Protagonismo e transformações culturais marcam a presença africana no Estado
Em 1940, o cenário rural da Ilha de Santa Catarina guardava sinais da presença das atividades agrícolas que marcaram a economia do litoral no século 19 e dos africanos e afrodescendentes
Comunidade de afrodescendentes no Rio Vermelho, área rural de Florianópolis, na década de 1940Foto: EDLA VON WANGENHEIM / ACERVO DE ALDO VON WANGENHEIM
Santa Catarina no Atlântico Negro
Por Beatriz Gallotti Mamigonian *
A foto da família negra no interior da Ilha de Santa Catarina surpreende qualquer um. Tirada por Edla von Wangenheim no Rio Vermelho, provavelmente no início da década de 1940, mostra uma mulher com três crianças diante de sua casa de pau a pique e uma vizinha, aparentemente mais velha, diante da segunda casa, onde outra pessoa aparece na janela.
As casas ficam na beira da estrada de areia e os paus fi ncados no chão delimitam o que pode ser a horta da primeira casa. Há bananeiras nos fundos, e provavelmente roças por perto. Talvez a construção de telhado rebaixado ao lado da primeira casa fosse um engenho.
Na década de 1940, o cenário rural da Ilha de Santa Catarina guardava sinais das atividades agrícolas que haviam marcado a economia do litoral catarinense no século 19. O cultivo de alimentos voltado para o mercado interno integrou a economia de Santa Catarina às regiões de agricultura de exportação no final do século 18 e se sustentou ao longo de todo o século 19.
A produção de açúcar, feijão, milho e principalmente farinha de mandioca em pequenas e médias propriedades agrícolas se beneficiou da exploração de mão de obra escravizada africana, trazida através do comércio transatlântico.
À época da Independência do Brasil, na freguesia da Lagoa, 27% dos habitantes eram escravos, talvez metade deles africanos. Eram Angolas, Benguelas, Congos e Moçambiques. Não é difícil inferir que as pessoas retratadas em 1940 descendessem daqueles que lá trabalharam, derrubando os matos, cultivando as roças, manejando os engenhos e transportando a produção.
O acesso à propriedade de terra por parte de ex-escravos foi mais difundido do que até agora imaginávamos. Há inúmeros testamentos de proprietários sem herdeiros naturais que legaram seus bens para aqueles que lhes haviam servido até o fi m da vida. Pode ter sido esse o caso das pessoas da fotografia. Pode ser ainda que tenham adquirido terra com recursos vindos do trabalho remunerado. Não acredite em quem lhe disse que Rui Barbosa queimou todos os documentos da escravidão, pois isso não é verdade.
A história da presença africana em Santa Catarina vem sendo investigada a partir de registros de batismos, óbitos e casamentos; recenseamentos; inventários post-mortem; processos judiciais; legislação; registros policiais; cartas de alforria; registros de compra e venda e de pagamento de impostos; relatos de viajantes estrangeiros; anúncios de jornais; gravuras; pinturas; fotografias, entre outras fontes.
O livro História Diversa: Africanos e Afrodescendentes na Ilha de Santa Catarina contém uma amostra dessa pesquisa recente, que além de dar visibilidade às populações de origem africana em território conhecido como açoriano, estabelece conexões mais amplas e situa Santa Catarina na história do Atlântico negro.
Marcada pela migração forçada de aproximadamente 11 milhões de africanos entre os séculos 15 e 19, a história do Atlântico negro aborda a escravidão e seu legado de discriminação, mas também as lutas dos povos africanos e afro-americanos por autonomia e cidadania plena e contra formas de opressão como o racismo e o colonialismo. Por que motivo a fotografi a das famílias negras no interior da Ilha de Santa Catarina nos surpreende?
Porque desconhecemos a história do protagonismo exercido pela população de origem africana em Santa Catarina durante o período da escravidão e depois da abolição. Sabemos que o poeta Cruz e Sousa nasceu em Desterro, filho de uma liberta, mas pouco investigamos sobre as condições de vida das pessoas "livres de cor" como ele no contexto de transformações na sociedade brasileira depois da Guerra do Paraguai (1865-1870) e da Lei do Ventre Livre (1871).
Sabemos também que muitos ex-escravos foram pequenos proprietários rurais, mas não acompanhamos suas trajetórias nas primeiras décadas da República, quando a falta de dinamismo da economia de abastecimento e a discriminação racial parecem ter prejudicado suas chances de prosperidade.
Sabemos ainda que no início do século 20 havia um grupo atuante de intelectuais negros como Ildefonso Juvenal, Trajano Margarida e mais tarde Antonieta de Barros, mas nos falta investigar que relações sua militância mantinha com as correntes de ideias que ligavam outros intelectuais negros no Atlântico, atores das lutas contra a discriminação, a segregação racial e o colonialismo.
A fotografia nos surpreende, mas não deveria. Apesar das violências e limitações sofridas, africanos e afrodescendentes vivenciaram histórias de adaptação, de transformação cultural, de luta por reconhecimento e respeito e construíram uma Santa Afro Catarina que deveríamos conhecer melhor.
* É doutora em História e professora da Universidade Federal de Santa Catarina. Coordena, com a colega Andréa Delgado, o programa Santa Afro Catarina de educação patrimonial. Organizou, com Joseane Zimmermann Vidal, a coletânea História Diversa: Africanos e Afrodescendentes na Ilha de Santa Catarina publicada em 2013 pela Editora da UFSC.
As casas ficam na beira da estrada de areia e os paus fi ncados no chão delimitam o que pode ser a horta da primeira casa. Há bananeiras nos fundos, e provavelmente roças por perto. Talvez a construção de telhado rebaixado ao lado da primeira casa fosse um engenho.
Na década de 1940, o cenário rural da Ilha de Santa Catarina guardava sinais das atividades agrícolas que haviam marcado a economia do litoral catarinense no século 19. O cultivo de alimentos voltado para o mercado interno integrou a economia de Santa Catarina às regiões de agricultura de exportação no final do século 18 e se sustentou ao longo de todo o século 19.
A produção de açúcar, feijão, milho e principalmente farinha de mandioca em pequenas e médias propriedades agrícolas se beneficiou da exploração de mão de obra escravizada africana, trazida através do comércio transatlântico.
À época da Independência do Brasil, na freguesia da Lagoa, 27% dos habitantes eram escravos, talvez metade deles africanos. Eram Angolas, Benguelas, Congos e Moçambiques. Não é difícil inferir que as pessoas retratadas em 1940 descendessem daqueles que lá trabalharam, derrubando os matos, cultivando as roças, manejando os engenhos e transportando a produção.
O acesso à propriedade de terra por parte de ex-escravos foi mais difundido do que até agora imaginávamos. Há inúmeros testamentos de proprietários sem herdeiros naturais que legaram seus bens para aqueles que lhes haviam servido até o fi m da vida. Pode ter sido esse o caso das pessoas da fotografia. Pode ser ainda que tenham adquirido terra com recursos vindos do trabalho remunerado. Não acredite em quem lhe disse que Rui Barbosa queimou todos os documentos da escravidão, pois isso não é verdade.
A história da presença africana em Santa Catarina vem sendo investigada a partir de registros de batismos, óbitos e casamentos; recenseamentos; inventários post-mortem; processos judiciais; legislação; registros policiais; cartas de alforria; registros de compra e venda e de pagamento de impostos; relatos de viajantes estrangeiros; anúncios de jornais; gravuras; pinturas; fotografias, entre outras fontes.
O livro História Diversa: Africanos e Afrodescendentes na Ilha de Santa Catarina contém uma amostra dessa pesquisa recente, que além de dar visibilidade às populações de origem africana em território conhecido como açoriano, estabelece conexões mais amplas e situa Santa Catarina na história do Atlântico negro.
Marcada pela migração forçada de aproximadamente 11 milhões de africanos entre os séculos 15 e 19, a história do Atlântico negro aborda a escravidão e seu legado de discriminação, mas também as lutas dos povos africanos e afro-americanos por autonomia e cidadania plena e contra formas de opressão como o racismo e o colonialismo. Por que motivo a fotografi a das famílias negras no interior da Ilha de Santa Catarina nos surpreende?
Porque desconhecemos a história do protagonismo exercido pela população de origem africana em Santa Catarina durante o período da escravidão e depois da abolição. Sabemos que o poeta Cruz e Sousa nasceu em Desterro, filho de uma liberta, mas pouco investigamos sobre as condições de vida das pessoas "livres de cor" como ele no contexto de transformações na sociedade brasileira depois da Guerra do Paraguai (1865-1870) e da Lei do Ventre Livre (1871).
Sabemos também que muitos ex-escravos foram pequenos proprietários rurais, mas não acompanhamos suas trajetórias nas primeiras décadas da República, quando a falta de dinamismo da economia de abastecimento e a discriminação racial parecem ter prejudicado suas chances de prosperidade.
Sabemos ainda que no início do século 20 havia um grupo atuante de intelectuais negros como Ildefonso Juvenal, Trajano Margarida e mais tarde Antonieta de Barros, mas nos falta investigar que relações sua militância mantinha com as correntes de ideias que ligavam outros intelectuais negros no Atlântico, atores das lutas contra a discriminação, a segregação racial e o colonialismo.
A fotografia nos surpreende, mas não deveria. Apesar das violências e limitações sofridas, africanos e afrodescendentes vivenciaram histórias de adaptação, de transformação cultural, de luta por reconhecimento e respeito e construíram uma Santa Afro Catarina que deveríamos conhecer melhor.
* É doutora em História e professora da Universidade Federal de Santa Catarina. Coordena, com a colega Andréa Delgado, o programa Santa Afro Catarina de educação patrimonial. Organizou, com Joseane Zimmermann Vidal, a coletânea História Diversa: Africanos e Afrodescendentes na Ilha de Santa Catarina publicada em 2013 pela Editora da UFSC.
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