimentar-se, mobiliza igualmente outras forças sociais, quer estas o rechacem
quer o acolham. Sua insistência na luta por um futuro mais promissor amplia as
janelas do horizonte ou, como dizia Dom J. B. Scalabrini – pai e apóstolo dos
migrantes – “alarga o conceito de pátria”, pois esta para o migrante “é a terra
que lhe dá o pão”.
A tradição
judaico-cristã fez uma experiência de Deus diferente dos demais povos vizinhos.
Enquanto para estes Deus era um ente acima e além da história, sentado no trono
do templo, sempre sedento de sacrifícios, para os israelitas Javé é aquele que,
frente à realidade do povo, “vê a aflição, ouve o clamor, conhece o sofrimento
e desce para libertá-lo” (Ex 3,7-10). Um Deus atento, sensível e solidário à
condição social de seus filhos e filhas e que, por isso, caminha pelas estradas
do êxodo, do deserto e do exílio. Contra os tiranos e tiranias de todos os
tempos e lugares, Deus irrompe na história para abrir-lhe novos horizontes,
novas alternativas. Deus a caminho que nos chama a caminhar, senhor do tempo e
da história. De igual forma, os deslocamentos humanos de massa cruzam mares
bravios, atravessam desertos inóspitos e rompem muros e fronteiras – descerrando
com a energia de águas represadas todas as possibilidades da tragetória humana
sobre a face da terra. Força motriz da história, na medida em que, “com a cara
e a coragem” (canção de Guilherme Arantes) lhe desvendam potencialidades
ocultas.
Roma, Itália, 16 de novembro de
2013
Cristianismo esquizofrênico
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, CS
O termo esquisofrenia
provém do universo da psicologia ou da psicoterapia. De acordo com os
dicionários da língua portuguesa, designa “uma demência precoce caracterizada
por distúbios da afetividade”, ou também “uma desintegração da personalidade
humana”. Transposto ao campo religioso, pode ser utilizado como metáfora para
definir aqueles que, implícita ou explicitamente, costumam separar a fé do
comportamento prático, seja este de ordem pastoral, socioeconômico ou
político-cultural. Atualmente constituem uma boa fatia dos que se declaram
“cristãos”. Normalmente participam dos sacramentos, das práticas religiosas, do
culto da Palavra ou da eucaristia, ao mesmo tempo que, no mundo dos negócios,
do lugar em que moram e do trabalho, o seu modo de ser não sofre qualquer
influência da mensagem evangélica. Con frequência, apreciam e admiram as palavras
do Papa, do sacerdote, do pastor ou de qualquer outra autoridade religiosa (por
exemplo), mas isso não significa aceitá-las na prática. Conseguem estabelecer
uma distância razoável entre o “autodefnir-se como cristão” e o “viver como
cristão”. No geral, revelam-se capazes de blindar a própria existência contra
as exigências de uma fé levada verdadeiramente a sério, subtraindo-se às
consequências da mesma. De resto, em grau maior ou menor, essa distância entre
fé e vida existe em todos nós. “Tra
il dire e il fare in mezzo c’è il mare”, diz um provérbo italiano.
No caso específico do catolicismo, a fé em Jesus Cristo
torna-se um sentimento de natureza privada, intimista e espiritualizante, sem
implicações diretas no contexto histórico em que a pessoa se encontra inserida.
Prevalece um dualismo muitas vezes inconsciente: enquanto o “encontro com Deus”
na oração pessoal, na piedade comunitária ou na celebração eucarística adquire
um caráter estático de êxtase e fácil entusiasmo, o “encontro com os irmãos”
mantém-se frio e indiferente diante da injustiça e da opressão, do sofrimento e
da exclusão social. Não é incomum encontrar grandes empreendedores e renomadas
autoridades (na área das finanças, da agro-indústria, das tele-comunicações, da
mineração, da política e das redes comerciais – só para citar alguns exemplos)
que se revelam assíduos na oração e na missa, mas contemporaneamente não exitam
em pagar salários irrisórios, em manter enormes latifúndios, em apropriar-se
indevidamente da rex publica ou em explorar
a mão-de-obra fácil e barata, quando não infantil ou de imigranes irregulares.
Perto de Deus, sem dúvida, mas distantes do próximo e
mais ainda daqueles que incomodam! Até que ponto isso é possível numa fé
evangelicamente autêntica? Ou ainda, esse deus (com letra minúscula) não será
um ídolo facilmente manipulável? Evidente que, embora em doses diferenciados, a
mesma atitude se repete em todos os extratos e classes sociais. Chegamos ao
extremo de “uma descrença objetiva”, ao lado de uma “piedade subjetiva”, diz
com acerto o teólogo alemão Jurgen Moltmann (Teologia da esperança). Afirma ainda o mesmo autor: “A vida
interior feita de relações diretas e incomunicáveis entre a existência e a
transcendência, caminha pari e passo
com o desprezo das coisas exteriores, consideradas absurdas, privadas de senso
e iníquas”. A relação com Deus desvincula-se da relação com os outros, como se
rezar o “Pai nosso” não implicasse um combate coletivo e fraterno pela busca do
“pão nosso de cada dia”. De fato, se o Pai é “nosso”, o pão jamais poderá ser
“meu”. A fé divorcia-se da vivência eclesial e da ação social.
A oração diante do Cristo Ressuscitado se interioriza
numa forte sensação de louvar ao Deus eternamente presente e glorioso, a ponto
de desinteressar-se por completo de qualquer compromisso com a realidade que
nos cerca. Instala-se uma clara dicotomia entre a vivência da fé, às vezes eufórica
e exagerada, por um lado, e, por outro, a ação pessoal, social ou política nos
embates da existência, na família, no grupo de amigos, enfim, no cotidiano da
vida. Ambas parecem linhas paralelas de uma ferrovia, ou seja, linhas que
jamais se cruzam e menos ainda se interpelam. Pior ainda, a vida privada e a
vida pública correm o risco de dissociar-se a tal ponto de uma sequer
reconhecer a outra. O que eu sou em casa e na Igreja, digamos, é uma coisa; o
que eu sou ou como vivo la fora, é outra. Dois tipos de comportamento
fragmentados, não raro em contradição entre si. Quantas vezes o escândalo de um
representante de alto escalão da política, dos negócios ou da religião, quanto
escancarado pela mídia, revela essa dupla face da mesma pessoa!
Nas cartas de Paulo, particularmente na Primeira aos
Coríntios, o apóstolo combate esse êxtase falso de uma expectativa imediata do
Reino – próprio da Igreja primitiva – como se a segunda vida de Cristo
estivesse às portas. Semelhante expectativa levava os cristãos a desinteressar-se
das “coisas do mundo”, para refugiar-se numa atitude de fé estéril e
descompromissada. Ao invés de uma preocupação pela transformação do mundo,
prevalecia o seu abandono puro e simples. Por que fazer algo se o fim está
proximo! Basta esperar o Senhor! Vem, Senhor Jesus! Se, por uma parte, é
verdade que Cristo ressuscitou dos mortos e está vivo, diz Paulo, por outra,
também é certo que nós permanecemos sujeitos às incongruências e contradições
deste mundo, submetidos ao domínio do pecado e da morte. Experimentamos o “já”
da ressureição de Jesus como antecipação da glória futura e, ao mesmo tempo, o
“ainda não” que mantém o corpo e o espírito na expectativa do cumprimento da
promessa expressa na vinda gloriosa. O apóstolo enfatiza uma diferença
fundamental, muitas vezes pouco levada a sério. Enquanto Cristo passou pelo
processo da cruz e da ressurreição, nós ainda vivemos sob o signo do sofrimento
e da cruz. Não podemos abandonar sem mais a “carne do mundo” (Bruno Forte) onde se encontram tantos irmãos
e irmãs crucificados. Parafraseando Paulo Freire, ninguém se salva sozinho,
ninguém salva ninguém; todos nos salvamos juntos. Caminhamos nas trevas, à
sombra da cruz, tendo na mão a chama da ressurreição do Messias, na fé e na
esperança de nossa própria ressurreição e da instalação definitiva do Reino de
Deus. Vale insistir, a promesa que nos impele à ação no mundo “já” se fez
presente em Jesus morto e ressuscitado, mas “ainda não” se cumpriu em nós
mesmos. Daí a exigência de uma fé que se desdobre em prática transformadora
diante de uma sociedade que contradiz o plano de Deus.
Por isso é que a fé e a esperança conduzem ambas à prática
da caridade. Enquanto estamos a caminho, não podemos separar “justos e injustos”,
“fiéis e infiéis”, “puros e impuros”, “salvos e perdidos”, “Deus e o mundo” –
como âmbitos absolutamente contrários e com fronteiras precisas. Não podemos
cruzar os braços diante de uma sociedade fortemente marcada pelo individualismo e o egoísmo, o
sofrimento e a morte. Fugir deste contexto é abandonar o mundo onde foi erguida
a cruz de Cristo, no Calvário, e onde estão plantadas hoje as cruzes de milhões
de pessoas, a imensa multidão dos “sem”: sem terra e sem trabalho, sem nome e
sem endereço, sem pão e sem escola, sem direitos e sem pátria. Buscar o céu e o rosto de Deus sem passar pelo
rosto desfigurado dos pobres e excluídos é o mesmo que tomar um falso atalho
para a fé a partir da Boa Nova do Evangelho e de toda a Bíblia como Palavra de
Deus. “Onde está teu irmão Abel?” – perguntará novamente o Senhor! E que
responderemos? Não vale repetir a mesma desculpa de Caim: “por acaso sou eu o
guarda de meu irmão!” Sim, na família cristã, somos todos responsáveis uns
pelos outros, guardiães uns dos outros.
Alguns tipos de oração, de exercícios de piedade e de louvor
e, por outro lado, algumas formas de comportamento dos participantes de certos
movimentos religosos, surgidos nas últimas décadas, tendem a essa dicotomia. Do
nosso lado estão os que “encontraram Jesus”; do lado de fora os que vivem nas
trevas do erro e do pecado. Trata-se de um dualismo que remete ao famigerado
conceito de maniqueísmo, segundo o qual o bem e o mal, o certo e o errado encontram-se
em lados diametralmente opostos. Na prática de Jesus e nas cartas de Paulo,
contudo, todos estamos a caminho, na tensão entre o pecado e a graça, a dor e a
esperança, a danação e a salvação. Ninguém se encontra definitivamente salvo e
ninguém definitamente condenado. Estamos todos sujeitos às pedras e espinhos da
estrada, às relações conflitivas com os outros e ao ambiente histórico em que
vivemos e nos movemos. E todos somos chamados, diária e simultaneamente, a uma
resposta diante do apelo evangélico e à solidariedade com os pobres, os
pecadores, os mais necessitados, os últimos, como não se cansa de lembrar o
Papa Francisco. Como conclusão, resulta que fé e compromisso pastoral, social e
político são indissociáveis.
Roma, Itália, 16 de novembro de 2013
LUZES E SOMBRAS DA CONDIÇÃO HUMANA
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Luzes e sombras se entrelaçam e se
mesclam nas fibras mais íntimas de todo ser humano. Ambas compõem o tecido
ambíguo e contraditório do corpo, do coração e da alma de cada pessoa. Zonas
familiares e iluminadas convivem com reentrâncias incógnitas e obscuras. O jogo
de xadrez da existência, como a própria condição humana, é permeada pela tensão
entre um âmbito perfeitamente conhecido e domesticado e um outro, estranho e
enigmático. Consciente e inconsciente, explicaria Freud com os mestres da a
psicanálise. O certo é que, do berço ao túmulo, nas curvas do caminho, nos
relacionamentos que estabelecemos ou nas turbulências da história, revelamos
simultaneamente o brilho e a escuridão que moram em nossas entranhas. Amor e
ódio, rancor e compaixão, egoísmo e doação, medos e valentias, perguntas e
respostas, alegrias e tristezas, dor e esperança, desespero e sonhos – ao mesmo
tempo – sacodem e fazem estremecer nossas vísceras mais secretas. “Coração de
homem é terra selvagem”, diz Riobaldo Tartarana principal personagem da
obra-prima de Guimarães Rosa, Grande
Sertão – Veredas.
Do nascimento à morte avançamos, tropeçamos,
nos levantamos e voltamos a caminhar sempre acompanhados ou pelos raios de um
sol esplendoroso ou por nuvens sombrias e ameaçadoras. Outras vezes prevalece o meio termo, o
lusco-fusco idefinido do amanhecer ou do ocaso. Na superfície visível, calma e
transparente das águas ou nas correntes subterrâneas, invísiveis e tempestuosas
– navega nossa frágil embarcação. Impulsionam-na o vento e a brisa suave que a
transportam rumo ao porto seguro ou o furação borrascoso e enfurecido que a
despedaça e aniquila. Dizia o escritor português José Saramago, Prêmio Nobel de
literatura de 1998, que “o riso e a lágrima moram muito perto um da outra”.
Ninguém é somente luz e ninguém somente
sombra. Ninguém é luz o tempo todo e ninguém é sombra o tempo todo. Numa linguagem
evangélica, tomando como referência o encontro emblemático entre Jesus e a
Samaritana na beira do poço (Jo 4,1-38), poderíamos dizer que ninguém é somente
água e ninguém somente sede. Ninguém é água o tempo todo e ninguém é sede o
tempo todo. Somos as duas coisas a um só tempo: formamos uma mistura intricada
de ambos os aspectos. Eles não só se misturam e se entrelaçam, mas também se
alternam e se sobrepõem com uma fraquência que, não raro, nos assusta e
espaventa. Subitamente, por exemplo, caímos numa angústia ou amargura repentina,
sem a menor possibilidade de explicá-la a nós mesmos e aos outros; ou, ao
contrário, revelamos uma euforia completamente inadequada e inapropriada às
circunstâncias do momento.
Tanto o lado positivo quanto o lado
negativo desse tecido incongruente e misterioso que é nossa existência pode
explodir como um vulcão, sem que possamos prever sua emergência e menos ainda
suas consequências. Lavas e fogo, fumaça e cinzas se espalham ao nosso redor –
em forma de furor, melancolia ou festa – e permanecemos incapazes de descobrir
as razões imediatas ou remotas de tamanha irrupção. Dá testemunho disso a obra
monumental, em sete volumes, do escritor francês Marcel Proust Em busca do tempo perdido, onde um
simples perfume ou um som na infância longínqua, por exemplo, põe em ação o
desenrolar de um fio mágico que irá costurar as “reminiscências do coração”.
Seria mais fácil, sem dúvida, se as
coisas, as pessoas e as relações humanas tivessem uma fronteira nítida e
precisa entre o bem e o mal, o certo e o errado, o positivo e o negativo, a
graça e o pecado. Mas semelhante dicotomia inexiste, o tecido é costurado por
fios de todas as origens e cores. Aliás, não poucas organizações ou movimentos
sociais padecem de uma visão dualista extremamente perigoso a esse respeito.
Nessa visão falsa e dicotômica da realidade socioeconômica e político-cultural,
a divisória entre luz e sombra, água e sede, costuma ser taxativa: dentro de
nossos quadros estão os “bons”, lá fora “os maus”. Uns aparecem como os “salvos”
ou “puros”, outros como os “perdidos” ou “impuros”. Os limites devem ser
igorosamente observados, jamais podendo ser ultrapassados. Nada de misturar-se
aos pecadores que ignoram o caminho do bem, ou que não “encontraram Jesus
Cristo”! Segundo a mesma forma de pensar, a sociedade aparece como um
verdadeiro mar de lama, de sujeira e de escória, um apelo constante e sedutor
ao pecado do luxo e da luxúria, exercendo um fascínio cheio de riscos sobre a
alma – mas “nós” estamos salvos. Longe de exercer uma ação social, pastoral ou
política com vistas à transformação do mundo, semelhante mentalidade tende a
fugir dele com medo de contaminar-se.
Não sem razão muitos movimentos
religiosos contemporâneos adquirem o caráter de “barquinhos de salvação” em
meio à tempestade das ondas agitadas e imprevistas. O resultado é que, embora o
mundo esteja mergulhado em imundície e depravação, o “nosso” barco/movimento
navega acima e ao abrigo dos mares bravios. Desenvolve-se, consequentemente,
uma concepção maniqueísta da vida humana: espírito e matéria, corpo e alma,
mundo e Deus se contrapõem. É preciso escolher entre um e outro. Ignora-se que
no evento do profeta itinerante de Nazaré “o verbo se fez carne” para anunciar
o Reino de Deus em meio às pedras e espinhos do caminho, às tensões dos laços
que ligam os seres humanos e aos embates da história. Em Jesus, a intimidade
com o Pai se complementa e se enriquece, necessariamente, através do contato
com os pobres e com os diversos grupos sociais de sua época.
Dessa visão dualista resulta uma
concepção equivocada de evangelização, segundo a qual evangelizar constitui uma
forma de levar a Boa Nova aos outros.
Mais concretamente, “nós” da Igreja possuimos a palavra da verdade e devemos
levá-la a quem se encontra nas trevas do erro e do pecado. Nessa perspectiva,
luz e água encontram-se de um lado, enquanto do outro estão a sede e as
sombras. Exatamente o contrário da metodologia de Paulo Freire, nos livros Pedagogia do Oprimido e Educação como prática da liberdade, onde
se lê que ninguém se encontra completamente destituído do saber. Os saberes são diferentes uns dos outros,
não melhores nem piores; por isso, o que educa é justamente o intercâmbio entre
eles. Numa postura dialógica e não “bancária”, os valores culturais de cada
pessoa ou povo se encontram, se cruzam e se enriquecem reciprocamente. A
verdade não está comigo nem com você, está no diálogo eu-tu. “O real não está
no começo, nem no fim, ele se dispõe para nós é no meio da travessia”, ensina
ainda a sabedoria de Guimarães Rosa. E o poeta espanhol acrescenta que
“caminhando é que se faz caminho”.
Mas a pretensão de levar a Boa Nova do Evangelho a quem não a possui também é
contrária à prática e pedagogia do próprio Jesus. Suas palavras, gestões e
ações constituem uma evidência de que o Evangelho não se leva, mas se vive no
concreto do dia-a-dia. Uma vez mais, “o verbo se fez carne” – se fez olhar,
sorriso, toque, presenaça viva, doação, solidariedade até as últimas
consequências. Na pedagogia de Jesus, claramente a evangelização tem mão dupla:
quem evangeliza é também evangelizado. “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da
tera, porque escondeste essas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste
aos pequeninos” (Mt11,25). E os destinatários da evangelização revelam-se
igualmente evangelizadores, como no episódio em que Jesus se encontra com com a
mulher cananeia, a qual insiste com o Senhor que “também os cachorrinhos comem
das migalhas que caem da mesa dos donos”. E o leva a mudar de ideia: “Mulher, é
grande a tua fé! Seja feito como você quer” (Mt 15,21-28). Mais do que semear a
Boa Nova do Reino de Deus, não seria exagero afirmar que Jesus a colhe nos
corações abertos aos novos rumos da história. Colhe-a e extasia-se diante da
sensibilidade dos estrangeiros, das mulheres, das crianças... Parafraseando
ainda Paulo Freire, podemos concluir que “ninguém evangeliza ninguém e ninguém
é evangelizado por ninguém, nós nos evangelizamos no confronto e no diálogo de
valores”.
Fé e descrença, bons e maus, luzes e
sombras, água e sede, certezas e dúvidas... “Tudo é muito misturado, tudo é
sertão”, reconhece, enfim, o mesmo Guimarães Rosa. Por isso é que ninguém está
definitivamente salvo e ninguém está definitivamente condenado. Todos estamos a
caminho e, nele, podemos escolher entre, de um lado, potenciar a tendência ao
bem e ao altruísmo ou, de outro, deixar prevalecer a inércia que dá campo livre
ao mal e ao egoísmo. Daí a insistência do Mestre na parábola sobre o joio e o
trigo (Mt 13,24-30), no sentido de deixá-los crescer juntos até que, adultos e
maduros, possam ser julgados somente por Aquele que nos conhece em todas as
nossas fibras.
Roma, Itália, 09 de novembro de 2013
ENCERRAMENTO DO Ano da fÉ
Pe. Alfredo J.
Gonçalves, CS
No dia 24 de novembro de 2013, na Praça
São Pedro, Roma, o Papa Francisco celebrará o encerramento do Ano da Fé, iniciativa aberta por seu
predecessor numa cerimônia realizada no dia 11 de outubro de 2012. “O Ano da fé que estamos inaugurando hoje”
– dizia o então Papa Bento XIV em sua homilia para aquela ocasião – “está
ligado coerentemente com todo o caminho da Igreja ao longo dos últimos 50 anos:
desde o Concílio Ecumênico Vaticano II, passando pelo Magistério do Servo de
Deus Paulo VI, que proclamou o Ano da fé
em 1967, até chegar ao Grande Jubileu do ano 2000.
Um olhar para trás
Que frutos podemos colher dessa
iniciativa de suma importância para a caminhada da Igreja? Uma olhada ao
retrovisor bastará para constatar sua incidência, tanto no interior da própria
Igreja quanto na sociedade em geral. Primeiro, como lembrava o Papa, destacamos
a celebração dos 50 anos de Concílio Vativano II, evento que transformou não só o corpo e a estrutura, como também
toda a ação pastoral da Igreja. Documentos como a Lumen Gentium, a Ad Gentes
e a Gaudium et Spes – para só citar
alguns – trouxeram nova vida à liturgia, à missionariedade e à nova
evangelização. Grande herança do Concílio, vale destacar o conceito de Igreja
como Povo de Deus, aberta ao diálogo com os desafios do mundo contemporâneo.
Depois, o Ano da fé celebra também os 20 anos do Catecismo da Igreja Católica, onde se fundem e difundem as linhas
mestras da mensagem evangélica e de todo o Magistério no decorrer dos séculos.
Mais do que leis e dogmas a serem seguidos, trata-se de luzes que orientam a
pertença e o trabalho de todo o batizado, seja no interior da Igreja, seja em
sua solicitude para com oa pobres e mais necessitados. Um farol que, em meio às
tempestades do mundo moderno, procura apontar o rumo do porto – vida e obra,
gestos e palavras de Jesus Cristo.
Em terceiro lugar, duas cartas conferem
verdadeira substância à intuição do Papa: a carta apostólica Porta fidei e a carta encíclica Lumen fidei. A primeira delas é
justamente o documento com o qual se proclama o Ano da fé. Ilustrativo a esse respeito é seu título: a porta da fé
abre horizontes novos a uma sociedade que, pouco a pouco, vem perdendo o
sentido da vida humana. Também na segunda carta o título aponta numa direção
precisa: a luz da fé nos ensina a olhar a existência pessoal e a própria
história com o olhar iluminado de Jesus.
Por fim, não seria exagero falar da Jornada
Mundial da Juventude (JMJ), no Rio de Janeiro, Brasil, como de um evento ligado
ao Ano da fé. Mostram-no bem os dois símbolos utilizados: a cruz e o ícone de
Maria. De fato, aos pés da cruz, a fé adquire um caráter realista diante do
sofrimento humano, onde tantas pessoas continuam crucificadas pela violência,
guerra, injustiça, as drogas e o abandono e, ao mesmo tempo, uma visão de
esperança como caminho para a ressurreição. A vida, e não a morte, possui a
última palavra.
Um olhar para frente
É justamente a partir da última edição
da JMJ que podemos manter um olhar prospectivo. Naquele grandioso evento,
diante de uma multidão incontável reunida na praia de Copacabana, o Papa
Francisco convocava os jovens do mundo inteiro a serem “verdadeiros
protagonistas da evangelização”. O próprio lema da Jornada – “Ide e fazei
discípulos entre todas as nações” (Mt 28,18) – sublinha a relevância de uma nova evangelização, nova em seus
conteúdos e em seus métodos, como já sublinhava o Papa João Paulo II.
A carta encíclica Lumen fidei, entretanto, constitui um instrumento privilegiado para
resgatar a herança recebida neste Ano da
fé e, simultaneamente, clarear o caminho de nossos passos, especialmente no
que diz respeito à “questão social”. Como diz o texto, “a fé torna-se luz para
iluminar todas as relações sociais” (nº 54). Vale a pena deter-se numa citação
um pouco mais longa: “A fé, além disso, ao revelar-nos o amor de Deus criador,
nos confere maior respeito pela natureza, fazendo-nos reconhecer na mesma uma
gramática escrita por Ele e uma casa a nós confiada, para que seja cuidada e
cultivada. Ajuda-nos a encontrar modelos de desenvolvimento que não se baseiem
somente na utilidade e no lucro, mas que considerem a criação como dom, do qual
todos somos devedores. Ensina-nos a identificar formas justas de governo, reconhecendo
que a autoridade vem de Deus para estar a serviço do bem comum” (nº55).
Eis um programa para uma sociedade
renovada: justa, fraterna, solidária e, respondendo aos desafios atuais,
social, econômica e ecologicamente sustentável. O documento tenta afastar o
risco de destruição e devastação do planeta, bem como a contaminação do ar e
das águas, em vista de um mundo onde todos possam viver em paz e sentar-se à
mesma mesa. Igual perspectiva se lê nas últimas intervenções do Papa Francisco
contra a guerra. Emblemática, por exemplo, foi a vigília pela paz, na Praça São Pedro, no sábado, dia 07 de setembro
de 2013. Diante de mais de 100 mil pessoas, o Pontífice insistia que exitem
outras vias para a resolução das tensões e conflitos internacionais. “A guera
nunca é o verdadeiro caminho da paz. Guerra chama guerra, volência chama
violência”!
Voltando ao Ano da fé, convém não esquecer que esse período longo de reflexão e
oração nos conferiu um novo olhar
sobre os acontecimentos pessoais, familiares, comunitários e eclesiais, bem
como sociais, econômicos, políticos e culturais. Esse olhar reporta-se
justamente à misercicórdia de Jesus para com os pobres e excluídos da vida e da
história: “Ele se moveu de compaixão, vendo as multidões cansadas e abatidas
como ovelhas sem pastor” (Mt 9,35-38). Olhar que, usando uma expressão cara ao
Papa Francisco, nos levar a “sair de si mesmo para ir ao encontro do outro”,
especialmente daqueles que habitam os porões e as periferias das grandes
cidades, ou os grotões ignorados do sertão.
Podemos concluir citando novamente a Lumen fidei: “A fé ilumina o viver
social: possui uma luz criativa para cada momento novo da história, porque
coloca todos os eventos em relação com a origem e o destino de tudo no Pai que
nos ama” (nº55). Com os olhos da fé é possível romper com os grilhões das
tiranias fossilizadas, cristalizadas sobre interesses pessoais e
corporativistas, abrindo novas veredas para a reconstrução do Reino de Deus.
Enquanto o tirano encerra a história dentro de sua mentalidade egoística e
egocêntrica, a fé reabre os horizontes a novas formas de esperança, sempre
atenta a uma leitura atualizada dos sinais
dos tempos, como sublinhou o Concílio Vaticano II, à luz do Evangelho (Mt
16,1-4).
Do ponto de vista da Pastoral dos
Migrantes, não será exagero afirmar que todo peregrino que busca pão, paz e um
futuro melhor revela para nós a condição do ser humano sobre a face da terra.
Errantes pelas estradas da história, firmando e levantado nossa tenda
provisória nas veredas do êxodo, do deserto e do exílio, à luz da fé e da
esperança caminhamos em busca da pátria definitiva, o Reino de Deus.
Romna, Itália, 08 de novembro de 2013
Obs: a primeira versão deste texto foi escrita para a
Revista Missões
O Papa Francisco e as mudanças na Igreja
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, cs
Nem precisaria
lembrar que o Papa Francisco (Jorge Mario Bergoglio) não é a Igreja. Mas, se de
um lado isso é verdade, não é menos certo que sua figura representa a voz mais
autorizada da mesma. Em suas mãos está o leme desta frágil embarcação, em seu
poder a possibilidade de uma guinada, por menor que seja, quanto ao rumo da
barca de Pedro. Esta, ao longo dos tempos, sempre navegou em águas mais ou
menos agitadas, como o são as ondas das mudanças históricas. Diga-se de
passagem que tudo o que dilacera o tecido socioeconômico e político-cultural no
seu conjunto – medos e angústias, dúvidas e perguntas, crises e turbulências,
contradições e assimetrias – dilacera igualmente a Igreja e seus fiéis. Dita
embarcação não goza do privilégio de imunidade diante dos mares bravios da
trajetória humana. Um voo de pássaro sobre o pontificado de Francisco, numa
leitura de caráter meramente pastoral, revela indícios de que essa nave
bi-milenar pode, sim, sofrer mudanças de rota. E que as mudanças podem, sim,
ser positivas.
1. A
novidade da linguagem
Tornaram-se
emblemáticas as expressões do Papa Francisco. Não tanto pela transmissão de
novos conteúdos, mas pela novidade da linguagem. Sobre os discursos de natureza
acadêmica, racional e conceitual, prevalece o colóquio direto, simples,
facilmente inteligível. Em lugar do recheio rebuscado de citações dos Santos
Padres, da Escolástica ou dos documentos de seus predecessores, por exemplo,
adquire maior importãncia o apelo ao modo de falar cotidiano, utilizado pelas
pessoas em casa e nas ruas, nos pontos de ônibus e no metrô, nas feiras e
supermercados, nos açougues e padarias... Não se trata, evidentemente, de
contrapor um tratado bíblico-teológico a um diálogo informal entre amigos.
Ambas as linguagens têm sua legitimidade e seu lugar. O que o Papa Francisco
tem feito é dirigir-se às pessoas com as palavras que lhes são mais familiaes e
compreensíveis. Uma prática presencial, espontânea e amiga substitui a pretensão
da cátedra, da doutrinação ou do púlpito.
Daí sua insistência
em repetir, em cada audiência, as saudações costumeiras: buon giorno (bom dia), buon
pomeriggio (boa tarde), buon pranzo
(bom almoço), e assim por diante.Além disso, não só utiliza esse tipo de
comunicação direta e informal, mas enfatiza a necessidade de algumas palavras
que jamis devem ser esquecidas: permesso
(licença), scusate (descupa) e grazie (obrigado). O valor não está na
expressão em si, mas na forma de relacionamento com o público e com cada pessoa
em particular. Mais ainda: a descoberta de que, normalmente, as pessoas não
procuram respostas a perguntas complicadas, mas o reconhecimento de alguém, ou
ainda, em geral as pessoas não buscam soluções a seus problemas complexos, mas
um ouvido que saiba compreendê-las. Num mundo marcadamente urbano, cada um se
torna um átomo cujas partículas (paixões, desejos, interesses, esforços) giram
em torno de si mesmo. Todos falam e ninguém se dispõe a escutar. O Pontífice,
como o seu modo de comunicar-se, resgata a verdade mais óbvia e simples: as
pessoas buscam antes de tudo encontrar-se, fugir ao abismo insuportável da
solidão. Nisso está a importância do olhar, do toque, do gesto, do abraço, da
atenção. A tendência de doutrinar através de teorias, dogmas ou lições de moral
dá lugar à simples presença, à mão estendida, ao telefonema inesperado, ao
contato vivo com as crianças, os idosos, os doentes.
Valeria aqui uma
comparação com a prática de Jesus, o qual “percorria todas as cidades e
aldeias”, ao encontro das “multidões cansadas e abatidas, como ovelhas sem
pastor”. (Mt 9,35-38). A linguagem de Jesus é de uma simplicidade sem
precedentes. Suas parábolas e palavras nascem do cotidiano do contexto em que
vivia: pescador e lavrador, rede e peixe, fermento e sal, luz e semente, pastor
e ovelha, vinha e moeda... Mais do que textos cuidadosamente elaborados ou
discursos envernizados de moralidade, o povo valoriza a imagem, a presença viva
e direta. Esconde-se aqui uma sabedoria nem sempre explícita: a verdadeira
Igreja – Mater et Magistra – é aquela
que, sem esquecer o segundo termo da expressão de João XXIII, em sua encíclica
de 1961, dá preferência ao primeiro. A mãe, ou o Bom Pastor do Evangelho (Jo
10,1-21), ama a todos sem distinção nem discriminação, mas tem um carinho
especial pela “ovelha perdida” (Lc 15,1-7), aquela que tem sua vida mais
ameaçada. Por isso é que, na entrevista sobre temas como o homossexualismo, por
exemplo, o Papa não exita em afirmar que a Igreja é aquela que, em primeiro
lugar, deve “curar as feridas”. E mais, “se o indivíduo busca Deus na
sinceridade de seu coração, quem sou eu para julgar”, conclui.
2. Autoridade
e serviço
O Papa Francisco
vem desmestificando sistematicamente o conceito destorsido de “autoridade
petrina”. Esta, por razões históricas bem complexas e diversificadas, havia se
distanciado das origens da Igreja primitiva. O sucessor de Pedro, com o passar
dos séculos, adquirira um “trono” hierarquicamente acima de qualquer cristão.
Deste tempos pretéritos, instalara-se o principado dentro da Igreja! Daí à
pompa, ao luxo, à riqueza, à aliança com o poder temporal, à disnastia
cardinalícia, à solenidade exteriorizada numa liturgia rígida e ritualista e ao
sistema de corte no interior do próprio Vaticano – a distância era mínima. Um
séquito de servidores, vestidos conforme rigorosa hierarquia, punha-se à disposição
do vigário de Cristo, o que se manifestava frontalmente contrário ao gesto da
última ceia (Jo 13,1-17). Em muitos casos, no decorrer da história da Igreja, a
autoridade converteu-se em autoritarismo. Pior ainda, em circunstâncias bem
específicas e notórias (inquisição, cruzadas, confronto com a ciência, etc.), o
poder espiritual superou até mesmo o poder temporal em domínio, intolerância,
perseguição, tortura, condenação e morte. Nem autoridade nem poder, mas pura e
simplesmente totalitarismo, fundamentalismo religioso.
O novo Pontífice
faz questão de “derreter” essa imagem de uma autoridade transplantada do poder
temporal para a prática da organização dentro da Igreja. O verbo derreter constitui uma metáfora extraída
do universo do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, segundo o qual a “modernidade
líquida” elimina não poucas instituições sólidas que compunham o alicerce dos
temos modernos. Prevalecem na chamada pósmodernidade as relações líquidas,
flexíveis, versáteis, virtuais e até mesmo descartáveis. Os laços imediatos e
provisórios substituem as relações sólidas. O experimento e a novidade tomam o
lugar dos valores tradicionais. O Papa Francisco derrete a autoridade
pontifícia quando descarta, desde o primeiro dia de seu pntificado, determinados
aparatos principescos ou cortesãos (exemplos clássicos: os sapatos vermelhos, a
cruz peitoral, o anel de ouro...) ). Fá-lo igualmente quando desce os degraus
do trono (reais ou imaginários), circula pela praça e põe-se a falar com o povo
ali concenrado para encontrá-lo. Conhece bem a necessidade de “perder tempo”
com cada pessoa, de individualizar o problema de cada uma no meio da multidão
anônima, de oferecer-lhe um sorriso, a mão aberta, uma palavra de conforto. A
autoridade transforma-se em serviço àqueles que sofrem e buscam socorro. E aqui
emerge um aparente paradoxo: essas relações simples, diretas, personalizadas e
aparentemente “líquidas”, na verdade, conduzem à solidez inesperada do diálogo
eu-tu, da presença gratuita, da capacidade de sair de si mesmo para ir ao
encontro do outro. Reside nesta relação de amizade e amor o valor mais sólido
que a humanidade é capaz de efificar.
Uma vez mais,
torna-se evidente o parelelo com as atitudes de Jesus. Sua caravana jamais
atropela um corpo enfermo, um coração angustiado, uma alma atormentada. Sempre
se detém quando alguém sofre, chora e grita por socorro. Nenhuma lágrima e
nenhuma dor lhe é indiferente. Parece caminhar ao encontro do sofrimento. Sobre
o tema da autoridade, Jesus confronta a tirania dos “chefes das nações” com a
necessidade de “tornar-se servo” por parte de seus discípulos. E conclui: “O
Filho do Homem não veio para ser servido; Ele veio para servir” (Mt 20,25-28).
Por isso, comparado aos saduceus e fariseus, pretensos doutores da lei, é Jesus
quem de fato “fala como quem tem autoridade” (Mc 1,22).
3. Imagem
e mídia
A exemplo de João
Paulo II, o atual Papa vem se revelando surpreendentemente um homem de mídia.
Mas, diferentemente de seu antecessor, a imagem que o Papa Francisco passa para
os meios de comunicação é menos a de um chefe de Estado do que a de um pastor.
A grandiosidade exterior se reduz à simplicidade de quem prefere entrar pela
porta dos fundos. Prevalecem não tanto os gestos espetaculares, os documentos
filosófica e teologicamente rebuscados, os discursos imponentes e as decisões
peremptórias, mas, ao contrário, o cumprimento genuíno e cotidiano de quem, em
cada pessoa, conhecida ou desconhecida, encontra um familiar ou um amigo: bom dia,
como vai? Por isso os peregrinos em Roma o buscam em número cada vez maior. Nos
dias de audiência e de missa (quarta-feira e domingo), a Praça São Pedro se faz
sempre menor para a quantidade gente que vem comparecendo. As pessoas o querem
encontrar, ver, ouvir, tocar. Procuram alguém que lhes esteja ao mesmo nível e
que lhes saiba dirigir a palavra de igual para igual. Ele parece como um de
nós!
As multidões o
procuram e a mídia segue as multidões. Daí a razão porque o Papa Francisco é
notícia com uma frequência inesperada. Sua presença nos jornais escritos e
televisivos mantém-se regular e crescente. Além disso, a espontaneidade e
simplicidade de seus gestos e palavras carregam um valor oculto de verdade. Esta,
como sabemos, é sempre direta, pura, iluminada e transparente. A verdade e a
bondade, o belo e o bem possuem o dom da simplicidade, por mais que sua
apresentação possa parecer complexa. É o caminho tortuoso da argumentação que
costuma complicar as coisas. No fundo, quem domina profundamente determinado
assunto consegue simplificá-lo, reduzindo-o ao seu núcleo central. Vai direto
ao coração que pulsa e move a seiva da vida. E inversamente, quem não o domina
segue por labirintos obscuros, porque, entre outros fatores, precisa convecer a
si mesmo antes de convencer os demais. A alegria sincera do Papa Francisco
revela uma verdade a que todos anseiam, mesmo sem o saber: um coração feliz e
em contato com Jesus Cristo, uma fé madura e profunda, porque radicada não em
grandes feitos de heroísmo e grandiosidade, mas no doar-se concreto do
dia-a-dia.
Também neste item,
a imagem do Papa Francisco e a imagem de Jesus se cruzam, embora em graus
infinitamente diferentes. Porder-se-ia dizer de ambos o que escreve Olivier
Clément: “os pobres em espírito são aqueles que deixaram de ver em si mesmos o
centro do mundo (...) Despojam-se de tudo e, no limite, também de si mesmos. E
a cada momento recebem a própria existência como uma graça das mãos de Deus”
(citado por Enzo Bianchi, In Gesù e le
beatitudini, Ed. Rizzoli, 2010). Já o pobre de Assis, de quem o Pontífice
escolheu o nome, sublinhava que há maior alegria em dar que em receber. Pobre é
aquele que só tem a Deus a quem recorer. Esta redescoberta do amor gratuito,
numa sociedade fortemente marcada pelo individualismo, pelo narcisismo e pelo
hedonismo, contagia até mesmo o espaço da grande mídia, ainda que esta se guie naturalmente
pelos critérios do mundo empresarial e do mercado global.
4. Comportamento
e desafio
O comportamento do
Papa Francisco tem sido contemporaneamente popular e singular. Singular quando pensamos numa autoridade
com o peso histórico da “cátedra petrina”. Neste sentido, rompe com uma série
de receitas já prontas, com os protocolos mais elementares da autoridade
pontifícia, com uma rotina diária de séculos – para dar continuidade a uma
prática pastoral despida de pomposidade vistosa e principesca. Sen tanto rigor
com o ritualismo que o cargo sempre havia exigido, parte decididamente para o
encontro com o povo na praça, visita a cadeia, lava os pés do prisioneiros,
viaja a Lampedusa, porta de enrada dos refugiados e prófugos que da África se
dirigem à Europa. Popular por seu
magnetismo em atrair as pessoas em particular e as multidões em geral.
Magnetismo que vem de um pastor que sabe colocar-se ao lado das ovelhas – não
acima, não fora, não além. Engendra uma empatia imediata com quem costuma
circular por uma cidade muda, cega e surda. Sua atenção e sua solicitude
preenchem os corações vazios e angustiados. Domina a técnica de falar à
multidão reunida na praça e, ao mesmo temo, ao ouvido de cada pessoa. Tanto
que, diante de suas intervenções sempre curtas e marcadas por gestos e pausas
significativas, não é difícil encontrar olhos atentos e banhados de lágrimas,
respiração contida ou acelerada ou expressões como: “parece que ele adivinhou o
que eu estou sentindo”, “é como se falasse para mim”, “é o que eu mais queria ouvir”!
Ao intercalar
palavras, gestos, saudações e momentos de silêncio – em meio a uma multidão
desconhecida, anônima e multiforme – a atitude do papa Francisco como que
irmana as pessoas. Irmana-as ao irmanar-se a elas. Cria uma espécie de
fraternidade universal, como por exemplo na praia de Copacabana, diante de
milhões de pessoas, durante a V Jornada Mundial da Juventude. Se voltarmos ao
primeiro item – sobre a linguagem – fundindo-o com a atitude do Pontífice,
resulta que seu comportamento mostra-se simultaneamente polifônico e
polissêmico. Polifônico, no sentido
de empregar várias formas de comunicação, onde o discurso moral, ético ou
espiritual nem sempre parece ter a primazia. Esta assenta-se sobretudo na
misericórdia evangélica para com os grupos humanos mais pobres, ameaçados,
excluídos – os últimos. Vale o mesmo para a entrevistas, os encontros e os
longos momentos de contato com o povo na praça. Polissêmico, porque cada olhar, cada sorriso, cada palavra, cada
toque, cada abraço, cada visita, cada encontro podem ter distintos
significados, alguns voltados para o interior da Igreja, outros para a
sociedade e o mundo e outros para o ser humano único e irrepetível.
Tanto ad extra quanto ad intra, o Papa Francisco tem sido capaz se usar a si mesmo e o seu
comportamento como um sinal ou um símbolo de mudança na Igreja. O sinal e o
símbolo, como sabemos, é bem diferente da palavra. Enquanto esta define e
portanto reduz e exclui, o sinal/símbolo se mantém aberto a um leque de
interpretações diferenciado, plural e até contraditório. Basta acompanhar de
perto as análises que têm sido feitas a respeito das ações do atual Papa. O
leque é variado, sem dúvida, mas parece convergir num ponto: há pequenos brotos
de mudança na mistura de luzes e sombras que é a trajetória da Igreja. Mudança
para um olhar mais compreensivo diante dos fiéis, das pessoas em geral e da
sociedade como um todo. Olhar compreensivo que gera posições e ações mais
flexíveis. Recorrente em seus comunicados tem sido o binômio bontà e tenerezza (bondade de ternura),
o que faz lembrar a postura evangélica de São Francisco. Convém trazer à tona a
magem da cana ou do bambu: não quebram diante da força dos ventos e das
intempéries porque são capazes de ser flexíveis, de se dobrar. A flexibilidade
e a capacidade de mudar, longe de demonstrar fraqueza, são atitudes de uma
sabedoria amadurecida nas adversidades do dia-a-dia.
Ainda desta vez,
também o comportamento de Jesus representava uma mudança radical. Diante do
Templo e da Lei, dos saduceus, escribas e fariseus, das autoridades e dos
pobres. Inverte o código religioso da salvação, colocando os pecadores, os pobres
e os doentes em primeiro lugar. Condena quem se sente justificado e resgata
quem se vê perdido e marginalizado. Como os profetas do Antigo Testamento e
como João Batista, anuncia uma nova sociedade, a Jerusalém Celeste, o Reino de
Deus; mas, ao contrário deles, propõe o primado do amor, do perdão e da
misercicórdia sobre o julgamento. A mudança a que se refere tem um um caráter
muito mais amplo do que revolução sociopolítica ou a queda do Império Romano. O
Reino tem, sim, raízes na história, mas sua realização plena vai muito além de
qualquer projeto material e mundano, pois representa ao mesmo tempo uma obra
humana e um dom de Deus.
Conclusão
Entra em cena o
desafio: até que ponto o Papa Francisco pode esticar a corda das mudanças, sem
rebentá-la? Qual sua verdadeira margem de manobra no interior da Igreja e da
cúria romana? Com quanta resistência e com quanta colaboração poderá contar? Como
está o jogo de forças – retrógradas e progressistas – nas altas esferas da
Igreja? Até onde a memória profética da tradição judaico-cristã pode gerar
frutos num contexto de economia globalizada e capitalista, de filosofia
neoliberal? Sua bondade e ternura serão suficientemente fortes para vencer a
astúcia dos “filhos das trevas”? Vale repetir sua fórmula numa coletiva de
imprensa, logo no início do pontificado: “Como gostaria de uma Igreja pobre,
voltada para os pobres, os mais necessitados, os últmos!” A frase contém,
claramente, um desejo e um desafio, ou melhor, um desejo perfeitamente
consciente dos obstáculos que o cercam. A forma verbal “gostaria”, se por um
lado denota a abertura ao protagonismo de todos, incluindo a si mesmo, por
outro vela e revela forças ocultas que podem bloquear essa intuição, a qual, a
bem da verdade, vem do Concílio Ecumênico Vaticano II. Resta-nos, a exemlo do
apóstolo Paulo “esperar contra toda a esperança” (Rom 4,18-24), acreditando que
“quando sou fraco é então que sou forte” (2Cor 12,10).
Roma, Itália, 1º de novembro de
2013
LAMPEDUSA: NOVA ESTAÇÃO DE MILÃO
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
O encontro entre o drama dos emigrantes italianos, de um lado, e a sensibilidade pastoral do então bispo de Piacenza, no norte da Itália, para com eles, de outro, reflete um processo de mútua aproximação. Processo de diferentes etapas, que incluem múltiplos tipos de deslocamentos humanos, mas que toma proporções cada vez mais concretas no final do século XIX e início do século XX, quando a emigração europeia para as novas terras da América, Austrália e Nova Zelândia adquire um vulto sem precedentes. Particularmente relevante, nesse itinerário crescente, tornou-se o episódio da “Estação de Milão”, onde Dom João Batista Scalabrini descreve, longa e detalhadamente, a dramática cena da partida (1887): “Eram velhos curvados pela idade e pelas fadigas, homens na flor da virilidade, mulheres com as crianças ao colo ou ao lado, adolescentes e jovens, todos irmanados por um só pensamento, todos endereçados a uma meta comum. Eram migrantes”, afirma o pastor.
Dali, os emigrantes dirigiam-se ao porto de Gênova, de onde partiam os navios transoceânicos. O objetivo comum era “Far l’America”! O próprio Scalabrini – posteriormente chamado pelo Papa Pio IX “pai e apóstolo dos migrantes” – partirá de viagem aos Estados Unidos (1901) e ao Brasil (1904) para visitar seus conterrâneos expatriados, além de fundar a Congregação dos Missionários/as de São Carlos (scalabrinianos/as) para o atendimento aos emigrados. A verdade é que aquele relato em Milão, ao mesmo tempo comovido e minucioso, com lágrimas nos olhos, com o passar do tempo, consolidou-se como um verdadeiro símbolo, um ícone para os Institutos que herdaram e levam adiante o carisma scalabriniano em defesa da causa e dos direitos dos migrantes, refugiados, prófugos, exilados itinerantes, nômades, marítimos e todos quantos se movem ao encontro de uma pátria...
Mais de 120 anos se passaram e, nos dias atuais, as “Estações de Milão”, agora no plural, se multiplicam pelos quatro cantos do planeta. As mais conhecidas são as fronteiras territoriais, como entre Estados Unidos e México ou entre este último e a Guatemala; os mares agitados que ligam os países do norte desenvolvido aos países periféricos do sul, com destaque para o Mediterrâneo e o Caribe; as encruzilhadas entre dois ou mais países, especialmente na África, Ásia e América Latina; e os “países de passagem”, digamos assim, tais como México, Guatemala, Portugal, Itália, Turquia, Marrocos, Tunísia, Emirados Árabes... Entretanto, os portos e aeroportos, as estações ferroviárias ou rodoviárias ou as vias alternativas dos grandes fluxos migratórios não deixam de ser outro tipo de “Estações de Milão”. Talvez não seja exagero afirmar que, numa economia cada vez mais globalizada, onde o mundo se converte numa pequena aldeia global, cada país se converte numa espécie de “Estação de Milão”, seja como ponto de partida ou de chegada, seja como lugar de passagem. De fato, o mapa dos deslocamentos humanos de massa, hoje em dia, é cada vez mais intenso, complexo e diversificado, envolvendo praticamente todas as raças, povos e nações.
Devido à dramaticidade da travessia, à rigidez das leis de imigração e ao número de vítimas fatais e anônimas, o deserto entre México e Estados Unidos e as águas do Mediterrâneo representam os pontos mais críticos desse conjunto de “Estações de Milão”. Não podemos esquecer, porém, outros “cemitérios de migrantes”, cujos “cadáres insepultos” seguem ignorados pela opinião pública, pelas autoridades e pela mídia em geral, especialmente em virtude do silêncio que pesa sobre os humilhados. Milhares e milhões de pessoas banidas da própria terra pela pobreza ou pelos conflitos armados no interior da África, da Ásia e da América Latina. No deccorrer dos séculos, a fome e a miséria, a violência e a guerra sempre foram responsáveis pelo surgimento de novas “Estações de Milão”. Daí a profusão e a multiplicidade com que estas surgem na rede invisível onde se cruzam e recruzam as corentes migratórias. São, ao mesmo tempo, campos cercados, onde se concentram os fugitivos e recém-chegados; casas de migrantes, nas quais se alojam pessoas ou grupos de passagem; exércitos irregulares de “sem papéis”, e que por isso mesmo encontram fechadas todas as portas; filas anônimas e cansadas à espera do trem, do ônibus, no navio ou do avião... Em todas a mesma dor de cortar raízes e a mesma dúvida sobre o amanhã, como escrevia Scalabrini.
Cada uma dessas “Estações de Milão” nos interpelam e nos convidam a parar para refletir. Do ponto de vista de quem olha o fenômeno da mobilidade humana a partir de fora, como um analista, um repórter ou agente socio-pastoral, a visão é de uma multidão em fuga. Para trás ficaram as dolorosas feridas de uma carência sem remédio: uma família e uma casa, ambas esqueléticas, em pranto silencioso e silenciado. Ou então as cinzas, escombros e ruínas de conflitos sem razão e sem trégua, com marcas de bala em cada centímetro de parede. Para trás restou o campo minado do abandono e do fogo cruzado, onde tornou-se impossível construir o alicerce de um futuro minimamente promissor. Para trás ficou o inferno do vazio e do nada, onde a luta de todos contra todos pelo pão de cada dia impede a luta pelo chão, por um amanhã solidário ou pela ideia de pátria. Não há como retornar! É preferível a incerteza daquilo que vem pela frente do que a realidade nua e crua do que ficou na retaguarda. A situação tornou-se a tal ponto brutal que é melhor aventurar-se por caminhos desconhecidos, onde, a cada passo e em cada esquina, espreita a escravidão, a exploração, a opressão e até a morte.
Do ponto de vista do próprio migrante, porém, a mobilidade humana pode adquirir o caráter de uma multidão em busca. É o que nos apresenta, por exemplo, o escritor norte-americano John Steinbeck na obra As vinhas da Ira, a qual lhe rendeu o Prêmio Nobel de literatura em 1962. No romance, a família protagonista faz parte da grande leva de trabalhadores rurais que tiveram de abandnar as terras de Oklahoma, onde a policultura e o trabalho familiar dava lugar ao cultivo do algodão mecanizado, e mudar para a Califórnia, nos Estados Unidos. Ali, juntamente com outras milhares de famílias, os recém-chegados passam a viver de “bicos” na colheita de frutas, habitando acampamentos improvisados e sujeitos a toda sorte de exploração. “O importante na vida é dar um passo, um passo, por menor que seja”, diz Steinbeck, cuja família foi protagonista da mesma trajetória.
O autor assume uma visão claramente interna ao fenômeno, como se estivesse vivendo no corpo e na alma os golpes da migração forçada. Mas na poesia de suas páginas, mais que a fuga, transparece a busca e a luta, a esperança e o sonho de toda a família e de cada um de seus membros. Sonho que se bate, se quebra e se fragmenta em cada curva da estrada; escorrega e cai a cada passo, avança e recua, levanta-se com resistência e teimosia inauditas; e por fim resiste tenazmente até as últimas forças. É então que, em meio a uma enchente devastadora, uma das protagonistas oferece o seio a um homem moribundo, transmitindo-lhe algumas gotas de vida que se tornam o ponto final do livro. Um fio de esperança que faz desse ponto final um novo ponto de partida. “E ela sorriu misteriosamente...”, conclui o autor.
Scalabrini, a partir de dentro do sofrimento de quem migra, também vê na mobilidade humana sinais de vida e de esperança. Como as aves, os animais e os peixes, as pessoas migram em busca daquilo que lhes falta. Em suas travessias carregam o pólen que haverá de fecundar novas terras, através de seus valores culturais e religiosos. De alguma forma, numa linguagem evangélica, constituem fermento, sal e luz no intercâmbio que cruza, aproxima e unifica os povos mais distintos. “A migração alarga o conceito de pátria”, dizia o bispo. O mistério dos crucificados pregados na cruz da migração involuntária apresenta-se assim como verdadeiro sinal dos tempos, ao evidenciar que os próprios migrantes, além de vítimas, tornam-se sujeitos na construção de uma nova pátria, eterna e definitiva, que aponta a luz da ressurreição. São capazes de transformar a dor e o sofrimento em sementes de uma nova aurora.
Roma, Itália, 30 de outubro de 2013
Advento E esperança
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, CS
Os dicionários traduzem “advento” por vinda, chegada (do
verbo latino advenire = chegar a). Do
ponto de vista litúrgico trata-se simultaneamente do início do ano e da
preparação ao Natal. Tempo de avaliação da própria existência, de
arrependimento, de conversão e de expectativa... Revisão do caminho de nossa fé
em vista da celebração do nascimento de Jesus. Costuma também ser um momento
especial, tanto em termos familiares quanto em termos comunitários e eclesiais.
Diante da ansiedade e da euforia que precedem os preparativos da festa, convém
ao cristão interrogar-se como está seu compromisso pastoral, social e político nas
pegadas do peregrino de Nazaré. Interrogação que pode evitar afogar-se ou
asfixiar-se na agitação febril que costuma tomar conta do oceano em que navega
nossa frágil embarcação. As ondas provocadas pelo mercado mundial impedem, não
raro, distinguir o farol e o porto de nossa meta final.
Protagonistas desse período são as figuras do profeta Isaías,
do chamado precursor, profeta João Batista, e de Maria de Nazaré. O primeiro
nos apresenta a boa notícia: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz,
uma luz brilhou para os que habitavam um país tenebroso” (Is 9,1). O segundo
surge como um apelo à mudança, “a voz daquele
que clama no deserto: preparem os caminhos do Senhor, endireitem suas estradas”
(Lc, 3,4). Quanto a Maria, aceitando ser mãe do Messias, torna-se o protótipo
vocacional de quem diz “sim” ao projeto de Deus, exultando de alegria porque o
Senhor “olhou para a humildae de sua serva, doravante todas as gerações me
vhamarão de bem-aventurada” (Lc1,48). Nos bastidores do palco, porém, esconde-se
um quarto personagem, José, simplesmente José, o operário paciente e fiel, que
age por trás das cortinas e dos holofotes, sem proferir uma única palavra.
Aquele que se encontra sempre no lugar certo e na hora certa, quando se trata
de defender a integridade física da família, cuja presença poucos notam, mas
cuja ausência seria imediatamente sentida.
Na perspectiva da dimensão social e política do
Evangelho, bem como na dinâmica do compromisso com a cidadania, cada celebração
natalícia representa um degrau na superação da fome e da miséria, da injustiça
e da violência, da corrupção e da exploração que reinam no mundo. Um passo a
mais na pavimentação das veredas que buscam construir o caminho da
solidariedade e da paz. Em termos mais concretos, cada natal prepara o grande
Natal do Reino de Deus, onde todos, após a passagem pela terra estrangeira, como
migrantes deste “vale de lágrimas” e de sofrimento, são chamados a ser cidadãos
da pátria definitiva. Natal, antes de tudo, é reconhecimento que o planeta
Terra constitui, ao mesmo tempo, a casa de todo ser vivo, vegetal, animal e
humano (biodiversidade) e a antecâmera do Reino eterno, cuja alicerce ergue-se
a partir das coordenadas da trajetória da humanidade – não acima, nem fora, nem
além. O grande Natal tem raízes na história, sim, mas não se esgota no aqui e agora da mesma.
Semelhante passagem, entretanto, exige uma dupla
transformação. Por um lado, a conversão
pessoal, que consiste em reaproximar-se de Deus e de si mesmo, no sentido de
reencontrar o centro motriz que movimenta a própria existência. Significa
aprender a distinguir o essencial do supérfluo; o absoluto do relativo; os
prazees, paixões e desejos imediatos dos valores pétreos e imorredouros; o
indispensável daquilo que pode ser descartado. Em outras palavras, resgatar as motivações mais
profundas que dão significado aos nossos anos, dias, horas, minutos, segundos...
Reformular o núcleo vital que move ações e reações, o sentido último da
existência humana. “Não ajuntem riquezas aqui na terra, onde a traça e a
ferrugem corroem, e onde os ladrões assaltam e roubam” – dirá o Senhor. “De
fato, onde está o seu tesouro aí estará também o seu coração” (Mt 6,19-21). Trata-se
não de espiritualizar o pão nosso de cada
dia, que deve ser garantido para todos sem exceção, mas da consciência de
que a resolução dos problemas sociais, por si só, não elimina as perguntas
fundamentais do ser humano. Os bens materiais, de tão sólidos e visíveis,
facilmente se pulverizam e se dissolvem no vazio e no nada, ao passo que os
bens celestes, de tão espirituais e invisíveis, permanecem solidamente como
herança da alma que busca e espera. Efetivamente, nem as traças ou ferrugem,
nem os ladrões os podem danificar!
Por outro lado, a mudança pessoal se complementa com uma conversão social. Ou seja, o reencontro
consigo mesmo e com Deus conduz necessariamente ao compromisso com os pobres, os
excluídos, os infesos, os doentes, os mais necessitados, os últimos, como tem insistido com tanta
frequência o Papa Francisco. Isto quer dizer que a oração, a meditação e a
contemplação – quando profundas e verdadeiras – conferem suporte à caridade. E
esta representa a expressão mais viva e verdadeira do cristianismo ativo, como
mostra o poema da Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios (1Cor 13,1-13). Sem
a prática concreta do amor solidário, não passaríamos de “sinos ruidosos ou
címbalo estridentes”, afirma o apóstolo. Ou latas rolando no asfalto: quanto
mais vazias, mais barulho fazem! Não podemos esquecer, além disso, que
semelhante conversão social tem implicações políticas. De fato, o cristão não
paira angelicamente nas nuvens, aima dos embates e contradições da vida
cotidiana. Ao contrário, como pessoa humana dentro de um contexto histórico
concreto, seu modo de agir, querendo ou não, terá sempre consequências de ordem
política. Tudo o que dilacera o tecido social – medos, dúvidas, angústias, crises,
interrogações, assimetrias, tribulações – dilacera igualmente a Igreja e “seus
fiéis”. O mito da neutralidade há muito está morto e sepultado!
Em síntese, a celebração natalina nos convida, ao mesmo
tempo, a concentra-se sobre si mesmo
e sobre o encontro com Deus, para descentrar-se
no amor ao próximo. O êxodo de si mesmo em favor dos outros requer raízes
profundas na intimidae com o Pai, como demonstra a prática de Jesus. Como já
vimos, a oração precede e reforça a caridade. Quem é incapaz de centrar-se em
Deus e em sua própria alma, será incapaz de descentrar-se em direção ao
próximo. Inconsciente de que é a graça de Deus que age em suas próprias ações (não
as energias ou a inteligência humana), dificilmente poderá ser portavoz de uma
palavra de conforto para a multidão dos sofredoes. Isto porque a palavra viva,
criativa, verdadeira e libertadora é filha do silêncio diante do mistério
divino, não da profusão dispersiva das palavras humanas. As palavras (no pural
e em minúsculo) tendem a esconder a Palavra (no singular e maiúscula).
Ao celebrar o nascimento de Jeus, não podemos nos
contentar com uma festa egocêntrica, pessoal ou quando muito intrafamiliar. O
espírito do Natal amplia as fronteiras da família, expandindo a Boa Nova do
Evangelho a todas as pessoas, especialmente às que têm sua vida mais ameaçada. Também
neste ponto, a prática de Jesus se desloca dos limites de parentesco para
incorporar todos e todas, de modo particular os estrangeiros, os
marginalizados, os não-cidadãos. O profeta itinerante da Galileia inaugura um
novo tipo de família. Não estabelece barreiras à participação no banquete do
Reino. Mais ainda, privilegia os que a sociedade de então deixava à margem,
tais como pecadores, pobres e enfermos – trilogia dos condenados – segundo as
leis rígidas, cristalizadas e fossilizadas dos saduceus e fariseus.
Somente dessa forma podemos definir o Natal como
esperança para os desesperançados, Boa Nova para os que se desiludiram
completamente com os projetos humanos e das formulações político-partidárias.
Luz para a imensa multidão do “sem” que habita as periferias e porões da
sociedade moderna e pósmoderna. Os três reis magos, guiados por uma estrela,
provenientes do Oriente, talvez sejam os protagonistas dessa nova esperança, a
qual independe de sexo, cor e raça, língua e povo, credo, ideologia ou nação.
Da mesma forma que a estrela e os magos, também é do Oriente que nos chegam os
primeiros raios da aurora, aunciando o Astro-Rei, o novo sol que nasce Menino
na gruta de Belém, mas já traz em si o esplendor do Reino de Deus, onde a
compaixão, a misercicórdia e o perdão revestem toda lei e o julgamento. No
advento do Messias, prevalece o primado de que “quem não ama não conhece a
Deus, porque Deus é amor” (1Jo 4,8). Podemos concluir com as palavras de Bruno
Forte: “A esperança da vida sem lágrimas e sem ocaso, que plenifica o coração
dos homens, é também a esperança de Deus” (In Gesù di Nazaret, storia di Dio, Dio della storia, Ed. Paoline,
Napoli, 1981, pag. 280).
Roma, Itália, 25 de outubro de 2014
Ausência de uma presenÇa
Pe. Alfredo
J. Goncalves, CS
Quantas vezes nos sentimos afastados
de Deus, sós, órfãos, perdidos e abandonados! Do lado de fora de sua casa, na
soleira da porta, longe de sua presença. Trabalhamos, caminhamos, encontramo-nos,
fazemos nossas atividades normais, enfim, continuamos levando adiante a rotina
do dia-a-dia, mas com um gosto amargo na boca e na alma. A existência adquire
um estranho sabor de nulidade, de angústia e de remorso. Para o explicar, não
basta a metáfora do deserto e da terra árida e ressequida, como nos lembra o
Livro dos Salmos. A figura de linguagem é válida, sem dúvida, mas nos damos
conta que há algo ao mesmo tempo mais profundo e misterioso, mais geral e mais particular.
Tampouco são suficientes as tradicionais imagens do vazio, da solidão, do silêncio,
da indiferença ou da noite escura – de acordo com a experiência narrada em
verso e prosa pelos místicos. Para além de tudo isso, que não deixa de ser
verdadeiro, trata-se simultaneamente de algo mais simples e mais complexo.
Deserto, vazio, solidão, noite
escura, indiferença, silêncio… Sem dúvida, traduzem em parte a sensação que
invade todo o nosso ser, até as entranhas mais íntimas e ocultas. Mas só em parte!
Todas essas palavras representam noções que estão aquém da realidade vivida,
experimentada no corpo e no espírito. O que prevalece de mais nítido é um
sentimento cujo sentido os conceitos não conseguem expressar. Uma ausência
inexplicável e indefinida, ou melhor, ausência de uma presença familiar,
pessoal e insubstituível. A falta pura e simples não de algo ou de alguém (com
letra minúscula), mas de Alguém (com maiúscula). No meio interpõe-se o muro
inexpugnável do pecado e da culpa. “No meio do caminho tinha uma pedra...”, diz
o poeta Carlos Drumond de Andrade. A atmosfera torna-se pesada, irrespirável,
como se faltasse oxigênio no sangue que, pouco a pouco, passa a nutrir-se do próprio
veneno. Pior, leva-o através das veias a um organismo que se torna cada vez
mais necrosado.
Deserto, sim, mas sem
perspectiva de um oásis no meio das ondas de areia, de um ponto de encontro ou
encruzilhada para descansar e recuperar as forças; vazio, sim, mas como um
abismo de boca escancarada, sem fundo, que tudo devora e faz desaparecer no labirinto
do nada e do absurdo; solidão, sim, mas insípida e intolerável, inteiramente despovoada
de lembranças passadas e de planos para o futuro; noite escura, sim, mas feita
de trevas em que todas as estrelas se apagaram num céu imenso, frio e
longínquo, surdo e mudo; indiferença, sim, mas de caráter ativo e agressivo,
que tolhe a capacidade de reação e de retomada; silêncio, sim, mas como mutismo
cerrado e estéril, sem a mínima possibilidade de produzir uma única palavra
viva, criativa, libertadora. Sentimo-nos sufocados por essa ausência, a exemplo
do peixe fora d’água.
Não se trata somente de terra árida
e ressequida, mas de um terreno abandonado aos espinhos, às pedras, aos animais
de rapina e às ervas daninhas. Terreno produtivo, com água em abundância, onde
outrora cresceram árvores e plantas com raízes fundas e de boa qualidade, e que
já produziu não poucos ramos e folhas, flores e frutos. Mas, sem os devidos
cuidados do agricultor, voltou a ser dominado pela mata inculta. Pouco a pouco,
a colheita viu-se sufocada por rebentos nocivos que lhe roubaram toda a seiva e
a energia. A selva voltou a imperar, robusta e viçosa como sempre, mas com uma
força incontrolável e por isso perniciosa.
Agricultor desleixado e
preguiçoso, concluirão alguns! Nada disso! O agricultor – Deus – permanence
sempre firme, fiel e vigilante, à espera de entrar em campo, de colaborar na
obra da história pessoal ou coletiva. Caminha silenciosa e amorosamente ao
nosso lado. O problema é que o terreno – coração humano – fechou-se sobre si
mesmo e fechou-lhe todas as entradas, impedindo qualquer ação da parte d`Ele.
Na medida em que o Senhor respeita até as últimas consequências o dom da liberdade
de seus filhos, que é sua maior dádiva, resta-lhe bater à porta e esperar que
esta lhe seja aberta. Em caso negativo, nada poderá fazer, pois jamais rompe o
pacto da liberdade. Criador, onipotente e todo-poderoso, sim, mas ao mesmo
tempo impotente e frágil diante do “não” de suas criaturas, uma vez que sua única
arma consiste em amar, e amar de forma livre, total, incondicional. Ora o amor
costuma ser belo como as flores e as espigas, mas, também como elas, permanece exposto
ao vento forte da violência, das adversidades e das contradições da vontade
humana.
O perdão e a misericórdia
divinas se batem contra o muro do mal e do pecado humanos. Repete-se, uma vez
mais, o desencontro e o drama colossal da cruz. Símbolo da maior e mais brutal
violência contra um inocente, ela tornou-se igualmente símbolo do amor e da
entrega sem medidas. À tortura mais cruel e sem precedentes na história humana,
Deus responde com o perdão. Essa é sua “vinganca”! O gesto do perdão (“Pai
perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”), como que reaproxima o Pai do Filho
abandonado. Dessa forma a cruz – objeto desumano e despovoado da presença
divina (“maldito o que pende do madeiro”) – torna-se o símbolo por excelência
do amor de Deus, onde Este se revela em toda a sua bondade infinita e
incomensurável. O contraste entre o pecado e a violência humana, de um lado, e,
de outro, o perdão e amor divino, se faz tão forte, tão flagrante e tão eloquente
que uma luz nova explode no alto da cruz, como num choque elétrico entre a
corrente negativa e positiva. Um brilho cuja intensidade e esplendor antecipa a
glória da ressurreição. Tanto amor e tanto ódio, quando se cruzam e se
contradizem reciprocamente, mostram a cruz como sinal de contradição: “escândalo para os judeus e loucura para os
pagãos”. Ou ainda “a linguagem da cruz é loucura para aqueles que se perdem;
mas para aqueles que se salvam, para nós, é poder de Deus” (1Cor 1,17-25).
Se, por uma parte, Deus
permanence fiel e à espera do “sim” humano, por outra, nossa indiferença frequentemente
recusa abrir-lhe a porta. A terra, em nossa existência, torna-se então inculta
não por sua ausência, mas por nossa negligência. Disso resulta a “ausência de
uma presença” que empobrece e embrutece o terreno cultivado. Ou seja, somos nós
que ignoromos sua presença, fazendo dela uma ausência, ou a ausência de Alguém
com quem estavamos acostumados a conviver. Depois que a
alma se acostuma a caminhar sob a luz de Deus, ignorar sua presença torna mais
pesado o ritmo dos passos, mais nebuloso o rumo a ser seguido e a própria
caminhada perde o significado profundo.
Resta a conclusão de que a
oração, a meditação e a contemplação – o processo diário e incansável de buscar
a presença de Deus – torna-se condition
sine qua non na vida de quem conheceu sua face radiante, ainda que por um só
segundo, um relâmpago de luz e paz. Sem isso, recaímos na sensação de abandono,
não por parte de Deus, evidentemente, mas por parte da própria alma empedernida.
Retorna o gosto amargo na boca e na alma, sede que só pode ser extinta na água
cristalina da nascente. Não basta a posse de um copo de água, o melhor é
conhecer o caminho que leva à fonte.
Washington,
USA, 10 de outubro de 2013
IMIGRANTES E REFUGIADOS
PROCESSOS DE INTEGRAÇÃO
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, CS
O drama dos
imigrantes e refugiados, no mundo contemporâneo, emerge e se impõe com a força
de águas represadas. Estas se traduzem, de um lado, pelo medo e a fuga diante
da pobreza, da violência ou da guerra, mas de outro lado, pelos sonhos,
esperanças e lutas de novas gerações em busca de trabalho e futuro, pão e paz.
A travessia é sempre uma aventura arriscada de um “não lugar” para uma terra
com sabor de pátria. O mar e o deserto muitas vezes se convertem em cemitério de
imigrantes ou de cadáveres insepultos.
Do ponto de
vista das autoridades de muitos países, tanto os imigrantes quanto os
refugiados constituem ambos um problema. Transformam-se, não raro, em caso de
polícia, ainda no pano de fundo da ideologia de seguranças nacional, que
remonta aos tempos da guerra fria. Outras vezes são confundidos genericamente com
a realidade do tráfigo de drogas, armas e seres humanos. Com isso é mais fácil
fechar-lhes as fronteiras e rechaçá-los. Sem dúvida os atentados de 11 de
setembro de 2001 agravaram tal clima no mundo da mobilidade humana. Respira-se
uma atmosfera de tensão, hostilidade e conflito.
Do ponto de
vista da sociedade em geral, ou da opinião pública, os estrangeiros podem ser
vistos como “intrusos”. Além de estranhos e diferentes, pretendem roubar nossos
postos de trabalho, o lugar de nossos filhos na escola... Instala-se um
dualismo entre “nós” e “eles”, os de “dentro” e os de “fora”, os “bons” e os
“maus”. Nessa perspectiva, nascem e crescem as mais variadas formas de
preconceito, discriminação e xenofobia. A intolerância cerra portas e janelas à
“invasão” do outro. Daí o ressurgimento de grupos neofacistas ou neonazistas
diante da maior intensidade e complexidade do fenômeno migratório.
Entre esses
dois cenários – a guerra fria e o medo do outro – convém refletir sobre uma via
de alternativa. O fenômeno migratório tornou-se tão vivo e estridente que não
permite indiferença. Em lugar de muros e leis cada vez mais rígidas e
restritivas, resta-nos o desafio de construir pontes. Deafio que pressupõe,
simultaneamente, uma constatação, uma novidade e uma ação. A constatação é a de que as diferenças,
longe de nos empobrecerem, nos tornam mais ricos. Línguas, povos, culturas e
costumes diferentes, quando colocados lado a lado, representam um enorme
potencial de recíproco crescimento humano. A identidade de cada pessoa ou nação
só se realiza plenamente no confronto com o outro.
A novidade está nos olhos, no coração e na
alma de quem faz da fuga uma nova busca. Imigrantes e refugiados carregam nas
veias uma enorme vontade de vencer. Constituem sangue novo em organismos e sociedades
às vezes marcadas por um senil declínio; oxigênio primaverial num mundo que
caminha para o outono. Essa energia juvenil, própria de quem se põe a caminho,
faz marchar a própria história. Vigor e coragem (e não só medo e desilusão)
costumam fazer parte da bagagem dos migrantes. Estes tornam-se profetas e
protagonistas (não somente vítimas) de horizontes mais largos, abertos e
plurais.
A ação, por fim, requer em primeiro lugar
acolhida, escuta e compreensão diante do outro/diferente. Aqui não basta a
tolerância ou a coexistência pacífica do multi-culturalismo (uma espécie de
justaposição de água e azeite). É urgente e necessário um salto qualitativo em
direção ao inter-culturalismo, o qual exige o confronto e o diálogo que
depuram, purificam e trazem um enriquecimento mútuo. É o que se pode chamar de
processo de integração, que passa, ao mesmo tempo, por um reconhecimento dos
vícios a serem superados e dos valores a serem incorporados – numa palavra,
inculturação.
Neste caso,
longe de ser um problema ou um intruso, o estrangeiro – imigrante ou refugiado
– se converte em oportunidade. Oportunidade múltipla de aprendizado, de
confluência de energias renovadas e de encontros. Pavimenta-se o terreno para a
cultura da solidariedade, da paz e do encontro. Pontes ao invés de barreiras –
eis o que precisamos construir. Aliás, Refugiados
e migrantes rumo a um mundo melhor será o tema da mensagem do Papa
Francisco para O dia Mundial do Migrante de 2014.
Cadáveres insepultos
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, CS
Prossegue
inexorável o desfile de estatísticas, imagens, notícias, comentários,
observações, entrevistas e análises sobre a tragédia recente dos refugiados no
Mediterrâneo. De acordo com o Corriere
della sera, (04/outubro/2013), um dos principais jornais italianos, por
exemplo, o número dos imigrantes mortos nas águas do mar, ao sul da Itália, nos
últimos anos já alcança a espantosa cifra de 19.142. Mas a tragédia de 3 de
outubro/2013, por suas proporções inusitadas, parece ter sacudido a Europa e o
mundo para o drama dos migrantes e refugiados: um barco com cerca de 500
africanos em fuga, entre eles muitas mulheres e crianças, sofreu um incêndio e
naufragou ao tentar aportar nas costas do sul da Itália, perto da ilha de
Lampedusa. Sobreviveram ao naufrágio apenas cerca de 150 pessoas. Os demais
foram engolidos pelas ondas, às vistas dos habitantes, na maioria pescadores,
impotentes e desesperados. Ao final, os corpos inermes e sem vida formavam uma
grande macha na superfície azul do mar. Restou a imagem macabra, pungente e
dramática dos negros sacos de plásticos estendidos ao longo da praia, imagem
que desfilou tragicamente pela mídia escrita e televisiva. Sem falar do
sensacionalismo de alguns meios de comunicação que aproveitam de tais números e
imagens para considerações que beiram o preconceito e a discrminação, o racismo
e a xenofobia.
Numa visão nua e
crua dos fatos, as rotas dos deslocamentos humanos de massa, por toda parte,
encontram-se quase sempre pontilhadas de cruzes, tristes e solitários sinais de
morte, apesar de unidos por um trágico destino. As multidões que perdem a vida
tentanto atravessar as águas do Mediterrâneo e do Mar do Caribe ou as areais do
deserto entre México e Estados Unidos e no norte da África, bem como de outras
fronteiras particularmente ao sul e ao leste do planeta, vêem crescendo de
forma assustadora. Sobem progressivamente às dezenas, às centenas e aos
milhares... Ao mesmo tempo, assiste-se à “globalização da indiferença”, como
afirma o Papa Francisco diante de tais fatos com suas imagens traumáticas. “Uma
vergonha” – disse o Pontífice a respeito dos últimos mortos de Lampedusa, o
qual, quando de sua visita à mesma ilha, já havia declarado que “os migrantes e
refugiados não são peões na tabuleiro de xadrez da humanidade”. Sonhos de
liberdade e de vida melhor que se convertem em pesadelos!
As autoridades
italianas, por sua vez, fazem seguidos apelos à Comunidade Europeia, no sentido
de buscar uma solução unificada, uma Lei de Imigração para todos os países do
continente. A costa meridional do Metiterrâeno – dizem – não é somente a
fronteira da Itália com os países da África (Eritreia, Etiópia, Tunísia,
Egito...) e do Oriente Médio (Síria, Libano...), mas a fronteira com a Europa
no seu conjunto. Daí a necessidade do envolvimento de todos. Mas a Alemanha, a
França, a Ingleterra, a Espanha e demais países fazem “ouvidos moucos” aos
apenos da península italiana. Ao lado de vãs e vagas promessas ou de
oportunísticas palavras de solidariedade, prevalece o silêncio e a indiferença
geral, como se a gravidade do “problema” se limita-se ao sul do velho
continente. Enquanto isso, os fatos trágicos vão se acumulando, sem qualquer
previsão de um fim a curto ou médio prazo.
Não seria exagero
falar de “cadáveres insepultos”, uma vez
que, na quase totalidade dos casos, sequer lhes são concedidos os costumes
fúnebres dos parentes e de sua cultura original. Privados em vida de terra e
trabalho, teto e pão, condições mínimas de sobrevovência; privados, mesmo
depois da morte, de um velório, uma flor, a luz de uma vela ou uma prece que os
assista e conforte os familiares; privados, do berço ao túmulo, do respeito
mínimo à dignidade humana. Verdadeiros mártires anônimos do mundo contemporânea,
ceifados na flor da idade e das energias na luta por uma vida digna. Por “mares
nunca dantes navegados”, como diria o poeta português Camões, a esperança,
tragado pelas águas, se desfaz nos ventos da adversidade. Pior ainda quando nos
damos conta que por trás de cada um desses números encontra-se não somente o
rosto de uma pessoa humana, mas quase sempre de toda uma família, orfã e
perdida, como fruto de uma “viagem” pressionada pela situação de completo
abandono.
Para estes
refugiados, a via da migração tem mão única. Não há qualquer possibilidade de
retorno. Para trás, em muitos casos, ficaram as imagens sangretas da guerra
civil, as ruínas da própria casa, os escombros da cidade em chamas, as marcas
dos disparos espalhadas pelas paedes, os brutais assassinatos ou estupros de
pais, mães, irmãos, irmãs, filhos, filhas, familiares em geral... Para trás, em
outros casos, ficaram a pobreza e a miséria, a fome cruelmente estampada nos
olhos, no rosto desfigurado e no corpo esquelético de filhos órfãos de pais
vivos, os quais, embora jovens e fortes, se vêem impossibilitados de encontrar
o alimento diário para a família... Para trás ficaram as cinzas de uma
cidadania abortada, negada, onde a exploração e a violência gera, ao mesmo
tempo, concentração de riqueza e exclusão social... Para trás ficaram as marcas
da morte precoce, disseminados pelas regiões e países pobres, periféricos,
subdesenvolvidos que, depois de colonizados e saqueados, foram abandonados à
próprio sorte.
Diante da
impossibilidade de retorno, resta como única tentativa de sobrevivência caminhar
sempre para frente. Não importa se o horizonte se apresenta incerto, nebuloso e
sombrio, é preciso enfrentar os perigos do incógnito, do desconhecido. Resta,
em outras palavras, o risco de migrar a qualquer preço, de correr em busca em
busca de trabalho e liberdade, seguindo as pegadas do desenvolvimento e do
capital. Nesse projeto de fuga, os desterrados investem todo o dinheiro que
seja possível arrumar, vendendo os últimos pertences familiares. Cegos pelo
desespero, atiram-se sobre aos atropelos sobre velhas barcaças ou vagões de
trens enferrujados, na esperança de chegar ao outro lado do mar ou do deserto
para recomeçar a vida... Por outro lado, acabam alimentando os atravessadores
(gatos) e todo crime organizado, convertendo-se em uma espécie de moderno
“mercado de carne humana”, como denunciava Dom João Batista Scalabrini, bispo
de Piacenza, Itália, referindo-se aos emigrados europeus no final do século XIX.
Como ponto final,
levanta-se, ainda desta vez, uma tríplice interpelação: os cadáveres insepultos
dos migrantes e refugiados, gritando por justiça e cidadania; a de Scalabrini,
considerado “pai e apóstolo dos migrantes”, com a máxima de que “para os
migrantes, a pátria é a terra que lhes dá o pão”; e a do Papa Francisco,
chamando a atenção para a dignidade e a paz de toda a pessoa humana, como linha
mestra da Doutrina Social da Igreja, independetemente de credo e religião, raça
e cor da pele, língua, povo ou nação. Nada mais e nada menos do que os
princípios básicos da Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948).
Roma, Itália, 05 de outubro de
2013
Migração como sinal dos tempos
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, CS
Tomemos dois fatos
como ponto de partida. Dia 30 de setembro/2013, treze imigrantes provenientes
de Eritreia morreram afogados antes de aportar nas terras do sul da Itália; no
dia 03 de outubro/2013, nas cercanías da ilha de Lampeduza, ocorreu o naufrágio
de um barco com cerca de 400 imigrantes, dos quais foram encontrados mais de
100 corpos e aproximadamente 150 encontram-se desaparecidos. Outras duas
tragédias, daquelas que o Papa Francisco procurava evitar em sua visita
histórica àquela ilha, a qual, em meio ao mar Mediterâneo, se tornou uma
espécie de encruzilhada entre a África e a Europa. Dizia o Pontífice na
ocasião: “os migrantes e refugiados não são peões na tabuleiro de xadrez da
humanidade”. Restou a imagem macabra, pungente e dramática dos corpos
estendidos ao longo da praia, imagem que desfila tragicamente pelos jornais
escritos e televisivos.
Migração como sinal dos tempos
A expressão “sinal
dos tempos” tem sua origem nas páginas do próprio Evangelho. Jesus reprova os
fariseus e saduceus porque, embora acostumados a ler os sintomas naturais das
mudanças meteorológicas, revelam-se “incapazes de interpretar os sinais dos
tempos” (Mt 16,1-4). Teologicamente, trata-se de reconhecer a ação divina na
trajetória humana, isto é, descobrir as ”digitais de Deus” no pergaminho
conturbado e contraditório da história. Em termos mais concretos, sifnifica
revestir os eventos cotidianos com um olhar de fé. Nessa perspectica,
poder-se-ia sublinhar o exemplo de Maria,
a qual “conservava todos esses fatos, e meditava sobre eles em seu
coração”, frase citada duas vezes quse literalmente pelo evangelista Lucas (Lc
1, 19.51). Conservar e meditar são
dois verbos que indicam uma memória e uma reflexão ativas sobre o sentido mais
profundo e oculto dos acontecimentos.
Não há dúvida que os
grandes deslocamentos de massa (migrantes, refugiados, prófugos, itinerantes,
marítimos, trabalhadores temporários...), hoje em dia, dada a sua dimensão
estrutural, representam um sinal dos
tempos em dupla dimensão: do ponto de vista quantitativo, as migrações de
massa envolvem um número cada vez maior de pessoas, tornando-se ao mesmo tempo
mais intensas e diversificadas; em termos qualitativos, juntamente com a
globalização da economia, aprofunda-se a complexidade desse fenômeno da
mobilidade humana. Em ambos as dimensões, os movimentos migratórios constituem
simultaneamente causa e efeito de mudanças significativas, tanto de ordem
sócioeconômica quanto político-cultural. Aparecem como que ondas visíveis e de
superfície, que escondem transformações profundas nas correntes subterrâneas e
invisíveis. Termômetro vivo da temperatura das mudanças sociais!
O ministério da Igreja,
especialmente em sua Doutrina Social (DSI), tem retomado com frequência essa
fórmula evangélica como método
privilegiado para uma leitura teológica não só da mobilidade humana em
particular, mas de toda a realidade sócio-histórica. Semelhante leitura, de
modo geral, vem contemplada nos encontros, assembleias, seminários, cursos,
etc., precedendo as decisões pastorais a serem tomadas. Emblemático a esse
respeito é o esquema da Gaudium et Spes,
Constituição pastoral sobre a Igreja nos dias de hoje, documento do Concílio
Ecumênico Vaticano II. Mais recentemente, a mensagem para o 92º Dia Mundial das
Migrações de 2006, publicada em outubro de 2005 pelo então Papa Bento XIV,
tinha como título Migrações: sinal dos
tempos. O Pontífice chamava a atenção para o protagonismo do fenômeno
migratório, na Igreja e na sociedade, como fator de transformação social.
As duas faces da medalha
O protagonismo das
migrações e do migrante, entretanto, tem duas faces. Numa visão nua e crua dos
fatos, as estradas dos deslocamentos humanos de massa, por toda parte,
encontram-se quase sempre pontilhadas de cruzes, tristes sinais de morte. O
número dos que perdem a vida tentanto atravessar as águas do Mediterrâneo e do
Mar do Caribe ou as areais do deserto entre México e Estados Unidos e no norte
da África, bem como de outras fronteiras particularmente ao sul e ao leste do
planeta, vem crescendo de forma assustadora. Sobem progressivamente às dezenas,
às centenas e aos milhares... Não seria exagero falar de “cadáveres
insepultos”, pois na quase totalidade dos casos sequer lhes concedem os
costumes fúnebres de seus familiares e de sua cultura original. Verdadeiros mártires
anônimos da era contemporânea, ceifados em tenra idade na luta por um futuro
mais promissor. Por “mares nunca dantes navegados”, como diria o poeta
português Camões, o sonho se converte em pesadelo. Mais grave ainda quando nos
damos conta que por trás de cada um desses números encontra-se não somente o
rosto de uma pessoa humana, mas quase sempre de toda uma família, orfã solitária
de uma fuga muitas vezes pressionada pela pobreza ou pela violência.
Por outro lado,
numa visão de fé, tendo como horizonte o conceito de sinais dos tempos, as cruzes que marcam a trajetória de fuga dos
fluxos migratórios, falam também de suas lutas e da busca de uma verdadeira
pátria, “a terra que lhes dá o pão”, diria Scalabrini. A própria cruz é signo
de morte e ressurreição. Ao lado em em contraste com a visão negativa do fato
bruto, ela pavimenta o caminho para o significado mais profundo do sofrimento,
sim, mas também da esperança teológica. Ou seja, a separação, a dor e a morte
de tantos migrantes, da mesma forma que o sangue dos mártires, constitui ao
mesmo tempo denúncia e anúncio proféticos. Denúncia
da condição de subdesenvolvimento crônico, em que se encontram as regiões e
países periféricos, que não conseguem oferecer uma cidadania digna àqueles que
ali nasceram e deixaram suas raízes nos restos mortais de seus antepassados ali
sepultados; denúncia das injustiças, desequilíbrios e formas de exploração nos
relacionamentos nacionais, inter-regionais e internaconais.
Como complemento e
contraposição à denúncia, as cruzes dos migrantes são também um verdadeiro anúncio. Anúncio de mudanças urgentes e
necessárias nas relações sociais, econômicas, políticas e culturais entre
pessoas, grupos, povos e nações. O fato de se ver obrigado a migrar, por si só,
implícita ou explicitamente, constitui um apelo à consciência dos governos,
Igrejas, movimentos, organizações e autoridades que lidam com a questão. Daí a
condição não só de vítima, mas também de protagonista e de profeta de cada
migrante e da migração enquanto fato social cotidiano, por um lado, e, por
outro, da leitura de fé e de esperança que ela pode (re)velar. Pondo-se a
caminho, e fazendo-o em forma coletiva/massiva, o migrante faz marchar a
história, em suas mais diversas forças vivas e ativas. Numa palavra, põe em
ação as energias de todas as instituições e pessoas que compõem o tecido
social, com particular destaque para aquelas que atuam no universo da
mobilidade humana.
Roma, Itália, 03 de outubro de
2013
Um ponto sólido na modernidade
líquida
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, CS
Quase meio-dia de
domingo, 29 de setembro de 2013, Vaticano, Roma. A
Piazza San Pietro e a Via della Consolazione encontram-se completamente
tomadas de gente. Menos mal que
as nuvens escondem o calor do sol e não chove, o que torna o clima bem
apropriado. Os rostos, as vestes, os comportamentos, as bandeiras e as
conversas são as mais variadas. Cruzam-se os idiomas, os olhares, as
trajetórias e os passos. Respira-se uma cordialidade fraterna e contagiosa. São
dezenas de milhares de pessoas, todas com os olhos voltados para a escadaria da
Igreja São Pedro ou para os enormes telões que transmitem as imagens ao vivo.
Ali, no final dos degraus, um carro espera o Papa Francisco para o encontro e a
benção domenical com os fiéis provenientes de todas as partes do mundo. A
expectativa cresce a cada minuto, no tom ansioso de cada coração e da vozes.
Como um colossal organismo vivo, a multidão acompanha o relógio com a
respiração suspensa. Quando os dois ponteiros se cruzam e os sinos tocam, surge
a figura branca do Pontífice. Desce os degraus, sobe no carro e põe-se a
percorrer a praça em todas as direções.
Grupos compactos passam
a acompanhar a marcha, quase atropelando-se unas aos outros. Braços, bandeiras,
gritos e máquinas fotográficas erguem-se, disputando espaço. Um feixe de mãos
ansiosas levanta-se na direção do carro e do homem de branco. A cada parada, os
pais e mães, com as crianças sobre os ombros, tentam aproximar-se o mais
possível do Papa. Este acena, volta-se de um lado para o outro, sorri o tempo
todo, troca apertos de mão, toma uma ou outra criança e a beija com delicadeza.
Depois prossegue, fazendo confluir atrás de si o rio de gente. Inevitáveis,
surgem algumas perguntas: o que leva aquela multidão anônima à praça? O que
espera do Pontífice, aparentemente tão frágil e impotente? Poderá este
preencher o vazio que aquela parece evidenciar? O que reúne tanta gente ao
redor de um homem? Mito? Culto da personalidade? Ou estará em jogo algo de
muito mais complexo?
A metáfora da modernidade líquida
A “modernidade
líquida” (Zygmunt Bauman) rompe com o chamado Contrato Social, alicerce e sustentação dos tempos modernos. Na era
medieval dominava a teocracia da cristandade, governava-se em nome de Deus. As
dinastias perpetuavam-se no poder. Deus representava a referência última para a
verdade, a beleza, os costumes, o modo de agir e o sentido da vida.
Diferentemente do “obscurantismo medieval”, porém, os filhos do Renascimento e do
Iluminismo, por um lado, da Independência dos Estados Unidos e da Revulução
Francesa, por outro, fazem da razão e da ciência sua própria auto-referência.
Homens adultos e emancipados da tutela religiosa, lançam-se destemidos ao mar
aberto dos descobrimentos, dos inventos, da experimentação, da tecnologia e do
progresso. Fundamentam o comportamento pessoal e a prática política sobre
acordos, tácitos ou explícitos, entre as diversas forças sociais. O equilíbrio
entre estas é que mantém mais ou menos firme e estável o fiel da balança, ao
mesmo tempo que constitui a bússula em meio às tormentas. O poder é exercido em
nome do povo e dos direitos do cidadão. Instala-se, pouco a pouco e em graus
diferenciados, o proceso democrático.
Ocorre que na
“modernidade tardia” (A. Giddens) ou na “pós-modernidade” (J.F.Lyotard),
fortemente marcada pelo individualismo exacerbado, pelo pluralismo cultural e
religioso e pela fragmentação das visões de mundo, as “verdades e certezas
absolutas” se derretem, se liquidificam. No lugar delas surge uma enorme
pluralidade de opiniões, dúvidas e novas interrogações. As referências se
multiplicam ao extremo, ao ponto de cada um centrar-se sobre si mesmo. Relações
fortes e duradouras dão lugar a laços leves, virtuais, frequentemente
superficiais e facilmente descartáveis. Esboça-se desse modo uma espécie de
sociedade atômica, feita de átomos isolados, justapostos e pretensamente
independentes, onde cada indivíduo torna-se um núcleo ao redor do qual giram,
em órbitas cerradas e concentrícas, os próprios interesses e energias, paixões
e desejos, medos e temores...
Chega-se assim è
“era do vazio” (G. Lipovetsky), ou a um caos de interrogações como becos sem
saída, em que o hedonismo adquire uma centralidade preocupante: se as estrelas
se apagaram no céu, eu me torno minha própria referência! Dessa atmosfera
nebulosa resulta o discurso da crise, tão familiar nos dias atuais. Crise que
se faz patente quando as perguntas se tornam maiores que a capacidade humana de
encontrar uma resposta. Duas alternativas se impõem: de um ponto de vista
negativo, cresce o risco do ceticismo, do relativismo e do niilismo, num mundo
e numa história em que predomina o senso do absurdo e do destino; em termos
positivos, verifica-se a emergência crescente da questão fundamental do ser
humano sobre o significado mais profundo de sua existência. Acende-se aqui uma
pequena chama que ajuda a caminhar no escuro e, ao mesmo tempo, a buscar um
sentido para nossos priojetos, caminhos e passos titubeantes. Não é à toa que
uma das características da pós-modernidade é justamente o “retorno dos deuses”
(no plural). Na impossibilidade de responder às próprias inquietações, o ser
humano apela para o transcendente. Os deuses estão de volta com a mesma força com
que foram banidos pelo advento da modernidade. O barulho das máquinas e do
tráfego não consegue esconder “o rumor de anjos” (P. Berger), que se impõe às
pessoas com a energia de águas represadas.
Um ponto sólido na modernidade líquida
Ressurge com força
a figura do Papa Francisco em meio à praça apinhada de pessoas de todas as
raças, classes, povos, bandeiras, línguas e nações. Há mais de trinta minutos
gira entre o mar de gente, distribuindo saudações à direita e à esquerda. E,
com igual força, ressurgem as perguntas: o que busca aquela imensa “multidão
solitária” (D. Riesman)? Que representa o Pontífice para a massa, e para cada
um em particular? Por quê o desejo irreprimível de ver, tocar, fotografar,
registrar aquele momento? Não custa avançar uma hipótese: de alguma forma, o
Papa representa um ponto sólido na modernidade líquida. Ou então uma referência
religiosa e moral num mundo sem referências. E ainda, uma personalidade íntegra
e coerente em meio à fragmentação e polverização do pensamento. Três fatores
podem ilustrar essa hipótese, três aspectos que diferenciam o Papa Francisco de
seus antecessores.
Antes de mais nada,
o primado da caridade sobre a teologia e
o dogma. Claramente o ministério petrino do Papa Francisco deslocou o
centro das atenções. Em lugar da rigidez doutrinal e das elocubrações
bíblico-teológicas, o braço estendido a quem tem a vida mais ameaçada, aos
aflitos, aos pequenos, aos últimos aos migrantes e refugiados. Suas visitas,
palavras e gestos acentuam essa força solidária em favor dos pobres e
necessitados. A transparência luminosa de um “bom dia”, “boa tarde”, “bom
almoço” substituem a face dura e severa de uma exegese não raro incompreensível
à maioria dos simples mortais. Como não lembrar a memória e as marcas do “pobre
de Assis”, de quem o Papa escolhu o nome! Por outro lado, já o apóstolo Paulo
concluia o seu poema na Primeira Carta aos Coríntios afirmado que “agora
permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade. A maior delas,
porém, é a caridade” (1Cor 13,1-13). O que não significa que a teologia e dogma
devam ser descartados, longe disso, mas evidencia-se uma inflexão que procura
acentuar a figura do Bom Pastor. O lado pastoral prevalece sobre o arcabouço
teológico. Não é novidade que um gesto de atenção e solidariedade vale por mil
palavras.
Depois, o primado da misericórdia sobre o julgamento.
Trata-se, em verdade, da continuidade do item anterior. A exemplo de Jesus, o
Papa Francisco recusa-se a apontar o dedo em riste sobre as feridas do pecado e
do afastamento em relação a Deus e à Igreja. Jamais fecha a porta a um coração
arrependido nem volta as costas a quem o procura com sinceridade. Ao contrário,
através do perdão, oferece a oportunidade de levantar a cabeça e começar de
novo. Se as pessoas marginalizadas pela sociedade procuram a Deus no íntimo de
sua consciência, “quem sou eu para julgá-las”, pergunta-se com humildade o Papa
Fracisco. Com um semblante sereno, sorriso largo e braços abertos representa um
convite àqueles que se sentem excluídos de uma Igreja que, ao longo dos séculos,
bateu duramente sobre a tecla do pecado. Também aqui não se exclui o julgamento
e a condenação do pecado. O que se procura é salvar o pecador que se abre à
conversão. “Vai e não pesques mais” (Jo 8, 12), diz Jesus à mulher surpreendida
em adultério. Não justifica o pecado, mas amplia os horizontes de quem aceita a
Boa Nova do Evangelho. Novamente o Bom Pastor em busca da “ovelha perdida”. Não
sem razão o Papa Francisco compara a Igreja a um hospital de campanha, cuja
preocupação primordial é “curar as feridas”.
Por fim, o primado do poder-serviço sobre o poder-autoridade. Esta opção sobrepõe a presença e a comunicação direta à
distância e a um hermetismo que, pretensamente, procurava defender a dignidade
do sucessor de Pedro. Dignidade que, muitas vezes, acabava por acentuar a pompa
do vestuário, a solenidade ostensiva e exagerada da liturgia, o sistema de
segurança e, no limite, um autoritarismo mesmo que indesejado... No caso do
atual Pontífice, impressionam os encontros com indivíduos e grupos, as
entrevistas com os jornalistas e, mais ainda, os telefonemas a pessoas que
padecem de algum problema grave. Sem intermediários e sem o peso da burocracia,
o Santo Padre dirige-se pessoal e diretamente a gente anônima, que pede socorro
e espera uma palavra de conforto. Importa aqui a necessidade e a urgência, não
o título ou a posição social. O Papa Francisco inova como “chefe de estado” e
como “pastor supremo” da Igreja Católica. Rompe todas as barreiras que o
afastam dos mais necessitados. Faz-se presente onde a dor, a fome e a solidão
(três irmãs gêmeas) são mais prementes. Tudo isso, evidentemente, não exclui a
validade das cartas pastorais, encíclicas e documentos pontofícios. Mas o
contato simples e direto, com a atenção voltada à pessoa, deixa marcas que
vento algum poderá apagar.
Os três fatores
apontados, complementares, entrelaçados e indissociáveis, nos levam a concluir
com as palavras do Evangelho: “As pessoas ficavam admiradas com o seu
ensinamento, porque Jesus falava como quem tem autoridade e não como os
doutores da Lei” (Mc 1,22). Não que o Papa Francisco, até o momento, tenha dito
algo de novo, inédito e extraordinário. Novo, inédito e extraordinário é o seu
modo simples, direto e genuíno de dirigir-se a todos e a cada um. “Conhecerei a
verdade e ela vos libertará” (Jo 8,32) – verdade que, na grande maioria das
vezes, não se apresenta de forma sinuosa, complexa e labiríntica, mas, como
água que brora da fonte, é fresca, límpida e transparente.
Roma, 29 de setembro de 2013
dois Franciscos e a cultura da
paz
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Dia 4 de outubro de
2013 o Papa Francisco visita a cidade de Assis. Gesto que faz relembrar o
Encontro pela Paz, promovido pelo seu predecessor João Paulo II, em 27 de
outubro de 1986, com representantes de vários credos e religiões. O lugar e os
protagonistas em questão leva-nos a refletir sobre o valor e a contribuição das
religiões para a paz mundial. Difícil pensar na concórdia entre os povos e
nações se aqueles que professam o mesmo e único Deus não se entendem entre si.
Em outras palavras, qual o papel da religião (ou religiões no plural) na
construção de uma cultura de desenvolvimento e paz? Podem a fé e a esperança
religiosas pavimentar o caminho para uma convivência pacífica em nível internacional
e, além disso, promover o que se poderia chamar de “globalização da
solidariedade”?
A pequena cidade
italiana, por outro lado, nos remete à figura extraordinária do “pobre de
Assis”, que no século XII, em plena era medieval, surpreendeu a Igreja e o
mundo com sua corajosa e audacosa opção pela pobreza, e com um estilo de vida e
dedicação aos excluídos da sociedade. Dele é que o atual Pontífice, ao ser
eleito, escolheu o nome para o seu ministério petrino. E aqui entramos no
coração mesmo da mensagem evangélica, no núcleo central da Boa Nova de Jesus
Cristo. Ou seja, aquele que encontra a pérola preciosa do Reino de Deus, o
tesouro escondido por trás dos fatos históricos e de tantos apelos do dia-a-dia,
será capaz de relativizar os bens materiais, perecíveis e descartáveis. Ambos
os Franciscos, aliás, convergem sobre essa grande descoberta de ater-se ao
essencial na trajetória da existência humana, sem perder tempo e energias com
aquilo que lhe é secundário e supérfluo. Ambos recusam o caminho sinuoso,
complexo e labiríntico da exegese e do dogma, preferindo antes a simplicidade e
transparências das palavras e parábolas, dos gestos e ações do Mestre.
E o essencial, vem
insistindo o Papa em seus encontros e audiências, seguindo de perto as pegadas
de Jesus e de São Francisco, concentra-se em dois mandamentos: “Amar a Deus sobre
todas as coisas e ao próximo como a si mesmo” (Mc 12,28-31). Aí está o resumo
de toda Lei e os Profetas! Se, de um lado, o encontro com o Pai, na metáfora da
montanha, conduz ao compromisso com os pobres, de outro, o “êxodo de si mesmo”
em direção a estes últmos, na metáfora do caminho, reconduz à intimidade com
Deus. Montanha e caminho, oração e ação, fé e compromisso social, longe de se
excluirem, se complementam e se interpelam reciprocamente. Por isso é que, ao
mesmo tempo que se recolhia com frequência ao deserto ou “a um lugar à parte
para rezar” (Lc 11,1-4), com a mesma frequência Jesus “percorria todas as
aldeias e cidades, compadecendo-se da multidões cansadas e abatidas, como
ovelhas sem pastor” (Mt 8,35-38).
Em sua prática
pastoral, digamos assim, a intimidade com o Pai e a presença entre os
sofredores de toda espécie crescem e se aprofundam em igual proporção. Uma
requer e reforça a outra: a oração desdobra-se na ação e esta se reveste com a
luz daquela. Isso explica a extraordinária sensibilidade do Nazareno não
somente nos momentos de encontro profundo com o Pai, mas também nos encontros
com os leprosos, os doentes, as mulheres marginalizadas, as crianças, on
indefesos, os pecadores e “impuros”... Seu rosto como que se contrai, seus
passos de detêm, seu coração sangra e as entranhas se lhe estremecem. A ninguém
é capaz de negar um olhar, uma palavra, um gesto, uma visita, no sentido de
transmitir força e paz. Emblemático a esse respeito permanece a parábola do Bom
Samaritano (Lc 10, 25-37), verdadeiro ícone da solidariedade humana.
Dupla dimensão de
toda confissão religiosa: um olhar vertical, para o alto; um olhar horizontal,
para os lados. Em termos concretos, quanto mais nos aproximamos de Deus através
do processo de oração, reflexão e contemplação, mais nos sentimos impulsionados
ao compromisso social e transformador junto aos extratos marginalizados da
população. O rosto de Deus, no seu amor sem limites, revela o rosto desfigurado
de todos os crucificados da história; e viceversa, a feição dos pequenos e
últimos, no seu clamor por justiça, revela a face oculta e misericordiosa do
Pai. Como o girassol ao redor do astro rei, a fé orienta-se em duas direções
indissociáveis: por uma parte, busca do bem e do belo, da verdade e da justiça,
da luz e da paz; por outra, combate a tudo aquilo que, na face da terra e nas
contradições do cotidiano, contrasta com esse centro iluminador de todo o
universo criado.
A dimensão
vertical, quando desligada do olhar ao redor e da consciência do que se passa
no contexto em que vivemos, pode tornar-se inócua, intmista, espiritualizante e
estéril. Ou, pior ainda, uma instrumentalização da divindade para justificar
nossa posição ou ação. Por outro lado, a dimensão horizontal, sem o confronto
com o silêncio de Deus na oração, pode significar a instrumentalização dos
pobres em vista de intereses pessoais ou corporativos. Uma questiona e
fortalece a outra, numa dinâmica circular de crescimento em espiral. Ao mesmo
tempo que a montanha ilumina o caminho através do espelho silencioso da prece,
o caminho confere maior solidez e concretude à intimidade com Deus na montanha.
Entre essa duas
dimensões – vertical e horizontal, montanha e caminho – o aprofundamento do
amor a Deus e ao próximo desvenda uma terceira dimensão: o encontro consigo
mesmo, num processo íntimo de autoconhecimento. Na medida em que povoamos nossa
vida com a presença de Deus e a do outro, enriquecemos a própria identidade, de
caráter sempre relacional. Olhar para Deus, olhar ao próximo e olhar sobre si
mesmo são três lados de um único relacionamento humano-divino. É assim que os
dois Franciscos e a cidade de Assis nos ajudam a repensar uma nova
espiritualidade, comprometida simultaneamente com a vivência profunda da fé e
com a construção da solidariedade e da paz.
Ao mesmo tempo que
ganha asas para voar e uma lente voltada sobre si mesma, a religião firma os
pés no chão duro do sofrimento humano. Na verdade, é somente sobre essa terra
regada de lágrimas, suor e sangue que se pode lançar o alicerce do novo
edifício, onde habitarão a justiça e a paz. Da mesma forma que a árvore, à
medida que esse edifício mergulha suas raízes na terra úmida e fria, mas rica e
fecunda, pode buscar o sol, o céu azul, a luz e o ar livre. A dor e a esperança
da condição humana; suas lutas e embates cotidianos, com fracassos e vitórias;
seus encontros, desencontros e reencontros, lenta e laboriosamente, vão abrindo
espaço para a fraternidade e a paz. Disso nos falam os dois Franciscos, disso
nos fala a pequena cidade de Assis. Lugar e nome de onde emana uma verdadeira
cultura da paz!
Roma, 27 de setembro de 2013
Fundamento e fundamentalismo
Pe. Alfredo
J. Gonçalves, CS
O funtamentalismo –
religioso, político, ideológico ou de qualquer outra natureza – constitui a
negação de um verdadeiro fundamento. Toda religião, todo projeto político e
toda espécie de ideologia têm como alicerce alguns princípios que os sustentam.
Formam as balizas e a base de seu fundamento. Tais princípios, porém, deixam de
evoluir de acordo com o contexto histórico e os desafios do tempo, correm o
risco de fossilizar-se, de cristalizar-se, tornando-se tão rígidos que não
respondem mais às perguntas e inquietações das gerações novas. Novas perguntas
e novas dúvidas exigem novas respostas. Paralizados diante da dinâmica
sócio-histórica, os fundamentos tendem a exacerbar-se, convertendo-se em seu exato
contrário, isto é,no fundamentalismo fóssil. Este, ao longo dos séculos, tanto
à direita quanto à esquerda, tanto do ponto de vista religoso quanto ateu, tem
deixado um rastro macabro de perseguições, deportações, execuções, torturas,
mortes – uma imensa multidão anônima de mutilados
e de cadáveres.
Os exemplos históricos
são os mais variados: vão desde a cristandade medieval (“fora da Igreja não há
salvação”) com as repetidas cruzadas, o processo de inquisição e as fogueiras,
até a guerra santa de alguns radicais muçulmanos com suas divisões intestinas e
seus métodos terroristas, passando pelas experiências totalitárias do
socialismo real, especialmente na ex-União Soviética, bem como do fascismo e
nazismo que culminaram com a tragédia da Segunda Guerra Mundial e do holocausto.
Toda espécie de totalitarismo tem como base alguma forma de fundamentalismo,
seja ele de caráter político, ideológico ou religioso, quando não os três ao
mesmo tempo. Ao absolutizar um determinado programa ou uma determinada formação
sócio-política, acaba-se por esquecer que tais construções são sempre situados
no tempo e no espaço. O resultado é a exclusão de toda pessoa, grupo, povo,
religião ou nação que não o seguem ou a ele não se adaptam. Questionar
determinadas ideologias é ser “alienado”, “pecador”, “incrédulo” – o que pode
levar à prisão e à morte.
A pretensão de
possuir a verdade, e de a possuir em termos absolutos, conduz à expurgação pura
e simples. Segue-se-lhe o “dever” e até ao “direito” de eliminar o outro. Este
pode ser o herege ou a feiticeira/bruxa da Idade Média, o louco ou cientista do
Renascimento, o infiel ou ateu das “guerras santas”, o comunista ou capitalista
da sociedade contemporânea... As consequências se tornam mais graves e trágicas
quando tal pretensão da verdade se reveste de uma roupagem religiosa. De fato,
a história registra as mais brutais barbaridades cometidas em nome de Deus. O
raciocínio é simples e direto: “Se eu possuo a verdade e sigo a vontade de Deus
e você se opõe, você deve morrer”! Quando recorremos a Deus para justificar
certa posição ou certos critérios, qualquer argumento em contrário deve ser
absolutamente banido.
Chega-se assim a um
o conceito distorcido de identidade. Esta, em lugar de enriquecer-se no
confronto e no diálogo com o outro, fecha-se completamente em si mesma,
evitando todo e qualquer encontro ou questionamento. “O outro é o inferno”,
dizia amargamente o filófoso existencialista J.P.Sartre, um perigo a ser
evitado ou combatido. A verdade torna-se única e absoluta, a pluralidade um
risco a ser eliminado pela raiz. Também pela raiz eliminam-se as sombras e
ambiguidades, próprias da condição humana. Nessa perspectiva, vê-se somente o
preto e o branco, tudo que é cinza converte-se em perigo. A verdade deve ter
fronteiras precisas e perfeitamente determinadas. Nenhum espaço para
interpretações diferentes, nada de interrogações incômodas. Interrogar é
duvidar, duvidar é descrer...
Ora, sabemos que o
ser humano é feito de luzes e sombras, e entre umas e outras, os limites se
misturam e se confundem. Borram-se as fronteiras entre o certo e o errado. Nas
relações humanas, a cor cinza, indeterminada, costuma ser mais frequente que a
cor forte e fortemente definida. A identidade constrói-se em meio às
contradições da existência, dilacerada por medos, traumas e dúvidas. Nas
palavras do Evangelho, o joio e o trigo crescem juntos. A pressa em separá-los
pode deitar a perder o trigo juntamente com o joio. “Na vida, tudo é muito
misturado, lusco-fusco”, lamenta-se o personagem Tartarana da obra de Guimarães
Rosa, Grande Sertão - Veredas. Os
filósofos E. Lévinás e H. G. Gadamer, ao contráro de Sartre, afirmam
respectivamente que “o outro é o caminho para chegar a mim mesmo” e que “o
outro tem mais a dizer sobre mim mesmo que sobre ele”.
Em termos mais
concretos e sintéticos, qualquer opinião, argumentação ou postura
político-ideológica, bem como qualquer religião, deve ter sim seus fundamentos,
sua identidade, sua forma étnica e ética. De acordo com uma intuição de Hans
Kung, em sua clássica trilogia sobre Ebraísmo,
Cristianismo e Islam, o fundamento
não se confunde com o fanatismo cego e surdo, o qual, guiado por princípios
rígidos e ossificados, a ponto de tornar-se a-histórico, devasta tudo e todos.
Identidade não se confunde com o nacionalismo exclusivista, preconceituoso,
xenófobo e discriminatório, que faz do outro/diferente um inimigo a ser varrido
do mapa com todas as forças. A ética, feita de balizas e estrelas que nos
orientam no comportamento diário, não se confunde com o moralismo petrificado
no tempo e no espaço, o qual não tem lugar nos ouvidos e na alma dos jovens,
por exemplo.
Numa palavra,
fundamento, identidade e ética não podem constituir-se em dogmas cerrados sobre
si mesmos. Ao contrário, devem permanecer abertos a um aprenduizado contínuo,
de acordo com as circunstâncias e os desafios que cotidianamente nos batem à
porta. Isso não significa, evidentemente, pular para o outro extremo do
cinismo, do relativismo e do niilismo, hoje em moda na sociedade pós-moderna. A
“sociedade líquida” (Zygmunt Bauman) não é sinônimo de ausência de critérios ou
princípios, e sim adaptação racional e consciente destes à realidade que nos
cerca e que se encontra em constante metamorfose. Vale aqui o pensamento de J.
B. Scalabrini, chamado “pai e apóstolo dos migrantes”: a história muda, avança,
corre com velocidade cada vez maior, e nós não podemos ficar para trás. Por
isso, dizia ele, “a novos desafios, novos métodos”.
Fundamento,
identidade e ética, se e quando se mantêm abertos ao diálogo, instalam uma
circularidade de crescimento recíproco com as interrogações levantadas pela
história em movimento. Ao mesmo tempo que iluminam os projetos, caminhos e
passos de determinadas pessoas, grupos ou nações, deixam-se iluminar pela
“irrupção de Deus na carne do mundo”, para usar uma linguagem teológica cara ao
teólogo italiano Bruno Forte. Ao invés de agarrar-se a um passado fossilizado
ou a um presente cegoe marcadamente hedonista, abrem a janela para as
possibilidades do futuro, os “sinais dos tempos” escritos no pergaminho da
história. Abrir-se aos riscos do “novo” é vencer um saudosismo doentio, mórbido
que muitas vezes faz da vida um verdadeiro museu.
Roma, 25 de setembro de 2013
Mudar para manter-se no poder
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Divide et
impera (Divide e impera) é uma expressão latina que ilustra bem
o fato de estimular as tensões e rivalidades entre os súditos e os opositores
para melhor dominar sobre eles. Daí o deliberado acirramento das discórdias,
conflitos e revoltas que dividem pessoas, grupos, instituições, partidos e
povos inteiros, com vistas a um poder mais absoluto. Exemplos concretos, do ponto
de vista histórico, poderíam ser as turbulências do Império Romano, como também
as diversas formas colonialismo dos séculos XIX e XX. Não menos evidente é o
imperialismo contemporâneo, chamado eufemisticamente de mundialização ou
economia globalizada. Em síntese, jogando os súditos uns sobre os outros, o soberano
consegue neutralizar a força dos mesmos contra o poder central. Alimentando as
fraturas e facções internas, protege-se contra a possibilidade de uma oposição
unificada sobre si mesmo. Enfim, a máxima é dividir para melhor governar,
mantendo as rédeas do império.
Três obras da literatura italiana, todas ambientadas na
região sul do país, Calabria e Sicília, nos ajudam a entender um outro paradoxo
da prática política: mudar para manter-se no poder. Il
Gattopardo
de Tomasi di Lampedusa, I Viciré de
Federico De Roberto e I Vecchi e i
giovani de Luigi Pirandello. Os três romances que remontam ao processo de unificação
da Itália, no final do século XIX e ilustram de forma extraordinária essa
máxima de mudar as aparências para não perder a substância. Duas frases bastam
para retratar o espírito dos escritores citados. “Se vogliamo che tutto rimanga
come è, bisogna che tutto cambi” (Se queremos que tudo fique como está, é
preciso que tudo mude) – diz o aristocrático borbônico Tancredi, um de seus
personagens centrais de Lampedusa. Federico De Roberto, por sua vez, atribui a
um outro aristocrático, o duca di Oragua, uma cínica paródia da clássica máxima de Massimo D’Azeglio “Ora che l’Itália
à fatta, bisogna fare gli italiani” (Agora que a Itália está feita, é preciso
fazer os italianos), colocando na boca desse personagem igualmente central a
seguinte frase, não menos cínica: “Ora che l’Itáia è fatta, dobbiamo fare gli
affari nostri” (Agora que a Itália está feita, é preciso fazer os nossos
negócios).
Em ambos os casos, mudam as cores da bandeira, a letra e
música do hino, as luzes do palco, as frases de efeito, mas os atores
permanecem os mesmos. Na disputa encarniçada pelo poder, fazem o jogo do
camaleão: de acordo com o ambiente e as circunstâncias, muda a forma e a cor da
pele para não perder a vida. Nesse jogo de dividir
para governar e de mudar para manter,
o que importa é saber usar as massas e os partidos. Estes, para galgar um a um os degraus das diferentes
instâncias de decisão; aquelas, como trampolim indispensável para chegar ao
topo. Se o partido figura como uma escada que pode ser queimada após a subida,
as masas constituem o fermento dos aplausos e dos votos que, após fazer crescer
a popularidade e o prestígio de determinado cantidato, podem igualmente ser
deixadas de lado. Um e outras são peças obrigatórias na engrenagem da encenação
eleitoral, mas sempre serão mais ou menos vulneráveis aos ventos e às finanças
da manipulação. Circulando livremente entre o político, o partido e as massas,
não podemos esquecer a figura do líder (ou cabo eleitoral, intermediário,
capataz, gato...). Como uma espécie de fio elétrico, é o conduto nevrálgico das
novas ou velhas ideologias, das novas ou velhas camisas, o mais exposto ao
vento das mudanças.
Exposto porque movido pelo combustível, altamente
inflamável, do dinheiro, das benesses e dos privilégios. Da mesma forma que as
palavras que usa não são suas, tenta repassá-las à multidão febril e sequiosa
de novidades. Não possuindo uma cabeça que pensa por si mesmo, procura “fazer a
cabeça” dos indecisos e, mais anda, dos que estão dispostos a trocar o voto por
um posto na administração, uma consulta médica, um par de óculos ou, pura e
simplesmente, uma cesta básica. Aqui a máxima é que a ideologia e o partido
devem estar a serviço do candidato e não o contrário. Mais ainda: ao invés de
um serviço à população, predominam os próprios interesses, desde o Zé da Silva
até sua Excelência o Sr. Deputado ou Senador Fulano de Tal, passando pelo
intermediário, assessor Sicrano de Tal. Como já disse alguém, o projeto de
nação dá lugar a um projeto de poder. Obtida a cadeira parlamentar, instalam-se
os mecanismos para perpetuá-la através de uma rede que inclui familiares e
compadres, apadrinhados, curral eleitoral, corporativismo, lideranças e,
evidentemente, os fiéis eleitores.
Lubrifica essa engrenagem, às vezes complexa e às vezes
extremamente simplista, o óleo do tráfico de influência. Vantagens e
desvantagens são pesadas, calculadas, matematicamente medidas. A compra e venda
de votos nem precisa ser mascarada, a não ser em momentos excepcionais de
vigilância mais rígida. Daí a necessidade de renovar com frequência o óleo para
que os elos da corrente não se enferrugem, com tensões, rivalidades, invejas,
mesquinharias... Se isso ocorrer, muitos “fiéis” ou “afilhados” podem mudar de
partido, de idelogia e de candidato. Manter a máquina bem azeitada é o objetivo
de um bom relacionamento entre as partes. Em casos extremos de risco, o óleo da
influência concretiza-se em empregos, postos de assessoria, dinheiro vivo e as
promessas de sempre. Borram-se as fronteiras entre as urgências da rex publica e os interesses da vida
privada.
Conquistado o posto no Senado ou na Câmara, repetimos,
instala-se, ainda, uma espeiral crescente de reforçamento recíproco. Isto é, o
mandato parlamentar abre portas e oportunidades para novos empreendimentos, não
somente de natureza pública, mas também (ou sobretudo) de interesse privado,
familiar, empresarial ou de grupo. Tais empreendimentos, por sua vez, aumentam
a capacidade de maiores rendimentos. Elevam-se os lucros e estes, claro,
possibilitam campanhas eleitorais mais aparelhadas e sofisticadas, especialmente
com o uso dos marqueteiros e da mídia. Entra em cena o espetáculo, muitas vezes
agressivo, do marketing, da propaganda e da publicidade. Assim, a cada eleição
diminui a ansiedade e a vitória se torna menos duvidosa. Complementa-se o
círculo cujo resultado é manter a cadeira cativa e, se possível, levantar sobre
seus alicerces uma espécie de “nova dinastia”, ou, em termos paradoxais de
“dinastia democrática”.
De fato, como afirma o filósofo e historiador Bertrand
Russell, se, por um lado, as democracias ocidentais eliminaram as dinastias
políticas tradicionais, não conseguiram eliminar as dinastias econômicas. Estas
permanecem intocáveis, independentemente de como tenha sido obtida a riqueza
hereditária. A herança é e permanece sagrada, intocável. Com essa riqueza e os
dois mecanismos acima descritos – dividir
para governar e mudar para manter
– as classes dominantes reintroduzem no cenário a dinastia política. O poder
econômico e financeiro, manipulando partidos, líderes, meios de comunicação e massas,
impõe as regras do processo eleitoral, perpetuando-se no poder de acordo com os
próprios interesses. A luta democrática no Ocidente parou a meio caminho:
abalou as ondas superficiais do jogo político, mas deixou intatas as correntes
subterrâneas das forças econômicas. São estas que, em últmas instância, fazem,
desfazem e refazem a cartilha das eleições, escolhendo aqueles que terão o
direito de se apresentar como candidatos. Aos eleitores, no sufrágio universal,
compete tão somente indicar um dos já escolhidos. A esse gesto limita-se não
raro o exercício democrático. Pobre democracia!
Nesta linha de argumentação, não podemos cair no risco de
uma visão unilateral em que as massas sofreriam de uma apatia endêmica e
irremediável.Várias iniciativas populares de resistência, conscientização,
organização e mobilização mostram o contrário. O povo se move, rompe barreiras,
remove mitos e levanta a cabeça. Nunca é somente vítima ou somente
protagosnista, mas uma mistura de ambas as coisas. Especialmente nos meios
urbanos, muitos começam a caminhar com as próprias pernas. O voto consciente vai ganhando espaço a
cada pleito eleitoral. Mesmo assim, ainda persiste o voto de compadrio e, no conjunto da sociedade, prevalece o voto de transferência, ou seja, o ato de
transferir para o representante político, nas urnas, o exercício e a
responsabilidade da ação política. Além disso, convém não esquecer que o
tradicionalismo de uma prática política corrupta e puramente eleitoreira
demonstra uma enorme capacidade de cooptar e neutralizar as bandeiras de luta das
forças populares.
Roma, 16 de setembro de 2013
Como você concebe o tempo?
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
O tempo é um bem
incalculável, uma grande riqueza que a ninguém é negada. Mas é extremamente
ambígua a maneira como o concebemos. Pode ser um tesouro carregado de pérolas
brilhantes diante de uma sociedade massiva e anônima, ansiosa por um ouvido atento
ou uma palavra amiga; mas pode também ser um túmulo de mutismo, surdo e mudo ao
clamor dos silenciados e silenciosos e aos desafios da história. O tempo é “o
grande ídolo contemporâneo”, adverte o monge italiano Enzo Bianchi; “lembrem-se
que tempo é dinheiro”, dizia por sua vez Benjamin Franklin, ainda no século
XVIII, como que profetizando o ritmo alucinado da produção e da produtividade,
com o advento das revoluções modernas: industrial, dos transportes e
comunicaçoes, da informática...
A verdade é que a
forma como concebemos o tempo tem implicações diretas no seu uso. A pergunta do
título, por exemplo, poderia ser substituída por outra: o que você faz do tempo,
com quem o gasta? Ou também, até que ponto você é capaz de “perder tempo” com
as pessoas que lhe são caras ou que você ama? Por outro lado, poderíamos
perguntar: você é corajoso o suficiente para “perder tempo” consigo mesmo,
ouvindo e deixando-se interpelar pelo silêncio? Ou este lhe causa medo e
calafrios pelos fantasmas que costuma revelar e esconder, obrigando-o a
preencher todos o minutos com atividades, luzes, sons, conversas, distração e
correria? Dependendo da noção de tempo que cultivamos, desenvolvemos, em grau
maior ou menor, a agitação febril e a ansiedade que caracterizam a vida
contemporânea, no sentido de não perder tempo.
Um exemplo bem
corriqueiro: que lhe pedem sua namorada, noiva ou esposa; seu filho, neto ou
depedente; seu companheiro, sócio ou amigo? Todas essas pessoas com quem você
tropeça no contidiano e que lhe dedicam um grau mais íntimo de
relacinamento – familiares, amigos,
parentes ou conhecidos – com o passar dos anos, não lhe perguntarão, em
primeiro lugar, quantas fazendas ou terrenos, quantas casas ou apartamentos,
quantas ações ou contas bancárias você deixará como testamento. Antes,
implícita ou explicitamente, perguntarão quanto tempo você foi capaz de
“perder” com cada uma delas. Quem ama saber dedicar tempo à pessoa amada! Nada
mais inconveniente que um namoro em que um dos dois não pára de olhar o
relógio. Aliás, o amor relativiza a duração e o valor do tempo. Basta
confrontar os minutos “perdidos” esperando por uma condução ou por uma
refeição, de um lado, e, de outro, os minutos passados ao lado de uma pessoa
amiga e amada.
Voltemos à
pergunta: o que fazemos com essa dádiva de Deus que é o tempo? Como o
concebemos e, em consequência, como o usamos? Para alguns, o tempo não passa de
um bem privado, de usufruto próprio e único, egoísta e egocêntrico. Recusam-se sistematicamente
a condividi-lo com os outros, guardando-o para si mesmos, numa atitude de
autosuficiência e até arrogância. Internet e televisão, casa e carro, teatro e
cinema, luxo prazeres... Tempo igual a
latifúndio: vazio, ocioso e improdutivo. Cercando-o por todos os lados de
compromissos “importantes e inadiáveis”, tais pessoas isolam-se num mundo
fechado, como verdadeiros caramujos. Criam toda espécie de impedimentos para
evitar o encontro, seja consigo mesmo, seja com os outros e menos ainda com
Deus. Ocorre que, com o passar dos anos, não sabem mais o que fazer dos dias,
horas e minutos... Como tudo o que se acumula, também o tempo apodrece ou
enferruja. Torna-se tedioso e enfermiço, a tal ponto que o simples tic-tac do
relógio converte-se numa tortura! Os segundos tombam monótonos, como gotas de
chumbo derretido, sobre as chagas vivas da alma doentia no seu isolamento e
falta de comunicação.
Para boa parte das
pessoas, porém, o tempo equivale a moeda de troca. Gastam-no somente na
previsão de um retorno seguro e imediato. Tempo
igual a investimento: deve ser ocupado, preferentemente ou exclusivamente,
em atividades que geram ganho. Não ode ser jogado fora, mas envestido em
tarefas bem precisas, calculando matematicamente os lucros. Nada de riscos
indefinidos. Nesta maneira de ver o tempo, estabelecem-se laços, “amizades” e
relações somente com aqueles que têm algo a oferecer, tanto em termos
financeiros quanto em termos de prestígio pessoal ou familiar. O importante é
cultivar pessoas e famílias na medida em que essas representam um
rendimento material, moral ou espiritual.
Dias, horas e minutos convertem-se em unidades monetárias, tais como dólares e
centavos, os quais, pela própria natureza, devem garantir juros, multiplicar-se,
capilatizar-se. Capital gera capital, investimento gera investimento, tempo
deve gerar um índice positivo nas ações da “bolsa de valores” dos
relacionamentos humanos. Daí a máxima: jamais de perder tempo com quem nada tem
a retribuir!
Pa outros, enfim, o
tempo é um dom recebido e, por isso mesmo, deve estar a serviço dos outros,
especialmente dos mais necessitados. Tempo
igual a gratuidade: seu uso não discrimina nem privilegia ninguém,
colocam-se incondicionalmente à disposição de todos. Abandonam-se com maior
frequência não apenas à solidariedade horizontal, como também, em linha
vertical de fé e esperança, ao sopro do Espírito. Trata-se, claramente, da
concepção de tempo que perpassa as páginas do Evangelho, como também a
existência de tantas pessoas que o seguem. De fato, “a carava de Jesus” nunca
atropela quem sofre e grita por socorro. Os casos são os mais variados, tais
como o cego Bartimeu (Mc 10,46-52), a mulher que sofria de fluxo de sangue (Mc
5,25-34), a mãe que acabara de perder o filho (Lc 7,11-17), os dez leprosos (Lc
17,11-19... Na sua trajetória, Jesus nunca ignora a dor, o abandono, a solidão
e o sofrmento. Às vezes contra o parecer dos próprios discípulos, que afastam e
repreendem os “intrusos”, o Mestre se detém, escuta, observa, toca, cura,
orienta e perdoa. Seus dias, horas e minutos tornam-se, para os pequenos e
últimos, palavras, obras e ações de verdadeira Boa Nova.
Não é que Jesus tenha uma Boa Notícia, Ele é a Boa Notícia, enquanto faz do próprio
tempo um presente gratuito àqueles que dele precisam. Além dos casos citados,
três episódios são particularmente emblemáticos, no sentido de alguém que se
faz presente sem jamais demonstrar pressa, mas assumindo completamente o ponto
de vista do outro: a parábola do Bom Samaritano (Lc 10,25-37), o diálogo com a
Samaritana na beira do poço (Jo 1,42) e o econtro com os discípulos de Emaús
(Lc 24,13-35). Sua passagem, sua pesença e suas palavras transformam-se em
momentos decisivos para fazer brilhar a face do Pai. Pérolas vivas de um amor
compassivo e misericordioso. Todos merecem o seu tempo, especialmente aqueles
que têm a vida mais ameaçada: para Jesus o tempo é dom de Deus, doação aos
pobres!
Roma, Itália, 14 de setembro de
2013
Bem aventuranças
Bem aventurados
os pobres,
Não por sê-lo ou
por acomodar-se à pobreza,
Mas porque nela e
através dela
Colocam sua
confiança no grande tesouro
Que se esconde
para além das honras e riquezas materiais,
Coisas que
aprisionam o coração e a alma,
E que são
corroídas pela traça e facilmente roubadas.
Bem aventurados
os que choram,
Não porque o
pranto seja sinônimo de felicidade,
Mas porque cada
lágrima, dolorida e salgada,
Traz consigo
justamente o sal da sabedoria,
Acumulado pela
provação e pela experiência,
O qual faz
relativizar o que é secundário
E ater-se àquilo
que é absoluto e eterno.
Bem aventurados
os mansos,
Não porque a tudo
se submetem sem resistência,
Mas porque têm
consciência que o tempo e o silêncio
São os melhores
conselheiros na aflição,
E sabem também
que qualquer ação, no momento certo,
Vem acompanhada
pela mão de Deus.
Bem aventurados
os que têm fome e sede de justiça,
Não pela fome e
sede em si mesmas,
Mas porque
interpelam a ordem vigente e seus detentores,
Abrindo o horizonte
da história ao futuro
E à promessa da
Terra Prometida ou do Reino de Deus.
Bem aventurados
os misericordiosos,
Não porque fecham
os olhos à injustiça e ao pecado,
Mas porque os
abrem em uma nova direção,
Uma aurora
iluminada pelo dom do perdão,
Em que todos
terão vida em plenitude.
Bem aventurados
os puros de coração,
Não porque são
ingênuos diante do mal que os cerca,
Mas porque na
transparência do olhar e das palavras
São capazes de
“ver” o que Deus tem reservado
Para aqueles que
o procuram com sinceridade.
Bem aventurados
os que buscam a paz,
Não porque
ignoram as tensões, conflitos e tiranias,
Mas porque,
embora cientes de todos essas contradições,
Também o são de
que o caminho da guerra
Só faz crescer a
espiral daninha da violência.
Bem aventurados
os que são perseguidos por causa da justiça,
Não porque a
perseguição seja um troféu e uma vitória,
Mas porque, não
raro, representa o resultado
De quem é capaz
de acender uma luz na noite escura,
Apesar de saber
que o mundo prefere as trevas.
Pe. Alfredo J.
Gonçalves, CS – Roma, 11 de setembro de 2013
Nunca mais a guerra!
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
A paz não se
assenta sobre o equíbrio das armas ou a ameaça mútua das superpotências, e sim
sobre a justiça e o direito – enfatizava
a Doutrina Social da Igreja (DSI) nos tempos da “guerra-fria”, especialmente
com a publicação da Pacem in Terris
do Papa João XXIII (1963). “O desenvolvimento é o novo nome da paz” – insistia
o Papa Paulo VI na Encíclica Populorum
Progressio (1967).
A paz, tendo como
fundamento bases socioeconômicas sólidas e solidárias, tem sido um dos pilares
de toda a DSI. Mas, no decorrer de todo o século XX e início do século XXI,
prevaleceram as razões da guerra. Período tenso e carregado de desencontros
políticos, conflitos armados, genocídios, colonialismo, totalitarismo,
massacres, bomba atômica... Tudo culminando com a tragédio do holocausto, sem
dúvida uma das feridas mais vivas da história.
A luta contra a
corrida armamentista e a ameaça nuclear, ao lado de uma melhor distribuição de
renda, é outro pilar da DSI. Os documentos publicados pelos Papas João Paulo II
e Bento XVI não deixam dúvidas a esse respeito. A busca da justiça e da paz,
bem como e de uma sadia convivência entre povos e nações, tem marcado a trajetória
da Igreja, do cristianismo como um todo e do diálogo inter-religioso.
Vale aqui uma frase
lapidar de Hans Kung, na sua clássica trilogia sobre o ebraísmo, o criatianismo
e o islamismo: “Não existe paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não
existe paz entre as religiões sem diálogo entre as elas. Não existe diálogo
entre as religiões sem um estudo sério sobre seus fundamentos”.
Nessa tradição, o
Papa Francisco, na crise da Síria e na emergência de um ataque dos Estados
Unidos, levanta o “grito pela paz”, convidando a todos a baixarem as armas e a
buscar uma via de diálogo e diplomacia. “Guerra chama guerra, violência chama
violência”, insistia o Pontífice no Angelus
do domingo, dia 1º de setembro. E acrescentava: “Existe um juízo de Deus e
também um juízo da história sobre nossas ações ao qual não se pode fugir”. Nunca mais a guerra! – concluia o Papa.
É difícil prever o
que sucederá na Siría, como também no Egito e região. O certo é que levas e
levas de prófugos, refugiados e migrantes – entre eles multidões de crianças e
mulheres – sofrem as consequências da violência, abrigando-se de forma precária
na fronteira com o Libano. Outros conseguem chegar ao sul dos países europeus.
Fiquemos com a
mensagem do Papa Francisco: “Queremos que em nossa sociedade, dilacerada por
divisões e conflitos, surja a paz”!
Oração pelas vocações
Rezo, Senhor,
pelos jovens que buscam sua vocação
para que, chegando
ou não à vida consagrada ou sacerdotal,
jamais deixem de
ser homens e mulheres de coração aberto
autênticos e
transparentes no ser, no falar e no agir;
mas na nudez e na
pobreza, sejam livres dos bens terrenos,
para melhor descobrir
a pérola e o tesouro escondido,
desvendado Tuas
impressões digitais no tecido da história.
Rezo, Senhor,
pelos jovens ardorosos e entusiastas,
para que, com os
olhos voltados para um futuro,
não queimem
etapas com respostas prontas e pré-fabricadas,
com o vento de ideologias
falsificadas e manipuladoras;
mas saibam estar
a sós consigo mesmos e Contigo,
escutar, na
oração, a voz do silêncio e do mistério,
para estar, ao
mesmo tempo, com a comunidade e as multidões,
ouvindo o grito do
chão, das ruas e dos porões da sociedade.
Rezo, Senhor,
pelos jovens com sede e fome de vida e justiça,
para que, em meio
a um presente cheio apelos, seduções e fascínio,
não gastem todas
as energias de forma egocêntrica e individualista;
mas saibam ser
generosos e solidários, efetiva e afetivamente;
ousem amar e ser
amados, na pura gratuidade da entrega,
esperando como
única recompensa a alegria de servir.
Rezo, Senhor, pelos
jovens filhos deste tempo de turbulências
para que, sem
esquecer a herança positiva do passado,
não o tornem refúgio
para escapar aos desafios da vida e do mundo,
não se escondam
atrás de um saudosismo estéril e ineficaz;
mas saibam
olhá-lo como verdadeiro espelho retrovisor
que permita
engatar marcha e acelerar com responsabilidade,
vivenciando aqui e agora momentos de intensa
felicidade,
sinais visíveis
do ainda não que nos espera
na contemplação definitiva
da eterna luz de Tua face gloriosa.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Roma, Itália, 31 de agosto de 2013
Scalabrini e os leigos Scalabrinianos
Scalabrini inspirado para auxiliar os
migrantes que saiam de sua pátria, Itália, desejou que os leigos auxiliassem
seus missionários junto aos migrantes. Após dois anos de ter fundado a
congregação Scalabriniana em 1887, a serviço dos migrantes, incentivou a
fundação da Associação São Rafael, um Patronato de leigos que tinha como
finalidade apoiar os missionários e acompanhar os migrantes italianos que
partiam para as várias localidades das Américas. O patronato iniciou em 1889 na
cidade de Piacenza, Itália.
Com maior intensidade em 1992 abriu-se a
oportunidade aos leigos a servirem os migrantes junto aos missionários
Scalabrinianos. Nas respectivas paróquias em que estavam os missionários,
surgem grupos de leigos com o mesmo objetivo de Scalabrini, servir os migrantes
nas respectivas localidades. Aos poucos, muitos leigos descobrem no serviço
prestado, a sua vocação leiga.
Vocação leiga é a vocação de todos os
cristãos que ajudam na igreja, nas mais distintas tarefas, fazendo por amor e
em total doação. Partindo do batismo todos podemos ser leigos, ajudando assim,
a libertar as outras pessoas dos falsos profetas e de tudo o que destrói ou corrompe
a pessoa humana. Tendo a missão de anunciar Jesus Cristo que é “caminho a
verdade e a vida”. Estes fazem com que o mundo entre em comunhão com o
ministério que a igreja apresenta.
Seguindo os escritos de Scalabrini o leigo “é
o apóstolo da verdade, da palavra, do exemplo, da caridade, da verdadeira
civilização, do autêntico progresso. Pelo batismo, é sacerdote; pela crisma, é
soldado e testemunha”.
O leigo pode ser casado ou solteiro, além
de ter o seu trabalho profissional, tem um trabalho na igreja. Os que desejam
ser um leigo com mais intensidade optam por consagra-se, se tornando assim; Leigo
Consagrado. “Para os leigos a evangelização adquire características
específicas e eficácia peculiar pelo fato de se realizar pelo seu exemplo, no
mundo, dia-a-dia”.
Jesus Cristo chama a muitos para serem
cooperadores de sua Igreja, não só os sacerdotes, mas também os leigos.
Chamando homens e mulheres, grandes e pequenos, ricos e pobres, sábios e
analfabetos, moças e rapazes corajosos em realizar os projetos Divinos dentro
desta vocação.
O leigo também tem a sua missão apostólica,
ele pode encontrar-se onde o padre não pode ir e, não nos assustemos,
Scalabrini já havia dito “uma exortação sua (do leigo) é melhor
acolhida que a que vem da boca de um padre”. Também o laicato tem a sua
missão apostólica e neste sentido, apresento um breve comentário do nosso
fundador Scalabrini, onde ele apresenta que também os leigos devem ser
apóstolos.
“Deveis ser também vós, ó irmãos, homens de
ação e sacrifício, zelosos pela honra de Deus e da Igreja, pela salvação das
almas. Podeis, vós, embora leigos, exercer, no pequeno mundo que vos circunda,
o apostolado da palavra, usando uma linguagem que edifique, nas conversas, nas
instruções, no corrigir. O apostolado do exemplo, professando abertamente, a
vossa fé! O apostolado da caridade, socorrendo os pobres, visitando os
enfermos, consolando os aflitos, fazendo o bem a todos; o apostolado da
civilização, cooperando na destruição do pecado, que torna miseráveis os povos
e ao incremento da justiça que faz prosperar as nações! Sim! Nas extremas
necessidades da pátria, todo cidadão é um soldado. Nas extremas necessidades da
Igreja todo cristão deve ser um apóstolo, ardente e generoso”.
Muitos dos quais não descobriram o seu
serviço prestado como uma vocação leiga, com o tempo surgiu o desânimo e muitos
foram deixando de estar presentes nas missões em que estavam com os migrantes.
No decorrer dos anos, Scalabrini vem a falecer deixando grande responsabilidade
aos leigos. O trabalho dos leigos foi enfraquecendo, mas, pela vocação de ser
leigo, nunca se apagou esta chama de estar presente nas realidades migratórias
junto aos padres que ali também se doavam ao serviço do outro, do migrante
abandonado, oprimido, explorado.
Hoje pela vontade e desejosos de ajudar os
padres Scalabrinianos os leigos buscam imitar o Bem-aventurado Scalabrini,
estando ao lado dos migrantes que nos esperam angustiados por esta pessoa
compreensiva, que vai o ajudar na situação tão triste na qual se encontra. Junto
com o clero, são estes que ajudam e fortalecem a Igreja na qual professam a sua
fé. Podemos completar; contra a Igreja leiga do satanás, deve-se opor não
somente a força sacerdotal, mas também a força leiga da Igreja de Cristo.
O laicato nos dias de hoje é muito vasto,
onde se promovem, ajudam a difundir a boa imagem, recorrem ao governo da causa
pública, através de intervenções, nas eleições administrativas, onde é
necessário, combatem com a palavra e com os fatos, a influência de outros males
perigosos que afetam constantemente a vida das pessoas. Vão ao encontro das
necessidades de inúmeras pessoas que os esperam. Entre tantas outras, são todas
obras uma mais necessária e meritória que a outra, e assim “alimentam em nós
a chama da caridade divina e mostra-nos, o que devemos ser: filhos dignos da
Igreja de Jesus Cristo” como já nos dizia Scalabrini.
É desta maneira e por essa importância que
o trabalho dos leigos continua vivo com o ‘Movimento Leigo Scalabriniano’,
tendo em sua raiz de origem, a inspiração da espiritualidade e da missão
Scalabriniana. Missão na qual, já se passarão mais de 100 anos de amor,
dedicação e compreensão aos migrantes e refugiados.
Com
as palavras deste grande missionário e fundador que percorreu os quatro cantos
do mundo a serviço dos migrantes mais necessitados, dos pobres e
marginalizados, João Batista Scalabrini nos fala: “Compreendei, portanto, a
nobreza e grandeza de vossa missão, ó leigos, e procurai corresponder-lhe
dignamente. Sois nossos mediadores, como nós o somos, em vosso favor,
mediadores de Deus”.
SEJA VOCÊ TAMBÉM UM LEIGO
SCALABRINIANO!
Andrei Zanon, cs
Bogotá D.C Colombia
"A carne de Cristo está na carne dos refugiados"
Na audiência concedida ao Dicastério para os Migrantes, o Papa denuncia vigorosamente o tráfico de seres humanos e convida cada um a dar a própria contribuição para as pessoas erradicadas à força
Roma, 24 de Maio de 2013 (Zenit.org) Salvatore Cernuzio | 274 visitas
"Uma atividade ignóbil, uma vergonha para as nossas sociedades que se dizem civilizadas". Não existem outras palavras para descrever o fenômeno do “tráfico de pessoas”, segundo o Papa Francisco. O Pontífice não mede palavras à denúncia desta chaga que destrói a “carne de Cristo” e, na Audiência de hoje aos participantes da Plenária do Pontifício Conselho da Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, afirma: “Exploradores e clientes em todos os níveis deveriam fazer um sério exame de consciência diante de si mesmos e diante de Deus”. Ao mesmo tempo, renova o forte apelo da Igreja “para que sejam sempre protegidas a dignidade e a centralidade de toda pessoa, no respeito dos direitos fundamentais”.
A reflexão cheia de indignação do Santo Padre parte da análise do Documento do Dicastério, que “chama a atenção sobre milhões de refugiados, emigrados e apátridas, tocando também a chaga do tráfico de seres humanos, que sempre cada vez mais envolvem crianças, nas piores formas de exploração e recrutados até mesmo nos conflitos armados”.
"Em um mundo onde se fala muito de direitos - diz o Papa - quantas vezes é realmente pisada a dignidade humana!" O dinheiro, no entanto, parece ser o único a ter direitos, porque ele está no controle do mundo de hoje. "Nós - observa com tristeza - vivemos em um mundo, em uma cultura onde impera o fetichismo do dinheiro".
Portanto, Francisco incentiva o Pontifício Conselho "a continuar no caminho do serviço aos irmãos mais pobres e marginalizados", recordando as palavras de Paulo VI no encerramento do Concílio Vaticano II (8 de dezembro de 1965): "Para a Igreja Católica ninguém é um estranho, ninguém é excluído, ninguém está longe".
"De fato somos uma só família humana” comenta o sucessor de Pedro, e “a atenção materna” da Igreja se manifesta “com especial ternura e proximidade com as pessoas forçadas a fugir do próprio país e vive entre desarraigamento e integração”. “A compaixão cristã – acrescenta – este ‘sofrer com’, se expressa antes de mais nada no compromisso de conhecer os eventos que levam a deixar à força a Pátria e, onde é necessário, no dar voz a quem não consegue fazer que se escute o grito de dor e de opressão”.
Neste sentido, o Departamento de Migrantes desenvolve "uma tarefa importante também no sensibilizar as Comunidades cristãs com os irmãos marcados pelas feridas que marcam a sua existência”. Feridas assim tão grandes que não podem ser nem sequer listadas. O Papa nomeia algumas delas: "Violência, abusos de poder, distância da família, eventos traumáticos, fuga da casa, incerteza sobre o futuro em campos de refugiados". Todos os elementos, diz ele, "que desumanizam e devem levar cada cristão e toda a comunidade a uma atenção concreta”.
No entanto, ainda no meio da podridão existe algo que brilha: é “a luz da esperança” que o Sucessor de Pedro convida “a captar nos olhos e no coração dos refugiados e das pessoas erradicas à força”. Esta esperança, “se expressa nas expectativas pelo futuro, na vontade de relações de amizade, no desejo de participar da sociedade que as acolhe, também por meio do aprendizado da língua, do acesso ao trabalho e a educação para as crianças”. Confessa Bergoglio: “Admiro a coragem de quem espera poder gradualmente retomar a vida normal na esperança de que a alegria e o amor voltem a alegrar a sua existência”.
Todos, portanto, "podemos e devemos alimentar essa esperança!" Especialmente aqueles que têm o poder de fazê-lo: governadores, legisladores, a Comunidade Internacional. O Papa exorta-os de fato a colocar em ato “iniciativas e novas abordagens” para tutelar a dignidade dos migrantes diante destas “formas modernas de perseguição, opressão e escravidão”.
"São pessoas humanas", insiste; seres humanos "que precisam de urgente ajuda, mas também e principalmente de compreensão e de bondade". A sua condição, portanto, "não pode deixar indiferentes". Um apelo, portanto, vai também a cada Pastor e Comunidade cristã, que – diz Bergoglio – devem ter especial cuidado do “caminho de fé dos cristãos refugiados e erradicados à força”, por meio de uma pastoral “que respeite as suas tradições e os acompanhe a uma harmoniosa integração nas realidades eclesiais em que vivem”.
O Papa conclui: "Queridos amigos, não se esqueçam da carne de Cristo que está na carne dos refugiados". Em virtude disso, torna-se urgente a responsabilidade do Dicastério de “orientar para novas formas de co-responsabilidade todos os Organismos comprometidos no campo das migrações forçadas”, a fim de “promover respostas concretas de proximidade e de acompanhamento das pessoas, tendo em conta as diversas situações locais”.
Roma, 24 de Maio de 2013 (Zenit.org) Salvatore Cernuzio | 274 visitas
"Uma atividade ignóbil, uma vergonha para as nossas sociedades que se dizem civilizadas". Não existem outras palavras para descrever o fenômeno do “tráfico de pessoas”, segundo o Papa Francisco. O Pontífice não mede palavras à denúncia desta chaga que destrói a “carne de Cristo” e, na Audiência de hoje aos participantes da Plenária do Pontifício Conselho da Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, afirma: “Exploradores e clientes em todos os níveis deveriam fazer um sério exame de consciência diante de si mesmos e diante de Deus”. Ao mesmo tempo, renova o forte apelo da Igreja “para que sejam sempre protegidas a dignidade e a centralidade de toda pessoa, no respeito dos direitos fundamentais”.
A reflexão cheia de indignação do Santo Padre parte da análise do Documento do Dicastério, que “chama a atenção sobre milhões de refugiados, emigrados e apátridas, tocando também a chaga do tráfico de seres humanos, que sempre cada vez mais envolvem crianças, nas piores formas de exploração e recrutados até mesmo nos conflitos armados”.
"Em um mundo onde se fala muito de direitos - diz o Papa - quantas vezes é realmente pisada a dignidade humana!" O dinheiro, no entanto, parece ser o único a ter direitos, porque ele está no controle do mundo de hoje. "Nós - observa com tristeza - vivemos em um mundo, em uma cultura onde impera o fetichismo do dinheiro".
Portanto, Francisco incentiva o Pontifício Conselho "a continuar no caminho do serviço aos irmãos mais pobres e marginalizados", recordando as palavras de Paulo VI no encerramento do Concílio Vaticano II (8 de dezembro de 1965): "Para a Igreja Católica ninguém é um estranho, ninguém é excluído, ninguém está longe".
"De fato somos uma só família humana” comenta o sucessor de Pedro, e “a atenção materna” da Igreja se manifesta “com especial ternura e proximidade com as pessoas forçadas a fugir do próprio país e vive entre desarraigamento e integração”. “A compaixão cristã – acrescenta – este ‘sofrer com’, se expressa antes de mais nada no compromisso de conhecer os eventos que levam a deixar à força a Pátria e, onde é necessário, no dar voz a quem não consegue fazer que se escute o grito de dor e de opressão”.
Neste sentido, o Departamento de Migrantes desenvolve "uma tarefa importante também no sensibilizar as Comunidades cristãs com os irmãos marcados pelas feridas que marcam a sua existência”. Feridas assim tão grandes que não podem ser nem sequer listadas. O Papa nomeia algumas delas: "Violência, abusos de poder, distância da família, eventos traumáticos, fuga da casa, incerteza sobre o futuro em campos de refugiados". Todos os elementos, diz ele, "que desumanizam e devem levar cada cristão e toda a comunidade a uma atenção concreta”.
No entanto, ainda no meio da podridão existe algo que brilha: é “a luz da esperança” que o Sucessor de Pedro convida “a captar nos olhos e no coração dos refugiados e das pessoas erradicas à força”. Esta esperança, “se expressa nas expectativas pelo futuro, na vontade de relações de amizade, no desejo de participar da sociedade que as acolhe, também por meio do aprendizado da língua, do acesso ao trabalho e a educação para as crianças”. Confessa Bergoglio: “Admiro a coragem de quem espera poder gradualmente retomar a vida normal na esperança de que a alegria e o amor voltem a alegrar a sua existência”.
Todos, portanto, "podemos e devemos alimentar essa esperança!" Especialmente aqueles que têm o poder de fazê-lo: governadores, legisladores, a Comunidade Internacional. O Papa exorta-os de fato a colocar em ato “iniciativas e novas abordagens” para tutelar a dignidade dos migrantes diante destas “formas modernas de perseguição, opressão e escravidão”.
"São pessoas humanas", insiste; seres humanos "que precisam de urgente ajuda, mas também e principalmente de compreensão e de bondade". A sua condição, portanto, "não pode deixar indiferentes". Um apelo, portanto, vai também a cada Pastor e Comunidade cristã, que – diz Bergoglio – devem ter especial cuidado do “caminho de fé dos cristãos refugiados e erradicados à força”, por meio de uma pastoral “que respeite as suas tradições e os acompanhe a uma harmoniosa integração nas realidades eclesiais em que vivem”.
O Papa conclui: "Queridos amigos, não se esqueçam da carne de Cristo que está na carne dos refugiados". Em virtude disso, torna-se urgente a responsabilidade do Dicastério de “orientar para novas formas de co-responsabilidade todos os Organismos comprometidos no campo das migrações forçadas”, a fim de “promover respostas concretas de proximidade e de acompanhamento das pessoas, tendo em conta as diversas situações locais”.
fonte: Zenit
O MISTERIOSO HÓSPEDE E OS MIGRANTES
“Já estou chegando a batendo à porta; quem ouvir minha voz e abrir a porta, eu entro em sua casa e janto com ele e ele comigo” (Ap 3,20).
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Mesmo sem ser convidado, um misterioso Hóspede bate à porta. Não somente para sentar à mesa jantar comigo. Ele traz luz e bontade, conforto e paz. A luz irradia-se de seu rosto, penetra os ângulos mais obscuros de meu coração, desvenda segredos inconfessados e inconfessáveis. Seus reflexos, da mesma forma que os raios do sol, além de iluminar até o âmago as entranhas de mina alma, aquecem os recantos mais úmidos, frios e mofados, desnuda as teias de aranha acumuladas, desata os nós de inúmeras dúvidas, inquietudes e contradições. Mais ainda, convida a abrir as janelas de toda a casa para que a luz, alegre, viva e radiante, possa chegar às ruas e praças, clareando os caminhos dos outros. A luz não tem origem em mim, mas eu a recebi gratuitamente. Logo devo disponizá-la de forma igualmente gratuita.
A bondade se expressa através do olhar cativante e encantador desse misterioso Hóspede. Límpido, transparente e compassivo. Nada esconde, nada dissimula, nada distorce. Puro e simples reflexo do que lhe vai pela alma. Seus braços parecem querer abraçar toda a criação, todo o universo, toda e qualquer espécie de ser vivo; mas, ao mesmo temo, manifestam um carinho especial por cada coisa, cada ser vivo, cada pessoa e cada acontecimento. Partilha a ternura de seu coração com todos, mas chama a cada um pelo próprio nome. Como se falasse a uma imensa multidão e, simultaneamente, sussurasse ao ouvido de cada pessoa. É visível seu desejo ardente de abrir o coração em festa para que ninguém seja privado do banquete de sua alegria sem par. Um oxigênio puro e renovado precede-lhe os passos, nutrindo a esperança de quem está ao seu redor. Ardor vibrante que não pode ser contido nos quartos, salas e corredores e ouras partes da casa. Transborda para o ar livre, o céu azul, tomando as asas do vento e as acrobacias dos pásaros. Trata de levar um sopro de vida a quem agoniza sem raiz, sem teto e sem rumo.
O conforto vem da presença a um tempo singela e inefável do misterioso Hóspede. De fato, Ele jamais dá as costas àqueles que o procuram com insistência e perseverança, jamais deixa do lado de fora um espírito contrito e humilde, jamais desilude quem ardentemente o busca. Trata-se de um conforto singular: não resolve meus problemas nem cicatriza automaticamente minhas dores e temores, mas me faz saber que não estou só em meio à tempestade. Minha pequena embarcação, embora frágil e exposta às ondas revoltas da tormenta, leva consigo o Senhor dos ventos e das águas bravias. Ele dorme, é verdade, mas não deixa de vigiar. Ao menor sinal de naufrágio, desperta e inspira coragem para a travessia. Como a luz e a bondade, também o conforto transborda pelas janelas escancaradas, pousando sua mão amiga sobre o ombro de quem sofre. “Venham para mim todos vocês que estão cansados de carregar o peso de seus fardos, e eu lhes darei descanso” (Mt11, 28). Seu toque é inconfundível: não aponta o dedo em riste sobre a ferida e o pecado, como faria um juiz rígido e acusador, mas distribui o dom do perdão e da misericórdia, da cura e da salvação. Por outro lado, apesar de nunca abandnar o pecador ou pecadora ao próprio desespero, Ele não se faz cúmplice do mal: “Eu também não te condeno, vai e não peques mais!” (Jo 8,11).
A paz brota da certeza de que o misterioso Hóspede é mensageiro de uma grande notícia. Diante de uma época marcada por tantas tensões e conflitos; guerra, violência e deslocamentos forçados, ele traz a aurora de um tempo novo. Longe de fechar-se sobre o despotismo e a tirania do mercado, dos totalitarismos, a história se reabre e se descortina a novos horizontes. Sobre as cinzas e escombros das últimas batalhas, novas veredas vão surgindo. Iniciativas populares floescem e se multiplicam por toda parte. Nem tudo é escuridão, nem tudo é deserto estéril, nem tudo é indiferença, nem tudo é perplexidade e desencanto. Ainda que tímidos e longínquos, já se fazem ouvir os sinos da paz, anunciada como a Boa Nova do Reino de Deus. Sinos cujo som metálico, novamente aqui, rompe todas as fronteiras, percorre campos e cidades apontado para a Jerusalém Celeste, onde o misterioso Hóspede “ergue a tenda de Deus com os homens. Ele vai morar com eles, eles serão o seu povo e Ele, o Deus-com-eles será o seu Deus. Ele vai enxugar toda lágrima dos olhos deles, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor” (Ap 21,3-4).
No fundo, a luz e a bontade, o conforto e paz do misterioso Hóspede têm como pano de fundo o amor que, ao mesmo tempo, inspira e fortalece a fé. Amor como causa e efeito das três virtudes teologais: fé, esperança e caridade. De acordo com a Encíclica Lumen Fidei (Luz da fé), ebaborada conjuntamente pelo ex-Papa Bento XVI e o atual Papa Francisco, a fé amplia os espaços da alma humana, ilumina as relações entre os homens e mulheres e alarga os horizontes da história. Faz-nos superar qualquer apego aos bens materiais e às formulações político-econômicas, à tendência de cristalização histórica, conduzindo-nos à cidade de Deus, “uma cidade construída sobre relações onde o amor de Deus é o fundamento”. De fato,”a luz da fé” – diz ainda o documento – “põe-se ao serviço concreto da justiça, do direito e da apz” (LF, nº 51). É assim que, seguindo as diretrizes básicas do Concílio Ecumênico Vaticano II, a fé se torna “uma luz para iluminar todos os relacionamentos sociais” (LF, nº 54).
O amor do misterioso Hóspede, porém, bem como a fé n’Ele, longe de pairar indiferentemente sobre os embates da trajetória humana sobre a terra, encarna-se concretamente nela. Respeitando a liberdade dos homens e mulheres, age nas coordenadas da história, “ilumina o caminho do futuro, e faz crescer em nós as asas da esperança para percorrê-lo com alegria”. (LF, nº 6). Enquanto a cultura contemporânea tende a isolar e fragmentar as diversas dimensões do ser humano, “o amor de Deus, ao invès, unifica todos os elementos da nossa pessoa, tornando-se uma luz nova em direção a uma vida grande e plena” (LF, nº 27). Com os óculos da fé, “o olhar oferece uma visão ple de todo o percurso, permitindo situar-se no grande projeto de Deus” (LF, nº 29). Além de visitar e iluminar a alma humana e a casa onde vivemos, o misterioso Hóspede faz brilhar e resplandecer sua face sobre a cidade como símbolo da obra humana, reveste-a de graça e luz, como também a toda a sociedade eo conjunto da humanidade.
Mesmo diante do sofrimento pessoal e coletivo, que permanece um mistério, “a fé ajuda a tornar mais solidárias as relações entre os seres humanos”. Quando vivido em sintonia com a paixão e morte de Cristo na cruz, o sofrimento pode inclusive “ser uma etapa de crescimento da fé e do amor” (LF, nº 55-56). É nessa perspectiva que, não raro, “aqueles que sofrem tornam-se como que mediadores de luz”, pois “é na debilidade e no sofrimento que emerge e se descobre a força de Deus”, como afirma o apóstolo Paulo (LF, nº 56-57). Convém, entretanto, não despertar expectativas falsas. Tanto no sofrimento em particular quanto na vida em geral, a fé não pode reduzir-se a magia. Nas palavras conclusivas da nova encíclica, “a fé não é luz que dissipa todas as nosas trevas, mas lâmpada que guia na noite os nossos passos, e isso basta para o caminho. Ao homem que sofre, Deus não oferece uma razão que explique tudo, mas oferece a sua resposta na forma de uma presença que acompanha, de uma história de bem que se une a cada história de sofrimento para abrie, nesta, um raio de luz” (LF, nº 57).
Da mesma forma que os hóspedes de todos os tempos, em especial os épicos Ulisses e Enéias, por exemplo, mas também os migrantes, o Hóspede misterioso poderá ou não encontrar a porta aberta e a mesa farta, se assim o permitirmos. Diferentemente deles, porém, logo se transforma em anfitrião. Como no episódio dos discípulos de Emaús (Lc 24, 13-35), mesmo sendo o convidado, é Ele que acaba oferecendo pão e salvação, após dar graças ao Pai e abençoar o alimento. Se confrontarmos esse episódio com o chamado Juízo Final (Mt 25, 31-46), veremos que “todas as vezes que vocês fizeram isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizeram”. Abre-se então uma possibilidade nova e extraordinária. Os protagonistas do texto citado – o faminto, o sedento, o estrangeiro, o desnudo, o doente e o prisioneiro – se e quando aceitos em casa e à mesa, também podem converter-se de hóspedes em anfitriões. A imensa multidão dos “sem” tem algo a nos oferecer, desde que estejamos dispostos a abrir-lhe a porta!
Anfitriões que nos enriquecem com o intercâmbio de valores culturais e religiosos diferentes, nem melhores nem piores em princípio, apenas diferentes. Eis a grande novidade: o convite a passar do multiculturalismo ao interculturalismo. O que significa o desafio intepelador de superar a mera tolerância ou pacífica convivência pelo confronto e o diálogo, num movimento circular, em espiral crescente, que favorece o crescimento recíproco, além de uma recíproca depuração ou purificação. No mundo da economia globalizada, também os migrantes circulam por toda a parte, não obstante os muros (visíveis e invisíveis) e as leis cada vez mais rígidas. A exemplo do Hóspede misterioso, batem à porta, e podem ser portadores de luz e bondade, conforto e paz. Constituem muitas vezes um verdadeiro potencial de sangue novo e de oxigênio primaveril em não poucas sociedades que, lenta mas irremediavelmente, se encaminham para o declínio.
MITOS E FATOS DA MIGRAÇÃO
Pe.Alfredo Gonçalves
O primeiro mito é aquele que vincula de forma erroneamente estreita migração e criminalidade. Um olhar sobre os Meios de Comunicação Social e a mídia em geral, ainda que a voo de pássaro, tropeçará a todo momento com expressões que procuram definir os migrantes como clandestinos, irregulares, ilegítimos, extra-comunitários, negros, estranhos, entre outras. Tais termos, atribuídos com frequência e ligeireza a quem migra, carregam, por si só, fortemente as tintas da criminalização.
É como se indicassem alguém que se encontra fora da normalidade; pior ainda, que deve acomodar-se ou ser banido do meio social. Acontecimentos como os atentados de 11 de setembro de 2001 só fazem reforçar essa tonalidade discriminatória.
Nesta perspectiva, muitas vezes as notícias ligadas ao narcotráfico ou ao tráfico de pessoas encontram-se mescladas e confundidas com aquelas que se referem às pessoas que simplesmente buscam trabalho e futuro em outra região ou país.
Nem precisaria lembrar que, em qualquer noticiário – televisão, jornal ou rádio – o agrupamento por blocos ou temas nunca é neutro. Um exemplo típico é o da violência explícita: ou seja, quando um crime é praticado por um migrante, esta circunstância é colocada em relevo, sublinhando-se em geral sua origem, coisa que não ocorre nos demais casos.
Longe de ser um crimoso, o migrante deixa sua terra ou pátria para escapar a algum tipo de violência: econômica, social, política, cultural, religiosa… Por isso, é antes um peregrino da paz que, rompendo fronteiras, se converte em protagonista de novos laços.
Proporciona o encontro e intercâmbio de expressões e valores interculturais. Amplia o conceito de pátria, aumenta as oportunidades que a vida oferece, potencia novas formas de desenvolvimento. De fato, encontro de pessoas, povos e nações não apenas soma, mas multiplica as energias em jogo.
Um segundo mito mostra o fenômeno migratório sobre o pano ideológico da segurança nacional. Este modo de ver remonta aos tempos da guerra fria e do uso desta tanto para o controle das fronteiras quanto para a repressão interna.
Apesar da guerra fria já fazer parte do passado, tratar os migrantes nessa ótica conduz facilmente a confrontos bem quentes com as autoridades policiais, onde as lágrimas e o sangue derramados não são nada frios. Em outros termos, migração deixa de ser um fenômeno socioeconômico e político-social, para converter-se em caso de polícia.
Sob semelhante visão o migrante, pelo fato mesmo de sê-lo, é visto como delinquente. Ambos os mitos se entrelaçam: quem ousa migrar perturba a paz, provoca distúrbios e requer a presença da polícia. Torna-se indesejado: simultaneamente dispensável e indispensável. Indispensável para os trabalhos mais sujos, pesados e mal remunerados; dispensável, como trabalhador com todos os seus direitos.
Ao mesmo tempo que se lhe abre a porta dos fundos, fecha-se a porta da frente. Vira um cidadão de segunda classe, aceito e rechaçado. Discriminação, preconceito e racismo fazem parte deste panorama negativo.
Em lugar da ideologia da segurança nacional como pretexto para frear o vaivém dos migrantes, convém reconhecer que o direito de ir e vir cria pontes, estabelece relações, elimina distâncias. Isso não significa esconder as tensões sob um falso verniz, mas buscar superá-las através da escuta, do diálogo e da mútua compreensão.
As diferenças, quando colocadas frente a frente, enriquecem. O desafio está no salto qualitativo do multiculturalismo ao interculturalismo. Enquanto no primeiro caso basta a tolerância e a boa vizihança, no segundo dá-se um passo além, exigindo o confronto e a purificação recíproca e crescente das diversas culturas.
Em terceiro lugar, um novo mito, que decorre do anterior, se dá quando o migrante (outro/diferente) se torna bode expiatório dos problemas sociais. Infelizmente, a história tem sido pródiga em apontar tais bodes expiatórios, em vista de cada época ou localidade. Alguns são bem conhecidos: hereges, feiticeiras, loucos, trabalhadores-vagabundos, judeus, extra-comunitários, comunistas ou anticomunistas, negros, indígenas, mendigos…
Seria o caso de colocar aspas em cada um desses grupos? Talvez o próprio fato de utilizar o recurso das aspas seja uma forma de reforçar o preconceito. Atrás das aspas pode ocultar-se uma maneira de construir e definir a identidade do outro não por aquilo que ele é, e sim por aquilo que não é, ou que nós gostaríamos que fosse. Há muito encontra-se morto e sepultado o mito da neutralidade lingusística, da escolha das palavras e dos acontecimentos a serem narrados.
Todo bode expiatório é de antemão culpado. A culpa precede qualquer possibilidade de julgamento. Entrelaçam-se, mais uma vez, todos os mitos. Encontrado o culpado, vem a setença e o expurgo, o linchamento público e até a própria morte. Quando o dedo em riste, as acusações e as pedras recaem sobre alguém que veio de fora, poupa-se um dos nossos. Mais ainda, reforça-se a coesão interna. Voltando às lições da história, a guerra contra um inimigo exterior (não importa se verdadeiro ou fabricado), costuma ser uma arma para manter o poder dos tiranos sobre seus súditos.
Ao invés de bode expiatório, ou seja de um problema, a presença do migrante pode ser uma interpelação que alarga o horizonte de toda a humanidade. Esta se torna mais rica, plural, aberta e multiétnica. Para as autoridades, o migrante é não raro um caso de polícia, que pertuba a ordem estabelecida; para a opinião pública e a mídia, pode ser um intruso que vem roubar o trabalho e o pão; porém, do ponto de vista evangélico ou dos direitos humanos, torna-se um potencial de enriquecimento recíproco.
Por fim, o mito do nacionalismo que vê um migrante como cidadão exclusivo e excludente de determinado país, ou então como um crente fanatizado de um determinado credo religioso. Visão redutiva e xenofóbica, provinciana e chauvinista. Talvez muito frequente nas migrações de séculos passados, onde religião e nacionalidade costumavam nutrir-se uma à outra. Não poucas nações, historicamente falando, assumiram o papel de portadoras da salvação, da democracia, ou do comunismo internacional, como se tivessem de cumprir uma missão especial frente ao mundo caótico e selvagem. Tempo da união promíscua entre trono e altar, espada e cruz, rei e sacerdote, templo e palácio.
Em tais circunstâncias, a migração costumava cristalizar um determinado estágio das expressões culturais e religiosas. A raiz arrancada do solo deixa de evoluir organicamente, restringido-se a reproduzir indefinidamente o que acumulou. Em termos concretos, muitas comunidades migrantes continuam repetindo ritos, devoções e canções que, no país de origem, seus conterrâneos já ultrapassaram, superando-os e substituindo-os por outros. Fundamentalismo religioso e totalitarismo político costumam ser os frutos nocivos de tais visões estreitas e ideológicas, com um rasto trágico e macabro de fogueiras, ruínas e cadáveres. Nestes casos, os deuses ou anjos podem converter-se em demônios.
O ato de migrar, e de fazê-lo várias vezes e em diversas direções, rompe todo tipo de barreiras, abrindo espaço para outras histórias e destinos, outras pessoas e grupos, outras línguas e nações e outros modos de viver e de pensar. Movimentos migratórios, estudo de idiomas diferentes e intercâmbio cultural ajudam a expandir o leque da compreensão humana, sinalizando o horizonte da aldeia global ou da cidadania universal, de resto, num contexto de economia globalizada.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
PAPA FRANCISCO EM LAMPEDUSA
Pe.Alfredo Gonçalves
O primeiro mito é aquele que vincula de forma erroneamente estreita migração e criminalidade. Um olhar sobre os Meios de Comunicação Social e a mídia em geral, ainda que a voo de pássaro, tropeçará a todo momento com expressões que procuram definir os migrantes como clandestinos, irregulares, ilegítimos, extra-comunitários, negros, estranhos, entre outras. Tais termos, atribuídos com frequência e ligeireza a quem migra, carregam, por si só, fortemente as tintas da criminalização.
É como se indicassem alguém que se encontra fora da normalidade; pior ainda, que deve acomodar-se ou ser banido do meio social. Acontecimentos como os atentados de 11 de setembro de 2001 só fazem reforçar essa tonalidade discriminatória.
Nesta perspectiva, muitas vezes as notícias ligadas ao narcotráfico ou ao tráfico de pessoas encontram-se mescladas e confundidas com aquelas que se referem às pessoas que simplesmente buscam trabalho e futuro em outra região ou país.
Nem precisaria lembrar que, em qualquer noticiário – televisão, jornal ou rádio – o agrupamento por blocos ou temas nunca é neutro. Um exemplo típico é o da violência explícita: ou seja, quando um crime é praticado por um migrante, esta circunstância é colocada em relevo, sublinhando-se em geral sua origem, coisa que não ocorre nos demais casos.
Longe de ser um crimoso, o migrante deixa sua terra ou pátria para escapar a algum tipo de violência: econômica, social, política, cultural, religiosa… Por isso, é antes um peregrino da paz que, rompendo fronteiras, se converte em protagonista de novos laços.
Proporciona o encontro e intercâmbio de expressões e valores interculturais. Amplia o conceito de pátria, aumenta as oportunidades que a vida oferece, potencia novas formas de desenvolvimento. De fato, encontro de pessoas, povos e nações não apenas soma, mas multiplica as energias em jogo.
Um segundo mito mostra o fenômeno migratório sobre o pano ideológico da segurança nacional. Este modo de ver remonta aos tempos da guerra fria e do uso desta tanto para o controle das fronteiras quanto para a repressão interna.
Apesar da guerra fria já fazer parte do passado, tratar os migrantes nessa ótica conduz facilmente a confrontos bem quentes com as autoridades policiais, onde as lágrimas e o sangue derramados não são nada frios. Em outros termos, migração deixa de ser um fenômeno socioeconômico e político-social, para converter-se em caso de polícia.
Sob semelhante visão o migrante, pelo fato mesmo de sê-lo, é visto como delinquente. Ambos os mitos se entrelaçam: quem ousa migrar perturba a paz, provoca distúrbios e requer a presença da polícia. Torna-se indesejado: simultaneamente dispensável e indispensável. Indispensável para os trabalhos mais sujos, pesados e mal remunerados; dispensável, como trabalhador com todos os seus direitos.
Ao mesmo tempo que se lhe abre a porta dos fundos, fecha-se a porta da frente. Vira um cidadão de segunda classe, aceito e rechaçado. Discriminação, preconceito e racismo fazem parte deste panorama negativo.
Em lugar da ideologia da segurança nacional como pretexto para frear o vaivém dos migrantes, convém reconhecer que o direito de ir e vir cria pontes, estabelece relações, elimina distâncias. Isso não significa esconder as tensões sob um falso verniz, mas buscar superá-las através da escuta, do diálogo e da mútua compreensão.
As diferenças, quando colocadas frente a frente, enriquecem. O desafio está no salto qualitativo do multiculturalismo ao interculturalismo. Enquanto no primeiro caso basta a tolerância e a boa vizihança, no segundo dá-se um passo além, exigindo o confronto e a purificação recíproca e crescente das diversas culturas.
Em terceiro lugar, um novo mito, que decorre do anterior, se dá quando o migrante (outro/diferente) se torna bode expiatório dos problemas sociais. Infelizmente, a história tem sido pródiga em apontar tais bodes expiatórios, em vista de cada época ou localidade. Alguns são bem conhecidos: hereges, feiticeiras, loucos, trabalhadores-vagabundos, judeus, extra-comunitários, comunistas ou anticomunistas, negros, indígenas, mendigos…
Seria o caso de colocar aspas em cada um desses grupos? Talvez o próprio fato de utilizar o recurso das aspas seja uma forma de reforçar o preconceito. Atrás das aspas pode ocultar-se uma maneira de construir e definir a identidade do outro não por aquilo que ele é, e sim por aquilo que não é, ou que nós gostaríamos que fosse. Há muito encontra-se morto e sepultado o mito da neutralidade lingusística, da escolha das palavras e dos acontecimentos a serem narrados.
Todo bode expiatório é de antemão culpado. A culpa precede qualquer possibilidade de julgamento. Entrelaçam-se, mais uma vez, todos os mitos. Encontrado o culpado, vem a setença e o expurgo, o linchamento público e até a própria morte. Quando o dedo em riste, as acusações e as pedras recaem sobre alguém que veio de fora, poupa-se um dos nossos. Mais ainda, reforça-se a coesão interna. Voltando às lições da história, a guerra contra um inimigo exterior (não importa se verdadeiro ou fabricado), costuma ser uma arma para manter o poder dos tiranos sobre seus súditos.
Ao invés de bode expiatório, ou seja de um problema, a presença do migrante pode ser uma interpelação que alarga o horizonte de toda a humanidade. Esta se torna mais rica, plural, aberta e multiétnica. Para as autoridades, o migrante é não raro um caso de polícia, que pertuba a ordem estabelecida; para a opinião pública e a mídia, pode ser um intruso que vem roubar o trabalho e o pão; porém, do ponto de vista evangélico ou dos direitos humanos, torna-se um potencial de enriquecimento recíproco.
Por fim, o mito do nacionalismo que vê um migrante como cidadão exclusivo e excludente de determinado país, ou então como um crente fanatizado de um determinado credo religioso. Visão redutiva e xenofóbica, provinciana e chauvinista. Talvez muito frequente nas migrações de séculos passados, onde religião e nacionalidade costumavam nutrir-se uma à outra. Não poucas nações, historicamente falando, assumiram o papel de portadoras da salvação, da democracia, ou do comunismo internacional, como se tivessem de cumprir uma missão especial frente ao mundo caótico e selvagem. Tempo da união promíscua entre trono e altar, espada e cruz, rei e sacerdote, templo e palácio.
Em tais circunstâncias, a migração costumava cristalizar um determinado estágio das expressões culturais e religiosas. A raiz arrancada do solo deixa de evoluir organicamente, restringido-se a reproduzir indefinidamente o que acumulou. Em termos concretos, muitas comunidades migrantes continuam repetindo ritos, devoções e canções que, no país de origem, seus conterrâneos já ultrapassaram, superando-os e substituindo-os por outros. Fundamentalismo religioso e totalitarismo político costumam ser os frutos nocivos de tais visões estreitas e ideológicas, com um rasto trágico e macabro de fogueiras, ruínas e cadáveres. Nestes casos, os deuses ou anjos podem converter-se em demônios.
O ato de migrar, e de fazê-lo várias vezes e em diversas direções, rompe todo tipo de barreiras, abrindo espaço para outras histórias e destinos, outras pessoas e grupos, outras línguas e nações e outros modos de viver e de pensar. Movimentos migratórios, estudo de idiomas diferentes e intercâmbio cultural ajudam a expandir o leque da compreensão humana, sinalizando o horizonte da aldeia global ou da cidadania universal, de resto, num contexto de economia globalizada.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
PAPA FRANCISCO EM LAMPEDUSA
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
A ilha de
Lampedusa, no sul da Itália, representa uma espécie de porta de entrada para os
imigrantes que chegam do norte da África. As tensões, conflitos e contradições
da chamada Primavera Árabe, por um lado, e a pobreza secular, por outro,
continuam atraindo milhares de pessoas ao velho continente europeu. Refugiados,
imigrantes socioeconômicos, jovens em busca de um futuro mais promissor...
Todos ali se encontram, numa tentativa de encontrar o camino para uma vida
melhor.
Há pouco, as
autoridades italianas responsáveis pela imigração foram acusadas pela Alemanha
de encaminhar centenas de imigrantes a Hamburgo. A verdade é que o fluxo sobre
Lampedusa continua a crescer, apesar da crise política e econômica na Itália e
por conta dos problemas ao norte do continente africano. A Península italiana
se torna, ao mesmo tempo, país de destino, de trânsito, mas também de origem.
Paralela à chega dos africanos, milhares de jovens italianos, muitos com diploma
nas mãos, deixam a península em direção aos Estados Unidos, Alemanha,
Inglaterra e outros lugares.
Convém sublinhar
que Lampedusa, em meio ao mar Mediterrâneo, representa para os que pretendem
entrar na Europa o que as ilhas do Caribe e o México representam para os que se
dirigem aos Estados Unidos; ou o que a Turquia juntamente com os países do
leste europeu representam para a chamada migração leste-oeste. Também este
fluxo, originário dos territórios da antiga União Soviética e dos países
asiáticos em direção à Europa, prossegue de forma mais ou menos intensa e
complexa.
O mais trágico é
que, nessas difíceis travessias, não são poucos os que perdem a vida nas águas
do Mediterrâneo ou do mar caribenho, bem como na fronteira desértica entre
México e Estados Unidos ou nos demais pontos críticos que unem (ou dividem?) a
Europa da Ásia e da África. Mesmo sem contar os que se perdem para sempre, as
estatíscas falam de milhares de pessoas que não conseguem alcançar a outra
margem da “prosperidade”. Grande parte delas exploradas até o último centavo pelos
intermediários (coyotes); cidadãos sem nome, sem rosto, sen enderenço, sem
família, sem pátria... Sem identidade!
Porém, como
salientava o então Papa Benedito VI, na sua mensagem para a Jornada Mundial do Migrante
e do Refugiado, em janeiro de 2013, “milhões de pessoas estão envolvidas no
fenômeno das migrações, mas essas não são números! São homens e mulheres,
meninos, jovens e anciãos que buscam um lugar onde viver em paz”. Rompem
barreiras, enfrentam os mais insólitos obstáculos, deixam pelo caminho seus
mártires para escapar à pobreza, à miséria e à fome; para vencer o preconceito,
a discriminação e a xenofobia; ou para superar as divisões político-ideológicas
e as tiranias, que não admitem qualquer tipo de oposição ao “pensamento único”.
Seguindo a
solicitude pastoral da Doutrina Social da Igreja (DSI) e o pensamento de seus
antecessores, o Papa Francisco faz uma visita a Lampedusa. Não, não se trata da
presença de um chefe de estado com toda sua comitiva. Tampouco se trata de um
jogo de cena para os microfones, os holofotes e as câmeras. O que se vê é a
compaixão de um pastor pelas “multidões cansadas e abatidas, como ovelhas sem
pastor” (Mt 9,35-38), o qual sente a necessidade de fazer uma homenagem, um
réquiem, aos imigrantes anônimos que perderam a vida antes mesmo de por os pés
na ilha italiana. Tiveram seus sonhos ceifados no meio da travessia, como
tantos outros pelas estradas do êxodo.
Gesto que reaviva e
rejuvenesce não só as linhas básicas da DSI, mas também as intuições do
Concílio Ecumênico Vaticano II. Este renovou o conceito de Igreja – Povo de
Deus em peregrinação missonária pela face da terra – e a própria litúrgia –
celebração viva e vibrante, em comunhão e sintonia com o cotidiano do povo. Mas
o Papa, de forma particular, torna bem presentes as primeiras palavras da Gaudium et Spes, Constituição Patoral
sobre a Igreja no Mundo de Hoje: “as alegrias e esperanças, as tristezas e as
angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem,
são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e angústias dos discípulos
de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre
eco no seu coração” (GS, nº 1). Eco ilustrativo da passagem bíblica onde o
autor coloca na boca de Deus quatro verbos de grande atenção, sensibilidade e
proximidade para com a situação concreta do povo escravo no Egito: “eu vi a miséria... eu ouvi o clamor... eu conheço
o sofrimento... ei desci para
libertar...” (Ex 3,7-10).
O gesto do Papa,
por outro lado, atualiza e fortalece a “opção preferencial pelos pobres”,
núcleo central da teologia da libertação (TdL). Reflexão teológico-crítica a
partir da prática dos cristãos nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e nas
Pastorais Sociais, a TdL se deixa iluminar e ao mesmo tempo ilumina aqueles que
descem aos porões da sociedade, que se deslocam aos grotões masi longínquos e
atuam nas periferias do poder e da riqueza. Entre a teologia e a práxis cristã
cria-se um círculo virtuoso em espiral progressiva, onde as duas dimensões se
enriquecem reciprocamente. É o que se chama de círculo hemêneutico, pelo qual a Palavra de Deus traz luz sobre determinada
realidade socio-histórica e esta, quando refletida à luz daquela, por sua vez
aprofunda a leitura dos textos bíblicos, num mútuo entrelaçamento que, uma vez
mais, enriquece a ambas de forma crescente.
“Come vorrei un Chiesa povera per i
poveri, i ultimi, i piccoli… (Como
gostaria de uma Igreja pobre para os pobres, os últimos, os pequenos...”, disse
o Papa Francisco logo após a eleição, numa coletiva de imprensa. A visita a
Lampedusa, se já não bastassem suas atitudes anteriores, sem dúvida o coloca decisivamente
nessa direção. Desta vez com uma atenção especial ao mundo da mobilidade
humana, aos migrantes de todo o mundo. Deixa no ar, ao mesmo tempo, uma
interpelação silenciosa, e por isso mesmo mais eloquente, a todos nós
missionários scalabrinianos. Um pastor que, a exemplo de Jesus, nos chama a
caminhar em direção a Deus e em direção aos più
bisognosi (mais necessitados).
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
A vida é melodia. Melodia
de notas múltiplas e complementares. Basta “ouvir” o ritmo e a voz inaudível
dos astros e das galáxias em suas órbitas, movimentando-se há bilhões de anos;
ou sentir o brilho pontual e infalível do sol, da luz, das estrelas ou a rota
dos planetas. Contemplar a infinitude dos oceanos, do universo, da luz e da
escuridão, como também a altura dos picos mais elevados, brancos de neve, ou as
planíceis viçosas e verdejantes. “Ouvir” o som das florestas que se renovam
continua e periodicamente nos montes e vales, as sementes que geram novas
plantas, os botões que se abrem em flor e se convertem em futos. Ouvir (agora
sem aspas) a alegria das crianças quando jogam, pulam e brincam, o canto dos pássaros
em suas acrobacias matutinas ou vespertinas, o murmúrio das águas que rolam
sobre as pedras dos rios, o assobio do vento em meio às árvores e montanhas.
Cada criatura, por maior ou menor que seja, orgânica ou inorgânica, tem seu
lugar e sua voz única na colossal orquestra da criação.
Do ponto de vista
humano, porém, a melodia não vem somente de fora. Ela se faz ouvir nas
entranhas mais profundas de cada ser humano que se abre à própria voz interior.
Esta, quando em sintonia com o ritmo universal da criação, se harmoniza com o
toque de toda a gigantesca orquestra. O pulsar do coração e os “gemidos do
espírito” constituem a contribuição humana na grande sinfonia de toda a
biodiversidade em festa. Nesta perspectiva, cada pessoa representa um
instrumento único, com sua nota irrepetível e insubstituível. A melodia somente
se torna perfeita quando cada instrumento toca em harmonia com os demais,
conferindo significado ao conjunto de toda a orquestra.
Infelizmente, ao
longo da história, inúmeros ruídos tomam o lugar das notas melodiosas. Não raro
a sinfonia converte-se em cacofonia. Esta se manifesta em dupla dimensão: por
um lado, os ruídos que nos chegam do exterior. Rumoes macro-ecológicos
(poluição do meio ambiente, agressão à natureza, aquecimento global,
desertificação...), socioenonômicos (concentração e exclusão social, injustiça
e desigualdade...) e político-culturais (tirania, corrupção, discriminação,
preconceito, xenofobia...). Daí as tensões, conflitos, guerra e todo tipo de
violência, inflingida tanto à natueza quando ao outro, diferente, estrangeiro.
Por outro lado,
existem os ruídos que vêm de dentro e que tumultuam o coração e a alma humana.
Desejos e paixões, medos e dúvidas, ódio e rancor, inveja e vingança, tristeza
e angústia, instintos e impulsos – sentimentos e emoções que envenenam não
somente o bem estar interior de cada pessoa, mas também as relações
interpessoais e comunitárias, sociais e políticas, bem como o intercâmbio
cultural entre povos, raças e nações. Ao invés de um diáogo hamonioso sobre os
valores, que poderia enriquecer reciprocamente a todos, instala-se o monólogo
de surdos, onde cada qual pretende impor sua própria ideologia. O
relacionamento consigo mesmo, com Deus e com os outros, em lugar de musical,
detorna-se rumoroso e agressivo.
Somente o silêncio,
a escuta e a reflexão podem reconverter a cacofonia em nova sinfonia. A
meditação, ao abrir-sesimultaneamente ao canto interior de si mesmo e à melodia
do universo, introduz uma espécie de alquimia que transforma os ruídos em notas
musicais. Não se trata de eliminar os ruídos da existência cotidiana e da
história. Eles fazem parte de nossa condição humana e nos acompanharão do berço
ao túmulo. O verdadeiro desafio é permitir que o Espírito de Deus posa revestir
tais ruídos com sua graça, isto é, abrir-se à conversão e à sua ação
purificadora sobre o pecado e o rumor. Eis o milagre da oração e da
contemplação: mesmo em meio a uma sociedade apelativa, permissiva e ruidosa,
sentir a melodia profunda e oculta da vida em plenitude. Deixar que Deus toque
as cordas mais íntimas da alma, redescobrindo o som mágico que embala todos os
seres no amor da cariação.
Semelhante
transfiguração dos ruídos em novas notas melodiosas, da cacofonia em nova
sinfonia, pressupõe a “oração nua”. Não apenas a oração litúrgica, comunitária
ou devocional, respectivamente acompanhadas de cantos, salmodias ou fórmulas
repetitivas. O que se requer é o encontro pessoal e único com Deus. Encontro
que, por sua vez, exige a humildade e a coragem de chamar os ruídos pelo própiro
nome, “pegar o touro pelos chifres”, digamos assim. Denominar é uma forma de
conhecer e dominar, controlar e transformar. Com efeito, quando adquirimos
consciência dos ruídos, internos ou externos que sejam, podemos melhor
administrá-los com ajuda da graça de Deus.
Falar dos ruídos
diante de Deus é uma forma de exorcizá-los, como nos ensina a própria
psicanálise. Não porque Deus os desconheça, ao contrário, “Ele está mais
próximo de nós que nós mesmos”, diria Santo Agostinho. Mas para que nós mesmos
possamos, mais a fundo, ter conhecimento daquilo que nos impede de ouvir a
melodia divina. A verdade é que os rumores e pecados jamais se calarão, porém,
conhecendo-os e tomando-os nas próprias mãos, aprendemos a “ouvir”, apesar
deles, a feliz sinfonia da vida. Os temores se convertem em alegria! Os
próprios ruídos, sob o olhar misericordioso de Deus, se convertem em melodia,
pois nos damos conta que “quando somos fracos é então que nos tornamos fortes”.
Sim, as feridas e
cicatrizes da fragilidade humana abrem espaço para a ação do Espírito, o qual,
irrompendo na história pessoal e coletiva, nos interpela à novidade de uma
constante recriação. Espírito que nos desinstala, “derruba os poderosos de seus
tronos”, abala e reduz a escombros toda e qualquer tirania, afinado os
instrumentos para inusitadas formas musicais. A melodia da nova criação somente
se faz sentir mediante as “dores de parto” de que nos fala o apóstolo Paulo na
Carta aos Romanos, capítulo 8. Numa palavra, a conversão dos ruídos em nova
melodia pressupõe renúncia aos próprios instintos, projetos e paixões, escuta
silenciosa da vontade de Deus, que é a música por excelência do Ser.
Pai Nosso do migrante
Pai
Nosso!...
Pai sem rosto, onde todos os rostos possam encontrar-se,
pai cuja casa não tem fronteira, pátria de cada povo ou
pessoa,
pai com coração de mãe, que nunca se cansa de procurar “a
ovelha perdida”.
Que estais no ceú!...
O céu que a custo buscamos nesta longa peregrinação
terrestre,
o céu onde cada migrante encontrará segurança, paz e
cidadania,
o céu que começa já aqui em baixo sobre as estrada do êxodo.
Santificado
seja o vosso nome!..
Nome sem palavras, mas feito só de amor e luz, bondade e
ternura,
nome além e acima de todos os nomes, razões e conceitos,
nome d’Aquele que disse ser “o caminho, a verdade e a
vida”.
Venha a nós
o vosso Reino!...
Reino onde cada um tem o sagrado direito de ir e vir,
mas também o direito de ser cidadão no seu país de origem,
reino que une a família e todas as famílias humanas.
Seja feita a
vossa vontade assim na terra como no céu!...
A vosa vontade é o projeto primordial da criação,
na riqueza do universo, do nosso planeta e da biodiversidade,
onde cada forma de ser mergulha as raízes no seu espaço
vital.
O pão nosso
de cada dia nos dai hoje!...
O pão justo para a dignidade humana do corpo e da alma,
sem desigualdade, nem injustiça, nem deslocamentos
forçados,
mas todos convidados à grande mesa de vosso banquete
eterno.
Perdoi as
nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos ofende!...
Jamais a escravidão por dívida no mundo da mobilidade
humana,
jamais o tráfico de pessoas para exploração trabalhista
ou sexual,
jamais os preconceitos, a discriminação, a xenofobia
diante do outro.
E não nos
deixeis cair em tentação!...
A grande tentação da riqueza, do poder e do saber,
a tentação de erguer muros entre pessoas e povos, raças e
nações,
Mas
livrai-nos do mal!... Amen!
O mal que faz tornar-se estrangeira outra língua ou
cultura,
o mal de esquecer que o encontro com o outro e com o
diferente
é o caminho para o encontro com o totalmente Outro, o
Transcendente.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, 18
giugno 2013
Dia da Mulher 08 de março
Bem aventurada a
mulher que cuida do próprio perfil interior e exterior, porque a harmonia da
pessoa faz mais bela a convivência humana.
Bem aventurada a
mulher que, ao lado do homem, exercita a própria insubstituível
responsabilidade na família, na sociedade, na história e no universo inteiro.
Bem aventurada a
mulher chamada a transmitir e a guardar a vida de maneira humilde e grande.
Bem aventurada quando nela e ao redor dela
acolhe, faz crescer e protege a vida.
Bem aventurada a mulher que põe a
inteligência, a sensibilidade e a cultura a serviço dela, aonde ela venha a ser
diminuída ou deturpada.
Bem aventurada a
mulher que, em seu caminho, encontra Cristo: escuta-O, acolhe-O, segue-O, como
tantas mulheres do evangelho, e se deixa iluminar por Ele na opção de vida.
Bem aventurada a mulher que, dia após dia, com
pequenos gestos, com palavras e atenções que nascem do coração, traça sendas de
esperança para a humanidade.
Bem aventura a mulher
que cuida e acolhe o migrante em suas culturas, suas lutas e aponta um
caminho...
Bem aventurada a
mulher migrante, que dentro de todas as mazelas da vida encontra forças para um
novo recomeço.
Bem aventura és tu,
que leva esta mensagem e tem a cada novo dia, atitudes digna de heroína e está
construindo um mundo melhor.
PARABÉNS!!!
FORMAS DE TRAFICO HUMANO NO BRASIL
Pe. Mário Geremia CS -Membro da Colegiada Executiva do SPM
A cada dia aumenta esta triste realidade ao ponto que já se transformou no terceiro maior negocio no mundo, perdendo apenas pela indústria bélica e pelo tráfico de drogas. A grande mídia até está levando ao ar para todo Brasil e até para o exterior através da novela “Salve Jorge” esta realidade que ajuda a todos tomarmos mais consciência desta ferida que não acaba de sangrar em que os jovens e as crianças são a maioria das vítimas.
Por ser um dos mais altos negócios, certamente estão envolvidas pessoas de todas as classes e profissões e justamente por isso é muito difícil combater e solucionar este problema. Outro motivo difícil de resolver é quando as pessoas “vítimas” envolvidas aceitam e aprovam este tipo de negocio de uma forma livre e consciente e muito mais difícil ainda é quando autoridades estão envolvidas no negócio. Temos aí então um quadro muito complexo, amplo e diversificado e que se estende no mundo todo, e em todas as dimensões. Portanto, não se trata apenas de uma problemática brasileira, mas mundial e que tem suas raízes com pessoas muito simples e humildes e provenientes de lugares bem concretos, que pode ser cidades pequenas no interior ou cidades grandes e capitais.
Faço memória que a Igreja há muito tempo vem enfrentando e trabalhando este tema e justamente no próximo ano vai lançar a campanha da Fraternidade nacional sobre este tema do tráfico humano. No Brasil podemos constatar quatro modalidades, ou formas de como esta realidade é desenvolvida através de uma rede nacional e internacional.
1-PESSOAS QUE SÃO ENGANADAS E TRAFICADAS PARA O EXTERIOR
Muitos jovens de ambos os sexos são facilmente iludidos e confundidos com propaganda enganosa prometendo bons salários, com emprego, casa, comida... e muitas vezes por pessoas até conhecidas e a,migas que estão a serviço do negociado. Chegando ao lugar de destino são simplesmente obrigadas a trabalharem em regime de cárcere domiciliar e através de pressões de todo tipo são obrigadas a trabalhar naquilo que lhe é imposto pelos patrões e chefes. Nesta modalidade o trabalho pode ser através da venda do próprio corpo ou da mão de obra explorada em vários serviços. No Brasil a maior exploração neste sentido se dá no setor da confecção com imigrantes da América Latina e da África
Temos também muitas crianças desaparecidas no Brasil que provavelmente foram vítimas destas máfias para a venda de órgãos que também representa um alto negocio para os traficantes e esta situação representa o extremo da maldade e da falta de humanidade para com o ser humano.
2-PESSOAS QUE SÃO ENGANADAS E TRAFICADAS PARA O BRASIL
São também jovens e crianças que seguem o mesmo caminho que o anterior aonde só muda o endereço, mas que o processo é o mesmo e neste sentido tivemos vários casos de pessoas sendo exploradas nos ambientes de trabalho que conseguiram fugir e fazer a denuncia para a Pastoral e a Casa do Migrante. Tivemos vítimas de exploração laboral e sexual.
3-PESSOAS ABANDONADAS NO BRASIL QUE NÃO CHEGARAM AO DESTINO.
Nesta modalidade atualmente se repetem e aumenta o número de pessoas que simplesmente chagam até a pastoral ou em que a casa do migrante é comunicado que existem pessoas de outros países abandonadas em rodoviárias, aeroportos, portos e até em certos bairros que já pagaram sua viagem para chegar, por exemplo, aos EUA ou ao Canadá e estão apenas na metade ou no início do caminho.
4-PESSOAS QUE USAM O NOSSO PAÍS COMO CONEXÃO PARA OUTROS
É muito comum também esta forma de atuar devido à facilidade de documentação e de movimentação dentro dos aeroportos, portos e rodoviárias. Provavelmente neste tipo de negocio as companhias aéreas estão envolvidas e autoridades que trabalham nestes ambientes. Diante desta triste realidade temos que nos unir. Sociedade civil, governos e autoridades para enfrentar e combater esta situação através de CAMPANHAS DE PREVENÇÃO; DENUNCIAS DE SITUAÇÕES; PUNIÇÃO DOS RESPONSÁVEIS; PROTEÇÃO ÀS VÍTIMAS E SUA REINSERÇÃO SOCIAL. Todos podemos fazer algo e devemos fazer destro de nossas possibilidades e de forma urgente.
Reflexão
Ouvi uma frase que tem me feito refletir...
“Enquanto ouver um restinho de luz eu sigo andando...”
2012 está deixando a sua luz se apagar, nele deixamos muitas
lembranças, trabalhos, projetos...
A luz que há 365 dias
brilhou forte e imponente, agora cede lugar a outros números, a outras
oportunidades.
Ficamos com as lembranças daquilo que neste ano somou na
nossa caminhada humana, agora chega até nós um convite para viver um novo
recomeço, recomeçar com os pés no chão e sonhos na cabeça. Construir mais, viver
mais, construir pontes onde possamos caminhar, lado a lado, nem na frente, nem
atrás. No companheirismo, na ação da construção de um mundo melhor. Somos este novo
numero, somos a estações do ano, somos as datas que a cada dia recomeça, e e
nosso o dever de construir e viver da forma mais humana, no bem viver.
E em cada nova oportunidade que teremos, sabemos o que
queremos?? O que esperamos?
Façamos desta virada 365 dias de um mundo melhor, começa por
mim, começa por você, façamos de nós a
parte principal da mudança, seja melhor, viva melhor, haja melhor.
Não espere que a mudança aconteça, se você não mudar. O
primeiro passo deve ser dado a partir do seu coração, deixe a vida que existe
dentro de você agir pelo seu corpo, ame, sorria, abrace, viva, seja feliz, faça
feliz!!!
Enquanto houver um restinho de luz, siga andando e se
inspire no sorriso sincero das crianças, no afago de uma carência, na
humanidade que implora atenção, no gesto humilde da mãe que ainda oferece seu
colo.
Almejando mudanças,
começamos nos gestos simples, no sorriso franco, Abrindo mentes e corações, que
amam e vivem aí dentro de você!!! Comece agora, comece já!!!! Feliz ano novo!!!
Lucia B. Valentim
lbag7@hotmail.com
Curitiba - Pr
PELOS FRUTOS SE CONHECE A ÁRVORE...
Indagações a partir de episódios recentes ou em curso
Alder Júlio Ferreira Calado
Nossa vida social segue sendo uma complexa malha, tecida de fatos, situações, acontecimentos, em profusão, do âmbito internacional ao local, a nos desafiar, incessantemente. Complexidade que pode assemelhar-se às manifestações de uma enorme biodiversidade, inclusive de árvores de todo tipo, e podendo servir para os mais distintos fins. Em semelhante clima, são consideráveis as chances de confusão, com graves consequências. Diante de cenários protagonizados por forças antagônicas, há quem interesse “vender” veneno como se fora remédio... Importa ter critérios que balizem as escolhas. Não é a sedutora embalagem do “remédio”, a ser tomada como critério de verdade; mas, antes, a qualidade do fruto dessa ou daquela árvore...
Num exacerbado contexto de enfrentamento de projetos antagônicos de sociedade, importa manter-nos atentos às astúcias dos setores dominantes, para quem deve prevalecer a insânia dos argumentos de força, a sobrepujar a arma da crítica: aqui abundam os casos ilustrativos, recentes e menos recentes (a exemplo do massacre do Afeganistão, do Iraque, da “libertação” da Líbia, das esdrúxulas relações Israel-Palestina, dentre tantos outros... Aqui a razão da força segue soberana. Mas, até quando?
Nos Estados Unidos e na Europa, regiões duramente impactadas pela crise devastadora, os respectivos governos, em aliança com o grande capital, seguem fazendo valer os interesses do Mercado, à revelia e contra imensas maiorias de Trabalhadores e Trabalhadoras em situação de desespero. Na Mãe-África, o conluio Estado e Mercado segue a infelicitar parcelas crescentes das populações, reféns das manobras e da exploração devastadora praticadas contra a Natureza e contra as maiorias daquelas Gentes, a verem suas riquezas cada vez mais depredadas pela avidez de lucro e dos necrófilos projetos das forças dominantes. Na América Latina e no Caribe, gemem territórios e populações, sob as patas do mesmo império. Até quando?
No âmbito nacional, não menos desafiadoras são a sucessão de ocorrências graves, de um lado, e, de outro, a forma de enfrenta-las. Quanto à interminável sucessão, podemos observar: crescente agressão ao Planeta (os famigerados megaprojetos, inclusive os relativos à Transposição de águas do rio São Francisco, as hidrelétricas, como a de Belo Monte, e usinas nucleares, os procedimentos deletérios do agronegócio); os crimes contra a vida dos povos do campo, indígenas, quilombolas, das águas e das florestas, das mulheres, dos jovens, das crianças e adolescentes; criminalização dos movimentos sociais populares, não realização de reformas estruturantes (reforma agrária, demarcação e regularização das terras indígenas e quilombolas...); remanescente trabalho escravo nos albores do século XXI, tráfico de pessoas, de armas e de drogas; crescente precarização das condições de trabalho; aviltamento dos valores republicanos; desproporcional interferência negativa da mídia comercial na grade de valores de imensas parcelas da população (já havendo quem a essa mídia se refira como “meios de manipulação de massa”); os inaceitáveis índices de desigualdade social... quanta coisa mais a ressaltar como meros exemplos ilustrativos! Por outro lado, cumpre sublinhar um risco grave e desafiante: o de nos contentarmos com atacar, uma por uma, tais ocorrências, ignorando ou subestimando o potencial de seu entrelaçamento, tornando, por isso mesmo, impossível superá-las por meio de ações isoladas, no varejo. Donde a necessidade e a urgência de despertar-nos para embates que tenham bem presente a raiz dos problemas, não tanto seus efeitos...
Felizmente, importa destacar, com maior força (no plano da resistência e da esperança), os sinais de vida que têm despontado, aqui e ali, desde as “correntezas subterrâneas”. E não me refiro apenas às belas iniciativas de resistência aos megaprojetos das grandes corporações, ao agronegócio, em breve, às iniciativas de resistência contra os “malfeitos” resultantes da velha parceria Mercado-Estado, a exemplo dos que culminaram no Julgamento da Ação Penal 470, há pouco encerrado. Evoco, sobretudo, as moleculares iniciativas de caráter propositivo ou prospectivo. Iniciativas quase imperceptíveis, justamente porque não se produzem sob os holofotes da mídia comercial, não fluem nas águas de superfície. Iniciativas que, tendo caráter ora mais expressamente econômico, ora mais diretamente político ou cultural, comportam, ao mesmo tempo, significativas interfaces políticos, culturais inovadoras.
No âmbito ecológico, por exemplo, quantas experiências fecundas em curso, nos assentamentos espalhados nas unidades de produção de agricultura familiar! Quanta inventividade na área científico-tecnológica, sobretudo quando abertas e em diálogo frutuoso com a cultura de nossos ancestrais! No próprio plano formativo, temos conhecimento de coletivos de jovens organizados em movimentos e em grupos de pesquisa, de estudo, de reflexão, a gestarem o novo, a longo prazo, mas começando desde já, amparados que se sentem nos bons clássicos (sem sucumbirem ao risco de tentarem copiá-los, mas, sim, de neles se inspirarem diante do enfrentamento exitoso de velhos e novos desafios), na memória dos nossos ancestrais, no legado de figuras de referência, no cultivo de uma mística revolucionária, alimentada reiteradamente pela Utopia de um novo mundo possível e necessário... Tampouco se dá por acaso que quase todas essas experiências se produzam à revelia, à margem ou mesmo contra os políticas governamentais em curso. Veja-se, por exemplo, o caso das fecundas iniciativas de convivência com o semiárido e a ação estatal...
Mas, aqui não se cogita de algum balanço. Nessas breves linhas, trago à tona apenas três episódios recentes, seguidos de algumas indagações que me faço e compartilho, como cidadão indignado e em luta, na companhia de tantos e tantas, por um novo mundo possível e necessário: a mais recente tragédia de dezenas de execuções de crianças e adultos, nos Estados Unidos; a alardeada e pomposa campanha de emagrecimento de uma estrela do futebol, promovida por uma grande rede de televisão brasileira e uma crônica emblemática da lavra de um parlamentar de referência, no atual cenário político brasileiro.
1. O massacre de 26 pessoas (das quais 20 crianças), nos Estados Unidos
Tragédias desse tipo, por mais impactantes que sejam – e o são! – já não constituem propriamente novidade. Vêm se sucedendo nos Estados Unidos, já há algum tempo. É só conferir na imprensa das últimas décadas. A mídia divulga com o costumeiro estardalhaço, depois a coisa é esquecida, até que... O noticiário das grandes agências detém-se nos detalhes de superfície. Quando muito, se convida uma psicóloga/um psicólogo para responder a perguntas quase sempre limitadas ao comportamento do executor. Algo que se centra fundamentalmente no caráter criminoso do indivíduo, com leve e insuficiente aceno a outras interfaces.
É claro que tudo isso também tem a ver com o perfil do indivíduo. Mas, também é certo que tal indivíduo não é bem uma ilha mal sucedida num suposto oceano de pureza... Em vão se procura entender tragédias desse tipo, centrando-se a atenção apenas ou principalmente nos indivíduos. Há um dinâmico entrelaçamento de fatores em jogo, a ser tomado na devida conta, dadas suas múltiplas conexões. Aqui, gostaria de propor alguns questionamentos a esse respeito.
- Antes desse trágico massacre de Newtown, em Connecticut, quantos outros sucederam, nas últimas décadas, com características parecidas?
- Considerando-se que não se trata de caso isolado, mas de uma sucessão de ocorrências desse tipo, será mesmo no indivíduo que devemos centrar o melhor de nossa atenção?
- A julgar pelo tipo e quantidade de armas e munição encontradas em posse do jovem executor, como explicar a enorme facilidade de obtenção, guarda e uso de armas – inclusive armas de grosso calibre – por qualquer cidad(ã)o?
- Que quantidade de armas e de munição pode-se calcular sob a guarda de cada cidadão, uma parte considerável desse pessoal com perfil semelhante ao do executor?
- Como afirmar que isto seja novidade para os setores governantes e estatais, mesmo sabendo da sucessão recente de casos semelhantes?
- Tendo em vista que a indústria e o comércio de armas e de drogas constituem os setores econômicos mais lucrativos, que lugar ocupam a indústria e o comércio de armas nos Estados Unidos (e no mundo), como forças altamente condicionantes (ou determinantes?) de suas respectivas políticas econômicas?
- Que papel tais setores desempenham na eleição de seus dirigentes, antes, durante e depois dos períodos eleitorais?
- Como dissociar tal critério de política econômica de sua obsessão de guerra e invasões pelo mundo afora?
2. A alardeada e vultosa campanha de emagrecimento de uma estrela do futebol brasileiro
A despeito da necessidade de se reconhecer como positivas algumas iniciativas de programas e campanhas pontuais, organizados pela mídia comercial, há de se convir em que, via de regra, suas iniciativas obedecem às regras e à lógica de Mercado, afinal quem é que financia a mídia comercial? Dentre tais redes de televisão, como é sabido, a Rede Globo ocupa lugar privilegiado. Basta lembrar a audiência de certas de suas “jóias”, a exemplo da poderosa máquina de imbecilização que é seu famigerado BBB...
Não bastassem os critérios que orientam seu noticiário, sua programação em geral, também algumas de suas campanhas assumem esse mesmo viés. Tudo se passa em meio a um enorme investimento extraordinário em convencimento ideológico. Para tornar palatáveis programas de grande potencial destrutivo – aqui situo, mais uma vez, talvez o pior de todos, o “Big Brother”... -, a Globo lança mão de astuciosos mecanismos de propaganda e publicidade, para tudo justificar, e justificar seu pretenso perfil de campeã em cidadania... É assim que patrocina campanhas como “Criança Esperança”, chamando a população para generosas contribuições. Eis que, em meio a toda essa “generosidade cidadã”, entende de promover uma campanha, no mínimo, intrigante: a de emagrecimento de uma bem sucedida figura do futebol brasileiro, tendo que arcar com uma fortuna...
A esse respeito, reputo elucidativo o instigante questionamento feito, numa mensagem socializada pelo Prof. José Ramos, nos seguintes termos:
“Sociedade hipócrita!!!!!!!!” E, a seguir, cenas protagonizaas pela estrela em questão, em sua vultosa campanha de emagrecimento. Cena seguida pela pergunta dirigida à produção da TV Globo: “Produção... deixa ver se eu entendi!!! A Globo paga pra emagrecer um gordo RICO?” Abaixo, outra cena relativa à Campanha “Criança Esperança”: “E me pede dinheiro para dar esperança a uma criança???” E, ao final: “Não é precisa explicar eu só queria entender!!!!!” (http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20121117161231AAwGwWT)
3. Crônica escrita pelo Senador Pedro Simon
Encontrada na internet com títulos às vezes distintos, também recebi do Prof. José Ramos, crônica escrita pelo Senador Pedro Simon, já há algum tempo atrás, mas guardando atualidade, conforme se pode ler também no endereço seguinte:
Nela encontramos uma bem tecida peça literária cujos fios procedem do chão do nosso atabalhoado cotidiano político-partidário. Aí se faz uma analogia do Congresso ao cotidiano de um elevador de um prédio - o edifício político. No oscilante elevador, e nas paradas em cada andar do prédio, sucedem-se ocorrências e ações dos mais diversos protagonistas do cenário político brasileiro.
Nela o autor joga bem e costura ardilosamente palavras geradoras: condomínio, condôminos, convenção, síndico, elevador, andares do prédio, térreo, andar de baixo, andares de cima, subsolo, fundo do poço, bloqueamento das portas do elevador, panes...
Retenho, em especial, sua perspectiva da necessidade de se mudar a convenção. Mas, aqui, surgem tantas dúvidas:
- A serviço de que(m) estão esses usuários do elevador ou, antes, esses inquilinos do prédio político?
- O fato de, aqui, ali, encontrarem-se algumas dessas pessoas (como exceção!) comprometidas com as multidões de representados, isto significa que o conjunto dos inquilinos fecha com os interesses da maioria dos representados?
- Por quem é feita a Convenção desse condomínio? Que chances efetivas tem quem não é usuário do elevador desse edifício político, de assegurar mudanças substantivas na/da dita Convenção?
- Em vez de seguir apostando no que já se sabe que não dá certo, não seria o caso de, de volta à população de base, investir na construção doutro instrumento de organização e de gestão, o que poderia desaguar em algo que não necessariamente um outro prédio?
João Pessoa, 18 de dezembro de 2012
Paraíba,
aqui o sol nasce primeiro, e tão desinibido...
( coletivo de formação SPM de 03 á 05 de dezembro)
Parece que ainda vejo a vida
trazida no sofrimento e na fadiga, colhida em meio os tantos dilemas que se
apresentam e retomam na seqüência de cada fração de vida, vida vivida que se
fortalece, se santifica, se move, corre e segue. Nas mãos de quem pede, dos
rostos que surgem, e se reprisam, onde a visão ocular não se percebe, mas que o
olhar missionário se aguça, se eleva e estende a mão.
Pareço sentir o pulsar do coração
partido do migrante que vai, na esperança de reconstruir, onde a dor se apresenta
interpelada pela ausência da pátria mãe, dos costumes e culturas. Vejo fugir
como lagrima a dor da saudade guardada no coração que prenuncia a luta da
caminhada.
Vê-se a esperança da partilha, no
equilíbrio das mentes que nas entre linhas convivem, seguem peregrinas, entre
luzes que se manifestam, nas frestas para se reencantar.
O pecado social se manifesta e por entre brechas,
nos fracassos que motivam para continuar, nos paradigmas da construção da vida
a mão estendida, no escutar do coração, na consciência de ser irmão, preservando
a vida motivada no mesmo chão.
E onde ainda houver um restinho
de luz a esperança se refaz, no tempo, na graça, na sabedoria de cada ser.
Bem viver, a partilha da coletividade,
a construção cultural, respeito a vida. Estar, ser e viver complementa a
riqueza desta região, onde a vida na diversidade de tons, razões, urgências se
apresenta e faz ecoar dentro do coração dos agentes missionários em missão.
Lucia B. Valentim
lbag7@hotmail.com
Curitiba - Pr
O Natal só tem sentido se aponta para a Ressurreição!
Reviver a experiência natalina é um convite a ver de novo os sinais da presença divina nas antigas imagens e cenários
Chega o mês de dezembro e com ele se aproxima a celebração de mais um natal e de mais um fim de ano. Nos dias do advento, tempo que antecede o natal, atravessamos espaços litúrgicos sempre em busca de um encontro renovado com Jesus de Nazaré.
Este período sempre traz consigo um convite para revisitarmos caminho e caminhada, perguntar como estamos e como chegamos a este instante da jornada. Talvez, alguns de nós estamos chegando como o casal de Emaús: Desgastados e desalentados da dura caminhada até aqui. Naquele mesmo dia, dois deles estavam indo para o povoado chamado Emaús, a onze quilômetros de Jerusalém. No caminho, conversavam a respeito de tudo o que havia acontecido. Enquanto conversavam a respeito de tudo, o próprio Jesus se aproximou e começou a caminhar com eles, mas os olhos deles foram impedidos de reconhecê-lo. (Lucas 24, 13-16)
Olhos cansados e desalentados são impedidos de ver, de reconhecer a presença de Jesus. Esta cena serve como um retrato das comunidades cristãs na época em que Lucas escreve seu Evangelho. Em nossos dias também cresce o número de pessoas que não acreditam mais em nada. Sem utopias e sem fé, muitas pessoas se encontram desiludidas com os problemas dentro das igrejas e na sociedade. Tudo isso faz crescer o medo, a violência e a falta de esperança no meio do povo.
O texto do caminho de Emaús tem inspirado não só a metodologia da leitura popular da Bíblia, mas toda a nossa espiritualidade. Nosso objetivo é conduzir o olhar não para o texto, mas para o caminho, para a vida e para os novos horizontes que se abrem a partir dela. Inspirados e inspiradas nesse texto, mais uma vez queremos convidar a todos nós que estamos na caminhada a levantar os olhos e reconhecer a presença do Menino que renasce. Reconhecê-lo no caminho a despeito de todos os sinais de violência, medo, dor e sofrimento. O natal só tem sentido se aponta para a páscoa da Ressurreição!
Reviver a experiência natalina é um convite a ver de novo os sinais da presença divina nas antigas imagens e cenários. Podemos, sob a inspiração do caminho de Emaús, olhar de novo a cena natalina e lá reconhecermos Jesus presente... na estrela que guia sempre no meio da noite escura... nos anjos que aparecem aos pastores e os fazem levantar e seguir em busca... no estábulo em sua tão rica humildade... no abraço de Maria e José diante do menino que mudou todo o curso e planos de suas vidas... e finalmente olhar e ver de novo o milagre de uma criança recém-nascida, pequena, vulnerável e frágil, mas, que traz consigo sinal de vida e esperança.
Com os olhos abertos e corações reaquecidos pela presença de Jesus contemplado na antiga cena natalina, tornemos a olhar ao nosso redor e olhemos outra vez a nosso cenário de vida e de luta! E quem sabe, como o casal de Emaús que voltou ao mesmo cenário onde seus olhos tinham contemplado apenas a morte, agora veremos algo novo, gente reunida declarando: “É verdade! O Senhor ressuscitou!” (v.33,34). É verdade, uma criança nasceu e nos faz renascer!
Gente reunida declarando que a vida venceu a morte, pequeno grupo que resiste, pois reconhece que Jesus vive e renasce sempre. Isso é natal! Jesus nascendo sempre de novo nesse mistério que envolve a vida. Que sejam assim nossos grupos, gente da leitura popular da Bíblia, gente reunida com a vida e a fé renovadas pela certeza de Jesus presente nascendo sempre de novo!
Adeodata, Odja e Luiz, Direção Nacional do CEBI
http://www.cebi.org.br
Scalabrini
e o Ano da Fé
“A fé é o maior dom de Deus” (Scalabrini)
Inspirados
pela abertura do Ano da Fé, pelo Sumo Pontífice Bento XVI, expressarei, no
decorrer desta explanação, alguns pensamentos acerca da Carta Apostólica
sobre o Ano da Fé juntamente com os pensamentos do bem-aventurado João
Batista Scalabrini, apóstolo dos migrantes.
Fé
do latim é traduzida por “fidere”, cujo significado indica ter
confiança, como resposta do homem ao chamamento de Deus. A fé é a fonte da
Vida Cristã. Na bíblia o vocabulário da fé tem duas ideias dominantes; Aman,
solidez, segurança e Batah, confiança.
Sendo
uma pessoa exemplar de muitas orações e confiança em Deus, Scalabrini
acreditava sem sombras de dúvidas que a fé é um dom de Deus, o primeiro e o
maior dos dons, que em sua infinita misericórdia nos concedeu. Ela é o início e
o fundamento da salvação humana, o eixo e a raiz de toda justificação... A
fé é um raio de luz, que se desprende do trono de Deus e desce para iluminar as
trevas, onde se encontram milhões de seres humanos sofrendo nas margens da
sociedade e fazendo erguer o homem decaído de sua dignidade, elevando-o até
chegar ao Criador. A fé é a resposta do homem ao chamado de Deus, sendo a fonte
da Vida Cristã. Pela fé o pensamento do homem passa do último grãozinho de
areia à imensidão do Ser incriado.
Sabedores
de que é na fé da comunidade cristã que cada um de nós recebeu o Batismo, na
carta apostólica PORTA FIDEI o Sumo Pontífice Bento XVI nos mostra
a perspectiva do Ano da Fé, sendo um convite para uma autêntica e
renovada conversão ao Senhor, único Salvador do mundo. O Pontífice deixa-nos
claro que a fé torna-nos fecundos, porque alarga o coração, que é capaz de
gerar: de fato, abre o coração e a mente dos ouvintes para acolherem o convite
do Senhor e aderirem à sua Palavra a fim de se tornarem seus discípulos (...).
Só acreditando é que a fé cresce e se revigora.
É na
graça da fé que o missionário e os religiosos, abandonam sua pátria, parentes,
amigos, honras, riquezas, atravessam difíceis fronteiras, oceanos e
horríveis desertos, e chegam em países bárbaros e cruéis para salvar
almas, ensinar as palavras de Cristo e se preciso for, pela sua fé, morrem como
um mártir. Os santos, pela fé, conquistaram o reino, são operadores de
justiça e são adeptos da Promessa.
A
exemplo de Scalabrini, que estava dotado de uma imensa confiança e
um terno amor para com a Virgem Santíssima e privilegiava
suas devoções para com os Santos, entendemos o seu pensamento: “A fé é
o princípio, o fundamento, a raiz de toda justificação, e por isso a fonte de toda
santidade; o justo vive da fé. Somente porque viveram da fé e conforme os
ditames da fé, os santos se tornaram tais, isto é, segundo os eternos desígnios
da multiforme graça de Deus. A fé é a graça que “diviniza” o ser humano,
inspirando a ascese, que eleva a existência quotidiana à união com Cristo”.
É bom que os racionalistas entendam que a fé é muito superior à razão, mas uma
não deve estar em contradição com a outra. O que é verdadeiro para uma, não
deve ser falso para a outra. Destarte nos lembra Scalabrini: A
fé e a razão são duas vertentes da única verdade, são dois raios da mesma
luz, duas irmãs que se dão as mãos. A fé, com as suas doutrinas, ilumina e
enobrece a razão. A razão, com suas justas pesquisas, coloca em evidência a verdade
da fé. Sendo que fé e razão devem andar juntas, acrescenta o Santo Padre: “A
fé é decidir estar com o Senhor para viver com Ele. E este ‘estar com Ele’
introduz-nos na compreensão das razões, pelas quais se acredita. A
fé, precisamente porque é um ato de liberdade, exige também assumir a responsabilidade
social daquilo, que se acredita.
Na homilia da Epifania em 1898 Scalabrini destacou com audácia a valor da fé
com as seguintes palavras: “Ela nos aproxima de Deus e nos descobre os
mistérios. Ela ilumina e sublima a nossa razão, enobrece nossos afetos, infunde
em nossa alma o bálsamo das celestes consolações, a coragem, a força para
sustentar as lutas da vida. Que seria o homem sem a fé? Sem ela, o homem nada
conhece do sobrenatural, nada sabe sobre a santidade, nada pode fazer de bem e
de virtuoso, que mereça o prêmio eterno; sem a fé o homem está perdido (...). É
a fé que nos indica todos os meios, nos faz ver todos os homens como irmãos. É
a fé que, em todos os acontecimentos deste mundo, alegres ou tristes, nos faz
ver a piedosa mão de Deus, que tudo dispõe para o nosso bem”.
Pela
fé, os discípulos formaram a primeira comunidade reunida ao redor do ensino dos
Apóstolos, na oração, na celebração da Eucaristia, pondo em comum aquilo que
possuíram para acudir às necessidades dos irmãos (cf At 2, 42-47). Almeja-se
que possamos expressar nossa fé em nossas comunidades, que nossas
comunidades possam pela sua fé contagiar outras comunidades, as quais estão
desmotivadas. Que pela força do Espírito Santo possamos cultivar e aumentar a
fé por Deus e seu Filho bem-Amado.
A fé
é mais preciosa que todos os tesouros, nascente de todas as graças, fundamento
de todas as virtudes, porta para o céu. “Fé deve ser ouvida: audição vem da
palavra de Cristo”. Disto decorre a improrrogável escuta da
palavra de Deus; a palavra de Deus é tão necessária, quanto a fé.
Por fim, não tenhamos medo de professar a nossa fé e, como exorta o Santo
Padre, que seja com renovada convicção, com confiança e esperança. Que este Ano
da Fé possa tornar cada vez mais firme a nossa relação com o Cristo, sendo
só nEle que podemos olhar o futuro e ter a garantia de um amor autêntico e
duradouro.
A fé
se extingue cada vez mais nesta sociedade moderna, onde tudo é voltado para as
coisas do mundo, para os prazeres que a vida nos apresenta e nos levam a às
tentações. A falta de fé é encontrada em muitas pessoas, e ainda mais
fortemente nos jovens. E necessário recuperar a nossa fé, realimentar os
nossos credos. Só pela fé, que “sem ver o Cristo, o cremos e o amamos”.
Concluo
com o recado deixado por Bento XVI. “Ao longo deste tempo, manteremos o
olhar fixo sobre Jesus Cristo, autor e consumador da fé”(Hb 12,2), nEle
encontram plena realização toda a ânsia e anelo do coração humano.
“NÃO
BASTA APENAS A FÉ, É PRECISO HAVER TAMBÉM AS OBRAS”
“Tu tens a fé, e eu
as obras; mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas minhas obras, te
mostrarei a minha fé” (Tg 2, 8)
Andrei Zanon
Porto Alegre-RS
Brasil
Vocação Leiga
Geralmente quando ouvimos a palavra vocação logo a associamos ao padre ou a irmã religiosa que conhecemos em nossa comunidade. Mas além da vocação sacerdotal e da vocação religiosa, existe também a vocação do leigo ou vocação
laical.
A vocação leiga é a vocação do cristão comprometido. Aqui se encaixam todas as pessoas que ajudam na Igreja: animadores da liturgia, zeladoras da capelinha, catequistas, ministros, etc. Os leigos, pessoas casadas ou solteiras, são cristãos que verdadeiramente assumem o seu batismo e além de exercer uma atividade profissional dedicam-se à missão evangelizadora da Igreja, através da participação ativa em alguma pastoral, ministério ou serviço. Há também determinados movimentos de leigos que fazem votos ou promessas de consagração, como por exemplo, os Leigos Scalabrinianos.
A vocação leiga tem sua origem nos sacramentos do batismo e da crisma. O fiel cristão leigo tem o papel de libertar o mundo da secularidade, dos falsos ídolos e de todas as prisões que oprimem e destroem a pessoa humana. É a vocação por essência do cristão porque quando este assume com garra a sua essência de batizado, assume também o compromisso de ser evangelizador.
Leigos são todos os cristãos, que como batizados têm a missão de anunciar Jesus Cristo: "caminho, verdade e vida". São pessoas não consagradas que trabalham na construção do Reino de Deus, ou seja, na busca de uma sociedade justa e mais fraterna, conforme o desejo de Jesus.
Uma das revelações mais importantes do Concilio Vaticano II foi, talvez, descobrir e assumir a secularidade do mundo moderno e, neste sentido, experimentar o impulso do Espírito para enfrentar, a partir dos valores evangélicos, os desafios da sociedade moderna. Desse modo é que se revitaliza o papel dos leigos e se redescobre sua importante missão na Igreja e no mundo. A consagração laical, que se reformula a partir dos documentos conciliares, vem a ser prova dessa preocupação da Igreja com os problemas do homem no atual mo-mento de sua história.
Os leigos são aqueles homens e mulheres que agindo à luz da fé e da Palavra de Deus, movidos pela caridade, procuram infundir em todas as realidades temporais, como a família, a cultura, a economia, as artes, as profissões, as instituições políticas, o espírito evangélico.
O leigo vive no mundo para fazer presente o Deus Criador. Fazer de suas estruturas um mundo mais digno, promover a paz, a justiça, a fraternidade, ser sinal de Cristo. O leigo tem a missão de fazer com que o mundo entre em comunhão com o mistério que a Igreja representa.
Os leigos exercem sua missão profética pela evangelização, isto é, o anúncio de Cristo feito pelo testemunho da vida e pela palavra. Para os leigos a evangelização adquire características específicas e eficácia peculiar pelo fato de se realizar pelo seu exemplo, no mundo, dia-a-dia.
O nosso fundador, o Bem-aventurado Scalabrini, dizia “Deveis ser apóstolos, também vós, ó irmãos, isto é, pessoas de ação e sacrifício, zelosos pela honra de Deus e da Igreja, pela salvação das almas. Podeis, vós, embora leigos exercer, no pequeno mundo que vos circunda, o apostolado da palavra, usando uma linguagem que edifique, nas conversas, nas instruções, no corrigir. Também o laicato tem o seu apostolado, a sua missão apostólica”.
Para refletir:
1. Você conhece pessoas que vivem a vocação leiga na sua comunidade?
2. Você conhece o Movimento Leigo Scalabriniano?
Pe. Alexandre De Nardi Biolchi, cs
Passo Fundo, RS
alebiolchi@yahoo.com.ar
A vocação leiga é a vocação do cristão comprometido. Aqui se encaixam todas as pessoas que ajudam na Igreja: animadores da liturgia, zeladoras da capelinha, catequistas, ministros, etc. Os leigos, pessoas casadas ou solteiras, são cristãos que verdadeiramente assumem o seu batismo e além de exercer uma atividade profissional dedicam-se à missão evangelizadora da Igreja, através da participação ativa em alguma pastoral, ministério ou serviço. Há também determinados movimentos de leigos que fazem votos ou promessas de consagração, como por exemplo, os Leigos Scalabrinianos.
A vocação leiga tem sua origem nos sacramentos do batismo e da crisma. O fiel cristão leigo tem o papel de libertar o mundo da secularidade, dos falsos ídolos e de todas as prisões que oprimem e destroem a pessoa humana. É a vocação por essência do cristão porque quando este assume com garra a sua essência de batizado, assume também o compromisso de ser evangelizador.
Leigos são todos os cristãos, que como batizados têm a missão de anunciar Jesus Cristo: "caminho, verdade e vida". São pessoas não consagradas que trabalham na construção do Reino de Deus, ou seja, na busca de uma sociedade justa e mais fraterna, conforme o desejo de Jesus.
Uma das revelações mais importantes do Concilio Vaticano II foi, talvez, descobrir e assumir a secularidade do mundo moderno e, neste sentido, experimentar o impulso do Espírito para enfrentar, a partir dos valores evangélicos, os desafios da sociedade moderna. Desse modo é que se revitaliza o papel dos leigos e se redescobre sua importante missão na Igreja e no mundo. A consagração laical, que se reformula a partir dos documentos conciliares, vem a ser prova dessa preocupação da Igreja com os problemas do homem no atual mo-mento de sua história.
Os leigos são aqueles homens e mulheres que agindo à luz da fé e da Palavra de Deus, movidos pela caridade, procuram infundir em todas as realidades temporais, como a família, a cultura, a economia, as artes, as profissões, as instituições políticas, o espírito evangélico.
O leigo vive no mundo para fazer presente o Deus Criador. Fazer de suas estruturas um mundo mais digno, promover a paz, a justiça, a fraternidade, ser sinal de Cristo. O leigo tem a missão de fazer com que o mundo entre em comunhão com o mistério que a Igreja representa.
Os leigos exercem sua missão profética pela evangelização, isto é, o anúncio de Cristo feito pelo testemunho da vida e pela palavra. Para os leigos a evangelização adquire características específicas e eficácia peculiar pelo fato de se realizar pelo seu exemplo, no mundo, dia-a-dia.
O nosso fundador, o Bem-aventurado Scalabrini, dizia “Deveis ser apóstolos, também vós, ó irmãos, isto é, pessoas de ação e sacrifício, zelosos pela honra de Deus e da Igreja, pela salvação das almas. Podeis, vós, embora leigos exercer, no pequeno mundo que vos circunda, o apostolado da palavra, usando uma linguagem que edifique, nas conversas, nas instruções, no corrigir. Também o laicato tem o seu apostolado, a sua missão apostólica”.
Para refletir:
1. Você conhece pessoas que vivem a vocação leiga na sua comunidade?
2. Você conhece o Movimento Leigo Scalabriniano?
Pe. Alexandre De Nardi Biolchi, cs
Passo Fundo, RS
alebiolchi@yahoo.com.ar
Pedir, suplicar, insistir...
O Senhor nos criou para Si e, por isso mesmo, colocou em nosso coração o desejo de um “não sei o quê”, uma saudade, uma sede do Sentido e da Plenitude, que estão sempre mais além de tudo quanto nos possa satisfazer e alegrar...
Diz Santo Agostinho que “para alcançarmos esta vida feliz, a verdadeira Vida nos ensinou a orar. Não com multiplicidade de palavras, como se quanto mais loquazes fôssemos, mais nos atenderia. Mas rogamos Àquele que conhece, conforme Suas mesmas palavras, aquilo que nos é necessário, antes mesmo de Lhe pedirmos” (cf. Mt 6,7-8). Então, rezar é essencial para fazermos, por dentro, experiência da Vida de Deus, da Vida com Deus. E a oração verdadeira, certamente, inclui a oração de súplica, aquela em que expomos ao Senhor Deus nossos desejos, nossas necessidades, nossos anelos.
Neste contexto, o próprio Doutor de Hipona apresenta uma questão: “Pode alguém estranhar por que motivo assim dispôs Quem já de antemão conhece nossa necessidade”. Em outras palavras: para que rezar apresentando a Deus meus pedidos se Ele já os conhece? Aliás, poderá mesmo a minha súplica, a minha insistência, mudar o que Deus já determinou? Eis a resposta do santo Bispo: “Temos de entender que o intuito de nosso Senhor e Deus não é ser informado sobre nossa vontade, que não pode ignorar. Mas despertar pelas orações nosso desejo, o que nos tornará capazes de receber aquilo que se prepara para nos dar”. Talvez você pense, meu Leitor amigo: “É uma resposta esperta, inteligente, mas simplesmente para encontrar uma saída para o problema. No entanto, uma resposta sem consistência alguma!” Errado! A resposta é profunda e, se olharmos bem, condizente com a nossa experiência.
Eis o seu sentido: quando rezamos, pedimos, suplicamos insistentemente por algo que almejamos. Ao fim, as coisas sairão ou não como eu supliquei. Mas, atenção: se eu rezei de verdade, se insisti, se me coloquei constante e teimosamente nas mãos do Senhor, se Lhe entreguei a minha causa, então, sem que eu perceba, fui me abrindo para o Senhor, fui sintonizando cada fibra do meu ser, da minha vontade, da minha sensibilidade, do meu inconsciente, ao Seu querer... No fundo a oração de súplica – ou qualquer outra oração – é um modo de se colocar diante do Senhor Deus com todo o nosso ser, não como quem se coloca diante de uma ideia, de uma teoria, mas diante de Alguém presente e atuante no mundo e na nossa vida.
Assim, sem perceber, enquanto rezo por alguma coisa, é todo o meu ser, em todas as coisas, que se vai abrindo para uma consciência não só racional, mas afetiva e até mesmo física, de que o Senhor está presente na minha vida e age amorosamente em meu favor. Ao final, quer suceda como eu pedi, quer as coisas tomem um rumo que eu não esperava, terei a plena certeza de que tudo está nas mãos do Senhor e tudo aconteceu conforme Seu imperscrutável desígnio, Sua santa e misteriosa vontade! É o que Santo Agostinho termina por insinuar, pensando naquilo que o Senhor nos deseja conceder como fruto da nossa oração: “Isso é imensamente grande, mas nós somos pequenos e estreitos demais para recebê-lo. Por isto, nos é dito: Dilatai-vos; não aceiteis levar o jugo com os infiéis (2Cor 6,13-14). Isso é tão imensamente grande que os olhos não o viram, porque não é cor; nem os ouvidos ouviram, porque não é som; nem subiu ao coração do homem (cf. 1Cor 2,9), já que o coração do homem deve subir para lá. Iso nós o recebemos com tanto maior capacidade quanto mais fielmente cremos, com mais firmeza esperamos, mais ardentemente desejamos. Por conseguinte, nesta fé, esperança e caridade, sempre oramos pelo desejo incessante”.
Dito de um modo mais simples: quando rezamos vamos deixando que Deus seja realmente uma Presença pessoal na nossa vida, vamos crescendo na fé e no amor para com Ele. Ao fim de um período de oração insistente, sem nem mesmo nos termos dado conta, crescemos na intimidade com Ele, crescemos na confiança em relação a Ele, aprofundamos nossa percepção do Seu mistério, da Sua grandeza, de quanto Ele é fiel e próximo, mas, ao mesmo tempo, tão grande, misterioso, incompreensível. Assim, ao final de tudo, seja lá o que o Senhor nos der, seja lá como faça com aquilo que pedíamos, saberemos com a certeza de uma fé renovada e de um amor mais íntimo para com Ele, que tudo saiu como Ele mesmo desejou, tudo foi obra do Seu amor; e estaremos prontos para acolhê-lo em paz!
por Dom Henrique
O grito do silêncio
Artigos do Pe. Alfredinho, Instantâneos da Metrópole
No coração da madrugada,
Um grito rasga o véu da noite,
Tão forte, fundo e penetrante
Que toda cidade emudece.
Não é a prostituta perseguida pelo gigolô,
Não é o ladrão surpreendido pela polícia,
Não é o bêbado na sua desvairada alegria,
Não é a criança recém-nascida e recém-abandonada
Não é o trombadinha atingido por “bala perdida”,
Não é o carro solitário e veloz,
Não é o cão nem qualquer outro animal.
Nenhuma voz que se possa identificar.
É teu silêncio, Senhor!
Misterioso, profundo, incomensurável.
Oriundo das mil dobras da escuridão
Percorrendo os mil becos da cidade,
Carregado das mil vozes ocultas,
Denso de uma substância indescritível .
Um silêncio sem rosto e sem nome,
Como que parado no ar frio da manhã que se aproxima,
Entre o chão duro da sarjeta e o teto brilhante das estrelas.
Prenhe de uma dor milenar,
Gemendo às margens da história e da vida,
Tanto mais clama aos céus quanto mais se cala.
Silenciosamente grita, Senhor,
Tão eloqüente quanto mudo,
Brada no deserto da multidão surda,
Enquanto a cidade acorda e se prepara
Para retomar o ritmo diário.
Aos primeiros raios da aurora,
Indiferentes todos se põem a caminho.
São Paulo, 14 de abril de 1990
A Missão e o Missionário
O verdadeiro missionário não
deve temer as distâncias para anunciar o evangelho; esta é a sua grande missão:
anunciar as palavras do Senhor para aqueles, que as desconhecem. O missionário procura estar nos lugares mais
irresolutos, sombrios e necessários,
afirmando-se assim a frase do Frei Claudio; “Renunciar às certezas
para saborear o mistério em tudo e em todos”; sua maior alegria é diariamente saborear os
mistérios, que se tornam momentos vivos
nas mais simples atitudes, nas quais geralmente se encontra o Rosto Divino.
Sabe-se que o missionário está
submetido as mais árduas provações, às vezes sendo ameaçado por fortes
tempestades, mas este homem, enviado com
o seu carisma, deve evidenciar a calma,
uma inquebrantável calma, através da qual ele vai civilizando o mundo, com o
auxílio vindo do alto.
Neste enfoque vejo a
importância de relembrar o envio que Scalabrini fez aos seus missionários, para
trabalhar com os migrantes italianos: “Ide novos Apóstolos de Jesus Cristo:
ide, mensageiros velozes... ao povo que vos espera...”. Urge hoje em nossas missões a necessidade das
palavras do nosso Fundador: “Ide e não temeis: sede fiéis, suplico-vos, a
estes santos altares, à vocação: pacientes, prudentes, modestos, repletos de
caridade”.
O missionário deve ter,
amparado e revigorizado pó Deus, o bem das Almas, e sua recompensa radica-se em
Deus, e não no homem. “Cada envio de missionários nos mostra de modo
comovente a infinita misericórdia de Deus e o valor infinito das almas”, o
Scalabrini, asseverando: “a vossa vocação às missões vem de Deus” porque
também a igreja é missionária. Os missionários não estão sozinhos pelo mundo;
apesar da companhia de Cristo, eles pertencem sempre a uma Congregação. O
missionário é apenas um órgão fundamental no corpo chamado Congregação, que no
nosso caso, é Scalabriniana, e se
este órgão adoecer, falhar com o seu compromisso, todo o restante do
corpo/congregação sofre as consequências.
Scalabrini já nos advertia “os
missionários antes de partirem em missão, devem ficar alguns dias em retiro e
em oração para fortalecer o espírito” e depois disso sim, estariam
preparados para evangelizar a todos os povos, culturas e nações. Utilizando a
fala do nosso Fundador; “o missionário que transcurar a meditação e a
oração, dificilmente poderá conservar-se na graça de Deus (...)” por isso a oração é sempre fundamental, em
qualquer lugar e em qualquer trabalho.
O
nosso Fundador nos deixou um recado formidável: “O missionário, como
operário evangélico, deve recordar-se de que é obrigado a difundir com a sua
vida o bom odor de Jesus Cristo, pregar o Evangelho mais com o exemplo que com
a palavra. Portanto, terá cuidado de observar a própria regra sempre e em todos
os lugares. Praticar especialmente a temperança, a mansidão, a humildade, a
castidade, a modéstia, a caridade e demonstrar o máximo desinteresse”.
Vejo de
estrema importância lembrar aqui a mensagem, que o Sumo Pontífice nos deixa em
sua carta no dia Mundial das Missões deste ano de 2012: “Nós Pastores, os
religiosos, as religiosas e todos os fiéis em Cristo, devemos nos
colocar sobre as pegadas do apóstolo Paulo, ‘prisioneiro de Cristo pelos
pagãos´ (Ef 3,1), que trabalhou, sofreu, lutou para disseminar o
Evangelho em meio aos pagãos” (cfr Ef 1,24-29), sem poupar energia,
tempo e meios. Também hoje a missão ad
gentes deve ser um horizonte constante e o paradigma de cada atividade
eclesial, porque a identidade da Igreja é constituída pela fé no Mistério de
Deus, que se revela em Cristo para levar-nos a salvação, e pela missão de
testemunhá-Lo e anunciá-Lo ao mundo, até a Sua volta. À imitação de São
Paulo, devemos ser atentos aos afastados, àqueles que não conhecem ainda Cristo
e não experimentaram a paternidade de Deus, na consciência de que “a
cooperação missionária se deve estender hoje a formas novas, incluindo não
somente a ajuda econômica, mas também a participação direta na evangelização”
(João Paulo II, Carta. enc. Redemptoris Missio, 82). “A celebração do
Ano da fé e do Sínodo dos Bispos sobre a nova evangelização serão ocasiões
propícias para um aumento da cooperação missionária, sobretudo nesta segunda
dimensão”.
Existe
uma frase, que ressoa forte para todos os cristãos em todos os continentes,
ainda mais forte nos territórios em missão e nas novas paróquias. “Ai de mim se
não anunciar o Evangelho!” (1 Cor 9,16) dizia o apóstolo Paulo.
Levando
em conta toda a fé do missionário em missão, que se transforma em caridade, o
Sumo Pontífice nos lembra de um detalhe importante; “...recordo e agradeço as Pontifícias Obras
Missionárias, instrumentos para a cooperação às missões universais da Igreja no
mundo. Através da ação delas, o anúncio do Evangelho se faz também intervenção
na ajuda ao próximo, justiça aos mais pobres, oportunidade de educação nas
aldeias mais remotas, assistência médica nos lugares mais afastados,
emancipação da miséria, reabilitação de quem está marginalizado, sustento ao
desenvolvimento dos povos, superando as divisões étnicas e respeitando a vida
em cada fase”.
Falando em nível de Brasil,
publicou-se no “site de notícias da UOL”, que o Brasil cresce como exportador
de missionários cristãos. Segundo o estudo norte-americano, explica o autor da pesquisa, o professor Todd
Johnson, do Centro de Estudos do Cristianismo Global da Universidade
Gordon-Conwell, havia no mundo cerca de 400 mil missionários cristãos em 2010,
saídos de 230 países. Desses, 34.000 eram brasileiros - quantidade inferior
apenas à dos evangelizadores norte-americanos, que somavam 127.000. O número de
brasileiros é inédito. Representa um aumento de 70% em relação ao ano 2000
(quando o país tinha cerca de 20 mil missionários no exterior) e tende a crescer.
“A quantidade de missionários enviados pelo Sul global supera o declínio (do
cristianismo) na Europa”. Isso alegra não só a nós brasileiros, mas alegra toda
a igreja, que necessita de missionários em suas mais diversas missões pelo
mudo.
Jesus Cristo foi exemplo de
missionário. Ele para salvar a nossa alma, desceu do céu, se fazendo homem,
sofrendo morte de cruz, abandonando o que tinha de mais sublime junto a seu
pai, para expor-se aos perigos terrenos, tentações, e abraçando os sacrifícios
para salvar a nossa alma.
Na missão encontramos pessoas
muitos simples, mas com uma fé invejável, estampada em seus rostos sofridos
pelo tempo e pelo trabalho. Muitas vezes, conseguimos reconhecer Deus pelo seu
simples olhar. Nestas instâncias de trabalho missionário concluo o meu texto
com uma bela oração, que foi registrada pelo Frei Dominicano Raimundo Cinta;
A Oração de uma camponesa de
Madagascar
Senhor! Dono das panelas e
marmitas! Não posso ser a santa, que medita aos vossos pés. Não posso bordar
toalhas para vosso altar. Então, que eu seja santa ao pé do meu fogão. Que o
vosso amor esquente a chama que eu acendi e faça calar a minha vontade de gemer
a minha miséria. Eu tenho as mãos de Marta. Mas quero também ter a alma de
Maria. Quando eu lavar o chão, lavai, Senhor, os meus pecados. Quando eu puser
na mesa a comida, comei também, senhor, junto conosco, é ao meu senhor, que eu
sirvo, servindo minha família. Amém.
Sabendo que o dever missionário
não tem limites e que a difusão do Evangelho é um dever de todo cristão,
suplico em nome dos nossos missionários, que levam a boa nova aos irmãos
abandonados, para serem sempre abençoados por Cristo, protegidos pelo manto
sagrado de Maria Santíssima e iluminados pelo Espírito Santo em todos os
lugares, em que estiverem anunciando o evangelho em nome de Cristo e com o
carisma de sua Congregação.
Andrei
Zanon
andreizanon@gmail.com
Porto
Alegre- RS
Oficina – Consulado Equador
Migrações
no Brasil e regularização migratória
O Brasil é um país em que a
imigração foi fundamental
para a sua constituição. Seja
a migração forçada para trabalho escravo,
ou mesmo incentivada, como
foi o caso da imigração européia e asiática
no século XIX e começo do XX.
Na década de 1980 o Brasil viveu
também o processo contrário, o de emigração
o qual resultou em quase 4 milhões
de brasileiros vivendo fora do país.
Como pano de fundo da globalização,
as migrações continuam na pauta
do dia. E no contexto nacional, estamos
num momento em que brasileiros que
viviam fora estão retornando. E
acompanhando
o crescimento e fortalecimento
da economia brasileira, nosso país está
voltando a ser um país de imigração.
Nesse sentido, da migração econômica,
a migração dita “qualificada”
ganha destaque. Mas para aqueles
e aquelas que migram para dar
melhores condições para sua família
é que engrossam os números. Não os
oficiais, pois muitos migram de maneira
irregular.
Sobre os aspectos da migração
brasileira, o Centro de Apoio ao Mi
Migrante,
CAMI, foi convidado, pelo
cônsul geral do Equador, Fernando
Javier Ponce Leiva, para uma reunião
no Consulado do Equador, no dia
08 de outubro. Estiveram presentes
funcionários do próprio Consulado
e representantes de outros, como da
Argentina, México, Peru, Paraguai e
República Dominicana.
Foi falado também sobre as formas
de regularização
migratória que constam
no Estatuto do Estrangeiro, Lei
n° 6815/80 (como filho/a brasileiro/a,
cônjuge brasileiro/a e reunião familiar)
as Resoluções Normativas do Conselho
Nacional de Imigração (CNIg, especialmente
as RN n° 27, 77 e 80) e os acordos
entre países com o Decreto de Livre
Residência do MERCOUL e países
Associados (Decretos n° 6.964/2009 e
6975/2009).
O saldo da reunião foi bem positivo:
primeiro pela oportunidade
de intercâmbio de informações entre
Consulados; segundo por todos saberem
que podem contar com uma instituição
que promove a inserção sócio
política de todos e todas imigrantes.
Marina Novaes
Advogada do CAMI
Fonte: Nosotros imigrantes - Ano II - Edição Número 8 - Outubro/Novembro 2012
Protagonismo dos migrantes e função das
migrações
(Agentes, protagonistas
e profetas de um mundo novo possível, necessário e urgente)
ANUNCIAM
Um mundo novo possível, urgente
e necessário, uma nova forma de
organização social, política e econômica,
com bases na justiça, na liberdade
e na solidariedade, aonde sejam
distribuídos de forma igual os frutos
do trabalho e da riqueza da criação.
Uma cidadania universal e globalizada
a onde a tecnologia esteja ao serviço
da vida, e que a única casa comum
(O planeta terra-água) seja tratado
com respeito, cuidado com carinho e
administrado com responsabilidade.
Em fim anunciam uma globalização
integral e integradora.
DENUNCIAM
Um falso sistema sócio-político
e econômico, a destruição da casa comum,
a injusta distribuição da riqueza,
uma globalização unilateral e perversa.
Idolatrias e fundamentalismos
nos campos científicos e religiosos.
O Latifúndio e monopólio dos MCS
e da tecnologia, causando violência, exclusão e morte. Para problemas
humanos soluções humanas.
As migrações revelam e denunciam
ao mesmo tempo uma sociedade
FRAGMENTADA, CONFRONTADA
E DIVIDIDA, aonde o
DESESPERO E A NECESSIDADE
causa muitas vítimas e muitas mortes,
muito sofrimento e muitas feridas
nas pessoas que são obrigadas a
emigrar.
ALGUNS POSSÍVEIS DESAFIOS:
A acolhida, resgate cultural, o
resgate da cidadania, a presença em
três momentos (origem-trânsito-destino),
diálogo com o diferente numa
relação inter-cultural, trabalhar as
consciências no cultivo da sensibilidade
e solidariedade, denunciar as
causas injustiças da miséria, fome,
opressão, da migração forçada, da
concentração de renda, fortalecer e
anunciar as causas justas, positivas,
do resgate da vida, da organização,
da fé comprometida, na defesa dapessoa, construindo comunidades e
transformando a sociedade, incidir
politicamente para leis em favor da
vida dos migrantes e para políticas
publicas ao serviço dos excluídos.
Como criar e recriar novas estruturas
sociais e eclesiais possibilitando
espaços de solidariedade e de
gratuidade para os migrantes, dignificando
as relações e as pessoas?
RESPOSTAS DE AÇÕES CONCRETAS
NO CAMPO DAS MIGRAÇÕES
E JUNTO COM AS
PESSOAS MIGRANTES
Acolhida e Assistência nas
emergências
(Casas de acolhida, Pastorais,
Centros de
Atendimento, Orientação e Apoio ao
migrante,
Centros Stela Maris em Portos)
* Sensibilização
social e incidência
política (Políticas publica, e
de migrações, leis mas humanas,
desburocratização legal, combate
às causas injustas da migração
forçada, Defesa dos DD.HH. Dos
migrantes...) Nesta dimensão os
Centros de Estudos Migratórios
e a academia são fundamentais.
* Promoção humana,
cultural
e acompanhamento religioso.
(conservar as identidades, promover
a integração, manter e
fortalecer os valores culturais e
conservar a fé, celebrar a vida e
trabalhar sempre em defesa da
cidadania universal, motivar o
trabalho e a presença de profissionais
ao serviço da vida e na
defesa dos Direitos Humanos
dos migrantes.
* Articulação e
formação de redes
somando forças com os vários
segmentos da sociedade
para atacar as causas injustas das
migrações forçadas, aliviando
o sofrimento nas conseqüências
negativas, fortalecendo e afir
pessoa, construindo comunidades e
transformando a sociedade, incidir
politicamente para leis em favor da
vida dos migrantes e para políticas
publicas ao serviço dos excluídos.
Como criar e recriar novas estruturas
sociais e eclesiais possibilitando
espaços de solidariedade e de
gratuidade para os migrantes, dignificando
as relações e as pessoas?
RESPOSTAS DE AÇÕES CONCRETAS
NO CAMPO DAS MIGRAÇÕES
E JUNTO COM AS
PESSOAS MIGRANTES
Acolhida e Assistência nas
emergências
(Casas de acolhida, Pastorais,
Centros de
Atendimento, Orientação e Apoio ao
migrante,
Centros Stela Maris em Portos)
* Sensibilização
social e incidência
política (Políticas publica, e
de migrações, leis mas humanas,
desburocratização legal, combate
às causas injustas da migração
forçada, Defesa dos DD.HH. Dos
migrantes...) Nesta dimensão os
Centros de Estudos Migratórios
e a academia são fundamentais.
* Promoção humana,
cultural
e acompanhamento religioso.
(conservar as identidades, promover
a integração, manter e
fortalecer os valores culturais e
conservar a fé, celebrar a vida e
trabalhar sempre em defesa da
cidadania universal, motivar o
trabalho e a presença de profissionais
ao serviço da vida e na
defesa dos Direitos Humanos
dos migrantes.
* Articulação e
formação de redes
somando forças com os vários
segmentos da sociedade
para atacar as causas injustas das
migrações forçadas, aliviando
o sofrimento nas conseqüências
negativas, fortalecendo e afirmando
as conseqüências positivas
das migrações e propondo
alternativas possíveis de solução.
Tudo isso deve ser feito sempre
em vista da ORGANIZAÇÃO E
PARTICICPAÇÃO dos migrantes em
processos permanentes de transformação
da sociedade, de construção
de novas comunidades e de compromisso
pessoal com a vida e as vítimas
da historia.
...”Las grandes migraciones humanas
a la vez reflejan y provocan,
los cambios sociales más profundos;
los migrantes en marcha no son solo
víctimas de um orden social mundial
excluyente, pero también artifices,
protagonistas, profetas... de un orden
nuevo, justo y solidário. La marcha
sigue, cargada de contradicciones:
al mismo tiempo que denuncian la
falta de ciudadania de millones de
personas en todo el mundo, anuncian
el sueño de una pátria universal;
el migrante rompe y borra todas las
fronteras, en búsqueda de un mundo
de hermanos, signo y antecipación de
un mundo nuevo posible” (AlfredoGonçalves)
Ser estrangeiro é perder o equilíbrio
sobre a terra, por isso que para
a Igreja ninguém deve sentir-se estrangeiro
porque migrar não é um
delito, delito é o que causa a migração
forçada e por isso cremos em
todo nosso trabalho que o sonho não
tem fronteiras e confirmamos que:
“PARA O MIGRANTE PÁTRIA É
A TERRA QUE LHE DÁ O PÃO”.
(João Batista Scalabrini-Pai e Apóstolo dos Migrantes).
Pe. Mário Geremia CS
Coordenador do
Centro
Pastoral do Migrante
Fonte: Nosotros imigrantes - Ano II - Edição Número 8 - Outubro/Novembro 2012
O que resta do Vaticano II
Atualmente, as reformas alcançadas pelo Vaticano II nos parecem muito tímidas e inadequadas pela sua insuficiência. Era preciso ter avançado muito mais, pois o mundo mudou mais nos últimos 50 anos que nos dois mil anos anteriores.
Do Vaticano II destacamos o seguinte, que deve permanecer como uma base para as reformas futuras:
- O retorno à Bíblia como referência permanente da vida eclesial, acima de todas as elaborações doutrinais posteriores, acima dos dogmas e das teologias.
- A afirmação do Povo de Deus como participante ativo na vida da Igreja, tanto no testemunho da fé como na organização da comunidade, com uma definição jurídica de direitos e com recursos nos casos de opressão por parte das autoridades.
- A afirmação da Igreja dos pobres.
- A afirmação da Igreja como serviço ao mundo e sem busca de poder.
- A afirmação de um ecumenismo de participação mais próxima entre Igrejas cristãs.
- A afirmação de um encontro entre todas as religiões ou pensamentos não religiosos.
- Uma reforma litúrgica que utilize símbolos e palavras compreensíveis aos homens e mulheres contemporâneos. As comissões formadas após o Vaticano II deixaram muitas palavras e símbolos totalmente sem significado para os cristãos de hoje e um obstáculo para a missão.
.....
É pouco provável que um Concílio que reúna unicamente bispos possa descobrir as respostas aos desafios do tempo atual. As respostas não virão da hierarquia, nem do clero, e sim de leigos que vivem o Evangelho em meio ao mundo que entendem. Por isso, temos que estimular a formação de grupos de leigos comprometidos ao mesmo tempo com o Evangelho e com a sociedade humana na qual trabalham.
(Pe. José Comblin, in Vaticano II: 50 anos depois, Revista Vida Pastoral, nov-dez 2012, n.287, pg. 9 e 10)
O LEIGO SCALABRINIANO E SUA MISSÃO
O Leigo Scalabriniano, não possui uma identidade definida,
seu rosto é o rosto do migrante que peregrina em busca de dias melhores. O que
procuramos viver é o sonho e a inspiração de Scalabrini, tendo a consciência de
que a espiritualidade e o carisma Scalabriniano são sempre mais atuais no mundo
de hoje que vive os contrastes de uma cultura e uma economia excludentes e
opressoras.
É no encontro com o outro que o eu se afirma e se
constrói existencialmente, é na vivencia do dia a dia que encontramos o diferente,
e no olhar de cada ser que diferenciamos a realidade ali vivida, na construção
de cada novo começo, e no recomeço nosso de cada dia.
E cada vez mais, sobretudo na alegria
da chegada, das profundas realidades, que no entanto agimos, e reagimos.
E sempre quando falo com Jesus,
Ele deixa claro, que a motivação do nossa missão é algo como viver um pouco
aquilo que o migrante encontra nas tantas adversidades do dia. Jesus como nosso
fundamento, e baseados no Bem Aventurado João Batista Scalabrini, como LMS,
te-los como condutores e guias traz para perto de nós nossos irmãos, vivemos as
partidas e chegadas, vivemos as várias situações delas e queremos ser, mesmo que nos
pequenos gestos e ações, homens e mulheres protagonistas de um mundo melhor,
onde a acolhida, a alteridade, a riqueza da cultura de cada um, sejam as
motivações para se construir uma pátria sem fronteiras.
È com eles, os migrantes que vivemos
a missão, seguindo os passos de Jesus, vivendo com eles, motivando a vida de
cada um.
Que Deus esteja sempre ao lado de
todos nós!!!
Lucia B. Valentim
lbag7@hotmail.com
Curitiba - Pr
Urgências
A mensagem que segue é uma reflexão para dizer que na vida não somos nada sozinhos, precisamos uns dos outros, e o que nos faz
necessitar do semelhante atualmente?
Poderia estar dando várias respostas a este
questionamento, talvez não seriam as mesmas que as suas, acho até bem provável,
pontos de vista diferentes diferenciam a questão.
Aprendemos que temos que passar por situações mas não
necessiariamente em ter que dizer sim a tudo.
presença real, nada de imaginário do faz de conta, que da
para disfarçar, distorcer, fazer parecer, que distorcendo fatos ou fatores vai
mudar a realidade. Dessa maneira a vida continua seguindo, mas vale a pena? Resta a cada um de nós responder a si próprio.
Lucia B. Valentim
lbag7@hotmail.com
Curitiba - Pr
Vai, vende tudo que tens e dá aos pobres! (Mc 10, 17-30) - Mesters e Lopes
por CEBI PUBLICAÇÕES
VAI, VENDE TUDO QUE TENS E DÁ PARA OS POBRES!
CEM VEZES MAIS JÁ NESTA VIDA, MAS COM PERSEGUIÇÕES
MARCOS 10, 17-30
Texto extraido do livro ''CAMINHANDO COM JESUS'' - Círculos Bíblicos do Evangelho de Marcos - Coleção A Palavra na Vida 184/185. CEBI Publicações.
ABRIR OS OLHOS PARA VER
O texto de hoje traz dois assuntos: (1) Conta a história do moço que perguntou pelo caminho da vida eterna e (2) chama a atenção para o perigo das riquezas. O moço não aceitou a proposta de Jesus, pois era muito rico. Uma pessoa rica é protegida pela segurança que a riqueza lhe dá. Ela tem dificuldade em abrir mão desta segurança. Agarrada às vantagens dos seus bens, vive preocupada em defender seus próprios interesses. Uma pessoa pobre não tem esta preocupação. Mas há pobres com cabeça de rico. Muitas vezes, o desejo de riqueza cria neles uma grande dependência e faz o pobre ser escravo do consumismo, pois ele fica devendo prestações em todo canto. Já não tem mais tempo para dedicar-se ao serviço do próximo. Vamos conversar sobre isto.
Uma pessoa que vive preocupada com sua riqueza ou que vive querendo adquirir aquelas coisas da propaganda na televisão, pode ela libertar-se de tudo para seguir Jesus e viver em paz numa comunidade cristã? É possível? O que você acha? Conhece alguém que conseguiu largar tudo por causa do Reino?
SITUANDO
No texto de hoje, Jesus aponta mais dois aspectos da conversão que deve ocorrer no relacionamento dos discípulos com os bens materiais (Mc 10, 17-27) e no relacionamento dos discípulos entre si (Mc 10, 28-31). Para poder entender todo o alcance das instruções de Jesus, é bom olhar, novamente, o contexto mais amplo em que Marcos coloca estes textos. Jesus está subindo para Jerusalém, onde será crucificado (cf. Mc 8, 27; 9,30.33; 10,1.17.32). Ele está entregando sua vida. Sabe que vão matá-lo, mas não volta atrás. Esta atitude de fidelidade e de entrega à missão que recebeu o Pai dá a Jesus as condições de apontar aquilo que realmente importa na vida.
As recomendações de Jesus valem para todos os tempos, tanto para o povo do tempo de Jesus e de Marcos como para nós hoje, aqui no Brasil. Pois o que importa, em cada época, é recomeçar a construção do Reino, renovando o relacionamento humano em todos os níveis, para que esteja de acordo com a vontade de Deus.
COMENTANDO
1. Marcos 10, 17-19: Os mandamentos e a vida eterna
Alguém chega e pergunta: "Bom mestre, o que devo fazer para herdar a vida eterna?" O Evangelho de Mateus informa que se tratava de um jovem (Mt 19, 20.22). Jesus responde bruscamente: "Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão só Deus!" Jesus desvia a atenção de si mesmo para Deus, pois o que importa é fazer a vontade do Pai, revelar o Projeto do Pai. Em seguida, Jesus afirma: "Você conhece os mandamentos: não matar, não cometer adultério, não roubar, não levantar falso testemunho, não defraudar ninguém, honrar pai e mãe". O jovem tinha perguntado pela vida eterna. Queria a vida junto de Deus! E Jesus só lembro os mandamentos ue dizem respeito à vida junto do próximo! Não falou dos três primeiros que definem o relacionamento com Deus! Para Jesus, só conseguimos estar bem com Deus, se soubermos estar bem com próximo. Não adianta se enganar. A porta para chegar até Deus é o próximo.
2. Marcos 10, 20: Observar os mandamentos, para que serve?
O moço responde que observa os mandamentos desde a sua juventude. O curioso é o seguinte. O rapaz tinha perguntado pelo caminho da vida. Ora, o caminha da vida era e continua sendo: fazer a vontade de Deus expressa nos mandamentos. Quer dizer que ele observava os mandamentos sem saber para que serviam! É como muitos católicos que não sabem para que serve ser católico. "Nasci no Brasil, por isso sou católico!" Coisa de costume.
3. Marcos 10, 21-22: Partilhar os bens com os pobres
Jesus olhou para ele, o amou e lhe disse: Só uma coisa te falta: vai, vende o que tens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu, e em seguida vem e segue-me! A observância dos mandamentos é apenas o primeiro degrau de uma escada que vai mais longe e mais alto. Jesus pode mais! A observância dos mandamentos prepara a pessoa para ela poder chegar à doação total de si a fovor do próximo. Jesus pede muito, mas ele o pede com muito amor. O moço não aceitou a proposta de Jesus e foi embora, "pois era muito rico".
4. Marcos 10, 23-27: O camelo e o buraco da agulha
Depois que o moço foi embora, Jesus comentou a decisão dele: Como é difícil um rico entrar no Reino de Deus! Os discípulos ficaram admirados. Jesus repete a mesma frase e acrescenta: É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino! Esta última expressão era um provérbio que não pode ser tomado ao é da letra. Nós também temos provérbios assim que não podem ser tomados ao pé da letra. Por exemplo: "dar nó em pingo d'água", "entrar pleo cano", "perder a cabeça". O provérbio do comelo e do buraco da agulha se usava para dizer que uma coisa era impossível e inviável.
Os discípulos ficaram chocados com a afirmação de Jesus! Sinal de que não tinham entendido a resposta de Jesus ao moço rico. "Vai, vende tudo, dá para os pobres e vem e segue-me!" Como dissemos, o moço tinha observado os mandamentos, mas sem entender o porquê da observância. Algo semelhante estava acontecendo com os discípulos. Eles tinham abandonado todos os bens conforme Jesus tinha pedido ao moço, mas sem entender o porquê do abandono! Se tivessem entendido, não teriam ficado chocados com a exigência de Jesus. Quando a riqueza ou o desejo da riqueza ocupa o coração e o olhar, a pessoa já não consegue perceber o sentido da vida e do evangelho. Só Deus mesmo para ajudar! Pois para Deus nada é impossível.
A frase É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino! trata, não em primeiro lugar da entrada no céu depois da morte, mas sim da entrada na comunidade ao redor de Jesus.
5. Marcos 10, 28-31: Serviço e gratuidade
Por isso Pedro pergunta: "Olha, nós deixamos tudo e te seguimos. O que é que vamos ter?" Apesar do abandono, eles mantêm a mentalidade anterior. Não entendem o sentido do serviço e da gratuidade. Abandonaram tudo para ter algo em troca. A resposta de Jesus é simbólica e deixa entrever que não devem esperar vantagem, nem segurança, nem promoção de nada. Vão ter cem vezes mais, com perseguições, já nesta vida. E no mundo futuro terão a vida eterna de que o moço rico falava.
ALARGANDO
Jesus e o opção pelos pobres
Um duplo cativeiro marcava a situação do povo na época de Jesus: o cativeiro da política de Herodes, apoiada pelo Império Romano e mantida por todo um sistema bem organizado de exploração e de repressão, e o cativeiro da religião oficial, mantida pelas autoridades religiosas da época. Por causa disso, o clã, a família, a comunidade esta sendo desintegrada e uma grande parte do povo vivia excluída, marginalizada, sem lugar, nem na religião, nem na sociedade. Por isso, havia vários movimentos que, como Jesus, procuravam uma nova maneira de viver e conviver em comunidade: essênios, fariseus e, mais tarde, os zelotes. Dentro da comunidade de Jesus, porém, havia algo novo que a diferenciava dos outros grupos. Era a atitude frente aos pobres e excluídos.
As comunidades dos fariseus viviam separadas. A palavra "fariseu" quer dizer "separado". Viviam separados do povo impuro. Muitos dos fariseus consideravam o povo como ignorante e maldito (Jo 7,49), cheio de pecado (Jo 9,34). Não aprendiam nada do povo (Jo 9, 34). Jesus e a sua comunidade, ao contrário, viviam misturados com as pessoas excluídas, consideradas impuras: publicanos, pecadores, prostitutas, leprosos (Mc 2,16; 1,41; Lc 7,37). Jesus reconhece a riqueza e o valor que os pobres possuem (Mt 11,25-26; Lc 21,1-4). Proclama-os felizes, porque o Reino é deles, dos pobres (Lc 6,20; Mt 5,3). Define sua própria missão como "anunciar a Boa Nova aos pobres" (Lc 4,18). Ele mesmo vive como pobre. Não possui nada para si, nem mesmo uma pedra para reclinar a cabeça (Lc 9,58). E a quem quer segui-lo para conviver com ele manda escolher: ou Deus, ou o dinheiro! (Mt 6,24). Manda fazer opção pelos pobres! (Mc 10,21).
A pobreza que caracterizava a vida de Jesus e dos discípulos, caracterizava também a missão. Ao contrário dos outros missionários (Mt 23,15), os discípulos e as discípulas de Jesus não podiam levar nada, nem ouro, nem prata, nem duas túnicas, nem sacola, nem sandálias (Mt 10,9-10). Deviam confiar é na hospitalidade (Lc 9,4; 10,5-6). E caso fossem acolhidos pelo povo, deviam trabalhar como todo o mundo e viver do que receberiam em troca (Lc 10,7-8). Além disso, deviam tratar dos doentes e necessitados (Lc 10,9; Mt 10,8). Entã podiam dizer ao povo: "O Reino chegou!" (Lc 10,9).
Por outro lado, quando se trata de administrar os bens, aquilo que chama a atenção nas parábolas de Jesus é a seriedade que ele pede no uso destes bens (Mt 25,21.26; Lc 19.22-23). Jesus quer que o dinheiro esteja a serviço da vida (Lc 16,9-13). Para Jesus, ser pobre não é sinônimo de relaxado e descuidado.
Este testemunho diferente a favor dos pobres era o passo que faltava no movimento popular da época. Cada vez que, na Bíblia, surge um movimento para renovar a Aliança, eles recomeçam restabelecendo o direito dos pobres, dos excluídos. Sem isto, a Aliança não se refaz! Assim faziam os profetas, assim faz Jesus. Ele denuncia o sistema antigo que, em Nome de Deus, acolhe os excluídos. Este é o sentido e o motivo da inserção e da missão da comunidade de Jesus no meio dos pobres. Ela atinge a raiz e inaugura a Nova Aliança.
Fonte: http://www.cebi.org.br
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