terça-feira, 10 de maio de 2016




O mestre Marcos Zanon, 41 anos, pesquisa a história e a economia do Umbará. Ele contesta mitos, como o do “imigrante que deu certo.” Na sala de aula do Colégio Morelli vê um bairro diverso, em que descendentes de italianos e poloneses aprendem a conviver com os novos umbaraenses, vindos das zonas mais pobres |

Um sonho feito de barro

 mestre Marcos Zanon, 41 anos, pesquisa a história e a economia do Umbará. Ele contesta mitos, como o do “imigrante que deu certo.” Na sala de aula do Colégio Morelli vê um bairro diverso, em que descendentes de italianos e poloneses aprendem a conviver com os novos umbaraenses, vindos das zonas mais pobres.
O Colégio Estadual Padre Cláudio Morelli, no coração do Umbará, mereceria figurar num cartão-postal. A instituição foi um dia escola paroquial e ainda guarda aquela irresistível aura de sacristia. Ao vê-la retratada, muita gente ia se lembrar da aurora da vida, da infância querida que os anos não trazem mais. Seria a primeira impressão.
A segunda, melhor do que essa, é a de que o colégio se converteu no espaço mais democrático no bairro. Entre os 2 mil alunos, figuram moradores das favelas e descendentes de italianos um dia chegados da Água Verde e de Santa Felicidade atrás de terras mais baratas.
“Há um mito em torno do imigrante que deu certo. A riqueza que se vê no Umbará corresponde a uma minoria. A maioria dos moradores antigos se proletarizou”, explica o historiador Marcos Zanon, 41 anos, professor do Morelli e descendente das cerca de 16 famílias italianas que chegaram à região no final do século 19.
Marcos é uma autoridade em sua aldeia. Quando ainda era secundarista, descobriu que não havia nada escrito sobre o Umbará. Na cara e na coragem, bateu palmas nas cerquinhas de madeira de 18 descendentes dos pioneiros. Como era um Zanon, achegou-se ao fogão de lenha e escutou as histórias que deram origem a um boletim da Casa da Memória.
Anos mais tarde, já graduado, repetiu a dose, dessa vez para escrever uma dissertação de mestrado, pela UFPR, publicada em 2004 com o título Oleiros do Umbará – História e Tecnologia, um documento raro sobre a maior particularidade da região: as cerâmicas de fundo de quintal. “O pátio da olaria era o pátio da casa”, ilustra o estudioso.
Hoje, o negócio do barro avançou. Basta reparar no movimento de caminhões na Avenida Nicola Pellanda, abastecendo as cerca de 120 empresas do setor que chegaram aos tempos modernos. Olhar o Umbará do ponto de vista de sua economia é uma forma de matar a charada sobre a região que virou uma espécie de “Curitiba perdida” de Dalton Trevisan.

Foi em torno das olarias que o bairro conheceu a diversidade. Na região conhecida como Calixto – área empobrecida nas bandas do Rio Iguaçu – formou-se a “Vila Cambau”, apelido pejorativo para a hoje zona de operários das cerâmicas. O lugar ainda abriga descendentes dos primeiros moradores, “os brasileiros”, como dizem os italianos.
Essa convivência merecia um arrastão de pesquisadores, tamanha sua originalidade. “A população cabocla foi apagada com a vinda dos imigrantes. Falou-se mais deles porque representavam o branqueamento. Mas houve inclusive casamento entre os grupos”, explica Zanon.
Em tempo, a mais antiga descendente dos Calixto, Teresa, de 76 anos, é uma espécie de nonna mestiça do encrave. A casa centenária, à moda açoriana, é baixinha, colorida, cheia de plantas na varanda. A dona não sabe ler e escrever e se diz feliz “ali, escondidinha”, criando patos e galinhas numa Curitiba das catacumbas. “Sabia que aqui não tinha luz?”, pergunta, depois de oferecer jabuticabas no pé.
Há coisas que Teresa também não sabe. Na outra ponta da Avenida Nicola Pellanda – a cerca de oito quilômetros – os novos bolsões de pobreza do bairro são bem menos prosaicos do que o Calixto. No Unidos do Sabará, cerca de 300 famílias estão em processo de regularização fundiária. Um estudo da Cohab-CT já dá conta do perfil da comunidade, instalada num antigo lixão: 45% são crianças e adolescentes e 62% das famílias vieram do interior do Paraná – o que explica a identificação com uma área ainda ruralizada.
A renda média é inferior a dois salários mínimos. E os índices de violência, preocupantes. De janeiro a setembro deste ano, de acordo com dados recolhidos junto ao Instituto Médico-Legal (IML) foram oito homicídios. Não se pode afirmar que tenham sido todos nas áreas de ocupação, mas são reconhecidamente as áreas mais sujeitas à criminalidade.
Nas visitas da reportagem à região, o clima de medo foi confirmado. De quinta para sexta-feira da semana passada, um jovem de 24 anos teria sido morto por engano, deixando as lideranças ressabiadas. A conversa com Amélia Teresinha Rodrigues, 55, da associação de moradores, é tensa. Ela informa que a ocupação existe há 18 anos, que a Ceasa é a “mãe de todos” os que moram na Unidos. “Aqui, nossas crianças vivem de verdura”, comenta.
Já o líder Sidney Schadeck, 33, não anda nas boas com a Unidos. Depois de 13 anos à frente da comunidade – chamada por muitos de Vila Tripa – não pode voltar para casa por ter enfrentado uma gangue da região. O preço foi seu armazém queimado e fuga às pressas. Vive escondido numa vila distante. “A ocupação é desordenada e gerou becos que favorecem a criminalidade. Polícia não entra lá”, lamenta o exilado, em encontro secreto com a reportagem.
Histórias como a de Schadeck parecem exercícios de ficção diante do Umbará que se vê de passagem. A paisagem rural, a estrada de ferro e a magnífica Matriz de São Pedro fazem até as zonas degradadas parecerem melhores. Some-se a todo esse aparato a paisagem humana. Apesar da fama de desconfiada e independente, a velha-guarda do bairro é o cartão de visitas daquela que pode se tornar a divisa mais civilizada da capital.
O casal Abílio, 82, e Esmeralda Zanon, 79, estão lá para provar. Eles fazem parte dos tais umbaraenses proletarizados de que fala o historiador. A casa é boa, cheia de flores, do lado da Sociedade Beneficente Umbará. O casal se conhece desde pequeno e ri ao contar que tem uma menina da família Do Canto que namora um Do Canto. Coisas do Umbará. “Devem ser primos distantes”, dizem.
Abílio foi barriqueiro de mate e pedreiro – e como todo mundo ali fala do passado como se fosse o ontem. Diz ter saudade de ler romances policiais à luz do lampião de gás. E Esmeralda, de ir a pé até a Igreja do Capão Raso. “Imagine!” Quando começaram as ocupações, os dois sentiram pena dos pobres e avisam que “mal é só quem lida com maconha.” São todo prosa: “O Umbará permanece o de sempre.” Dia desses, um morador do condomínio em frente dos Zanon abriu o portão e puxou conversa com o veterano. Pelo que se sabe, adorou a vizinhança. Tutti buona gente.
Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/um-sonho-feito-de-barro-b9oheffahfcbnw2gsoqxuliku

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