sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Curitiba: terra de paz para o recomeço



Brunno Covello/Gazeta do Povo
Brunno Covello/Gazeta do Povo / A família Al-Lahham veio da Síria para Curitiba em busca de uma nova vida. Eles carregam a esperança de construir no Brasil um futuro longe dos horrores da guerraA família Al-Lahham veio da Síria para Curitiba em busca de uma nova vida. Eles carregam a esperança de construir no Brasil um futuro longe dos horrores da guerra

Economia estável e segurança atraem mais migrantes refugiados ao Paraná, mas falta estrutura para ampará-los de forma adequada

Publicado em 16/02/2014 | 

Na sala do apartamento alugado no Alto da XV, em Curitiba, a família Al-Lahham se sente segura. Os bombardeios e rajadas de metralhadoras ficaram para trás, na Síria. O país em que nasceram está devastado por uma guerra civil que dura mais de três anos. A chegada ao Brasil em uma data simbólica – 25 de dezembro – encheu de esperança a matriarca Kamilia Akminasi, de 54 anos, e seus cinco filhos. Querem construir um futuro por aqui, longe dos horrores da guerra. Os semblantes suaves de quem agora está em paz só se cerram quando se lembram do conflito no Oriente.
Falta de dados emperra políticas públicas
A elaboração de uma rede de amparo aos migrantes, especialmente aos refugiados, esbarra na falta de dados oficiais. O que se tem são apenas estimativas feitas pelas entidades que atuam no atendimentos dos estrangeiros que chegam no estado à procura de refúgio.
A OAB calcula que o Paraná tenha hoje cerca de 50 mil estrangeiros vivendo legalmente – 19 mil em Curitiba. Outros cinco mil – principalmente haitianos e andinos – devem estar irregularmente no estado. Nem mesmo o Departamento da Polícia Federal no Paraná soube dizer quantos são os imigrantes e quantos são refugiados.
As entidades apontam que as rotas de imigração se intensificaram no estado a partir de 2012, principalmente por causa da economia estável e da segurança. Um passo importante deve ser dado neste ano, quando o Comitê Estadual para Migrantes e Refugiados espera criar um banco de dados para monitorar os fluxos de estrangeiros.
“Os dados ajudariam a forçar as instituições a se moverem para estabelecer políticas públicas voltadas aos migrantes, principalmente aos refugiados”, diz a vice-presidente da Casa Latino-Americana, Ivete Maria Caribé da Rocha.
5.050 pedidos de vistos de refugiados, de 69 países, estavam pendentes no Ministério da Justiça até novembro de 2013. Em quatro anos, o Brasil emitiu 7,1 mil autorizações para concessão de visto permanente “em caráter humanitário”.
“No começo, eu achava que a guerra ia terminar em breve. Os meses foram se passando e as batalhas continuavam. Eu passei a achar que guerreiros e bombas brotariam do chão e nos matariam”, conta Kamilia. “A Síria era o país mais tranquilo do mundo. Agora, é o pior lugar para se viver”, lamenta o médico Feras Al-Lahham, de 32 anos, o filho mais velho.
Principalmente por causa da segurança, Curitiba tem sido, desde o ano passado, um dos refúgios escolhidos por sírios que abandonam o país de origem para fugir do conflito. A Comissão de Direitos dos Migrantes e Refugiados da Ordem dos Advogados do Brasil estima que 21 deles tenham chegado à capital paranaense em 2013.
Mas a cidade não tem recebido refugiados somente do Oriente. Há um fluxo migratório intenso de africanos (principalmente da Nigéria, Congo e Guiné-Bissau) e da América Latina (haitianos, venezuelanos, colombianos, equatorianos e bolivianos), muitas vezes atraídos pelo sonho de um emprego.
Apesar da esperança com que os migrantes desembarcam, a falta de estrutura governamental para ampará-los e inseri-los na comunidade e no mercado de trabalho impõe um entrave. No Paraná, não há nem sequer uma casa de acolhimento. Não fossem entidades como OAB, Casa Latino-Americana (Casla) e Pastoral do Migrante, eles estariam à deriva.
A língua portuguesa também é uma barreira. Pouquíssimos chegam ao Brasil sabendo falar o idioma local, que é aprendido no dia a dia a partir do esforço dos próprios migrantes. “Infelizmente ainda não existe uma política pública voltada aos migrantes, não só no Paraná. O próprio Estatuto do Migrante é ultrapassado: tem mais um caráter de segurança nacional que um escopo de direitos humanos”, diz a advogada Nádia Floriani, presidente da comissão da OAB-PR.
Colaborou: Simon Benoit-Guyod
LONGE DA GUERRA: “Me considero uma sobrevivente”, diz refugiada síria
Até março de 2011, Damasco era considerada uma cidade tranquila e multicultural. Mas os confrontos entre grupos dissidentes e tropas leais ao presidente Bashar al-Assad trouxeram pânico e tensão aos moradores. Desde que os bombardeios começaram, a família Al-Lahham não pôde dormir uma noite sequer. Não se acostumavam com as explosões e saraivadas de balas.
“Toda noite tinha batalhas e ouvia-se os mísseis explodindo perto. É impossível dormir com a sensação de que você pode ser atingido a qualquer momento”, conta Feras Al-Lahham. “Sempre que tínhamos que sair de casa, rezávamos para poder voltar em segurança”, completa o irmão dele, Ahmed, de 31 anos, dentista e professor universitário.
Mesmo com as orações, dois membros dos Al-Lahham tiveram contato direto com os atentados. A empresa em que a farmacêutica Yusra Al-Lahham, de 29 anos, trabalhava foi alvo de mísseis por duas vezes. Também quase foi atingida por ataques nas ruas. Teve de fugir às pressas, entre escombros. “Eu me considero uma sobrevivente”, resume. A escola onde a caçula da família, Nour, de 17 anos, estudava foi bombardeada dezenas de vezes. “Por causa disso, a gente tinha aula um dia sim, outro não. Vários colegas tiveram parentes mortos. Era muito triste”, desabafa a garota, que hoje se diverte tocando violão em casa.
Com o acirramento do confronto, a vida em Damasco foi ficando mais tensa. Exausta, a família decidiu deixar a Síria. Os seis se juntaram aos mais de dois milhões que já abandonaram o país. Assim como outros 66 sírios que pediram refúgio ao Brasil, os Al-Lahham viram aqui uma oportunidade de recomeço. Venderam o que puderam e partiram para cá em uma viagem complicada, cujos detalhes preferem manter em sigilo, por questões de segurança. Em paz, tentam construir vida nova.
Bebê garante permanência de equatorianos
Julian Matheus tem quase três anos. Filho de imigrantes equatorianos, ele ainda é muito jovem para ter consciência de que foi o responsável pela permanência da família no Brasil. O menino nasceu em Curitiba, quando a Polícia Federal já havia emitido a ordem para que a família fosse deportada. Com o nascimento do menino em solo brasileiro, toda a família conquistou o direito de ficar no país.
Entretanto, o processo não foi tão simples. Os pais de Matheus, o músico Julian Remache, de 33 anos, e a artesã Maria Rebeca Aria, de 34 anos, vieram da pequena cidade de Otavalo, em 2009. Após entrarem no Brasil, permaneceram ilegalmente em Curitiba, como centenas de imigrantes latinos.
Em 2010, Maria Rebeca engravidou e passou a sentir na pele as consequências da clandestinidade. Sem documentos, ela não conseguia atendimento em hospitais e postos de saúde, mesmo com uma barriga de oito meses. “Teve uma noite em que eu estava sentindo muitas dores. Me mandaram de volta para casa. Pensei que fosse acontecer algo pior.”
O atendimento só foi garantido depois que a OAB e a Casla intercederam pela imigrante. Por determinação da Justiça, unidades de saúde fo­ram obrigadas a atender a equatoriana.
A família conseguiu se estabelecer, mas não abandonou as origens. Maria Rebeca e as filhas Eidi, de 10 anos, e Alis­son, de 12 anos, ostentam roupas típicas, com os coloridos bordados equatorianos. O patriarca Julian se apresenta em praças, tocando músicas andinas. Além disso, a família abriu uma pequena confecção. “Meus pais me ensinaram a valorizar minha cul­tura. Gostamos muito do Brasil, mas nunca vamos nos esquecer de quem somos”, diz a equatoriana.
Sírios querem validar diplomas para recomeçar a vida
Os Al-Lahham chegaram ao Brasil com a disposição de quem quer fincar raízes por aqui. Apesar disso, têm esbarrado na burocracia para encontrar emprego. À exceção da caçula – que é estudante – todos os outros integrantes do clã têm formação universitária, mas aguardam a validação dos diplomas para poderem exercer suas profissões.
“No Consulado [Sírio] falaram que ia ser fácil validar, mas tudo tem sido demorado. Queremos trabalhar e produzir aqui, em nossas áreas”, disse Feras Al-Lahham, médico, que faz um apelo às autoridades brasileiras. Por enquanto, eles vivem de uma reserva financeira acumulada ainda em Damasco.
As esperanças são mais fortes em relação a Saad, de 27 anos, engenheiro de petróleo. Ele espera encontrar menos burocracia em sua área para começar a trabalhar. O Ministério da Justiça foi procurado, mas não informou se há algum auxílio para agilizar a validação de diplomas de refugiados.
Rotina
Enquanto esperam uma oportunidade de emprego, os Al-Lahham permanecem unidos. Muçulmanos, foram uma vez à mesquita, no bairro São Francisco. Também conheceram o Jardim Botânico. Nas noites, os irmãos se revezam ao violão, acompanhando o dedilhado da caçula Noar.
Simpáticos, já arrancam acenos do porteiro e de vizinhos. Arriscam algumas palavras em português, mas ainda penam para se comunicar: lançam mão de gestos e até do Google Tradutor. Duas vezes por semana, vão ter aulas gratuitas de português, conseguidas por um amigo. “Cada dia é um amigo novo. O povo é caloroso, então as dificuldades se amenizam”, resumiu Saad.
*Quem puder ajudar pode entrar em contato com a família pelos e-mails: saad.allaham@hotmail.com,dr_lahham@hotmail.com dr.odf@hotmail.com

Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1447625










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