Haitianos tentam reconstruir a vida no Rio Grande do Sul depois de terremoto
Em busca de oportunidade, mais de 400 caribenhos conseguiram emprego formal no Estado
Dameus se diz bem ambientado aos costumes gaúchos, como o chimarrão Foto: Lidiane Mallmann /
Especial
Vanessa Kannenberg* | Encantado
Uma nova chance de recomeçar. Isso era tudo que o pedreiro Jean Baptiste Dameus buscava após ter perdido a casa e familiares no terremoto que devastou o seu país, em 2010. Ele escolheu o Brasil como destino, assim como pelo menos 9 mil haitianos, para reconstruir a vida. O desastre no Haiti começa a modificar o perfil dos operários buscados pelos recrutadores e até as comunidades gaúchas nas quais centenas de imigrantes do país caribenho passaram a viver desde o ano passado. O primeiro grupo, de 14 trabalhadores, desembarcou no aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, em janeiro de 2012, trazido pela indústria de massas Romena, de Gravataí.
A iniciativa chamou a atenção de outros empresários, que passaram a ver nos haitianos uma solução para a falta de mão de obra. Após viajar por três meses, Dameus chegou ao Acre. Na cidade de Brasileia, passou fome, sofreu com a falta de abrigo, mas não desistiu. Depois de alguns dias, recebeu a visita de recrutadores e foi um entre 416 haitianos que ganharam carteira de trabalho e conseguiram emprego no Rio Grande do Sul.
Dameus faz parte da primeira leva de 50 haitianos contratados em setembro de 2012 pela Dália Alimentos, com sede em Encantado. Atualmente, são mais de 120 haitianos vivendo no município de 20,5 mil habitantes. A empresa fez um segundo recrutamento no início desse ano. O salário equivale ao piso da categoria, de R$ 830,50. A Dália ainda oferece seis meses de estada em um hotel da cidade, três refeições diárias no refeitório da empresa e transporte de ida e volta.
Além das condições de trabalho oferecidas, houve uma onda de solidariedade. Por mobilização da comunidade, foram recolhidas roupas e moradores se dirigiram até a fábrica para conhecê-los. A paróquia também oferece gratuitamente aulas de português semanais, já que a maioria dos imigrantes fala apenas o crioulo (língua nativa do Haiti).
Com português quase fluente, Dameus e outros três amigos alugaram um apartamento no centro da cidade O local tem poucos móveis — o que existe foi arrecadado pela paróquia.
— Sou muito feliz. Assim que juntar um pouco mais de dinheiro, quero trazer minha família para morar aqui — afirma o pedreiro.
Adaptado, Dameus conta que um vizinho o presenteou com cuia e bomba e o ensinou a fazer chimarrão:
— Adoro sentar no final do dia em frente à TV e tomar chimarrão.
Haitianos que moram em Marau também pegaram o gosto pelo mate e já se dizem adaptados ao Rio Grande do Sul, apesar do frio no inverno. Os caribenhos começaram a chegar ao município de 36,3 mil habitantes no início do ano passado. Os pioneiros foram acolhidos em uma empresa de estruturas metálicas. Para ajudar na comunicação com os empregadores, o frei brasileiro Carlos Rockenbach trabalhou como intérprete dos haitianos:
— Estavam perdidos, se comunicavam por gestos com os chefes. Passei alguns dias ajudando eles.
Quando o frei haitiano St-Ange Bastien, 35 anos, desembarcou em Marau, em abril de 2012, os conterrâneos puderam contar com mais um intérprete. Desde então, outros grupos de haitianos se instalaram na cidade, para trabalhar nas indústrias ou na construção civil. Mesmo com a barreira da língua, o frei conta que a maior dificuldade dos conterrâneos é ficar longe da família. Muitos deixaram mulher e filhos no Haiti para trabalhar no Brasil.
É o caso de Oscar Scheli, 25 anos, que está há um ano em Marau. Ele trabalha em uma indústria e divide um pequeno apartamento térreo com outros seis haitianos. Ex-morador de Porto Príncipe, diz que sente muita falta da mulher e do filho de dois anos:
— Eles estão há mais de seis meses esperando visto para vir ao Brasil. Quero que venham morar comigo.
Solteiro, o colega St-Patrick Adido, 24 anos, há quatro meses em Marau, afirma ter um problema maior:
— Difícil mesmo é enfrentar o frio.
*Colaborou Fernanda da Costa (Marau)
Dameus e três amigos alugaram apartamento em Encantado
Foto: Lidiane Mallmann, Especial
Empresário faz elogios a estrangeiros
Um levantamento da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, feito no fim do ano passado, confirmou que, pelo menos, 416 haitianos foram empregados em fábricas, transportadoras, construtoras, indústria alimentícia e outros setores gaúchos. No entanto, o número deve ser maior, porque, ao receber a carteira de trabalho e documentos brasileiros, os estrangeiros podem circular livremente pelo país. Dados da Polícia Federal indicam que, até maio, pelo menos 676 haitianos chegaram ao Rio Grande do Sul.
No Estado, muitas empresas evitam falar do assunto. Nas ruas de Encantado, moradores deram indícios das causas do receio dos empresários.
— Acho muito legal ajudar esse povo sofrido, mas tenho medo de que vão tirar o emprego dos meus netos — diz a aposentada Lucy Tarter, 82 anos.
Já a comerciante Marta Villa, 46 anos, afirma ter ouvido boatos de demissões de antigos funcionários em favor dos estrangeiros. O diretor-administrativo da Massas Romena, André Rosa, afirma que a produção engrenou após a contratação dos haitianos:
— Havia muitas vagas abertas e eles as ocuparam muito bem. São extremamente pontuais, educados e dedicados.
A experiência motivou a empresa de Gravataí a contratar mais trabalhadores — hoje, são 31 haitianos. Entre eles, quatro operários que trabalhavam em condições irregulares em Osório.
Saudade de casa e baixa remuneração
Depois de visitar trabalhadores haitianos em mais de 10 cidades gaúchas, o pesquisador do Cibai Migrações Jandir Zamberlan avalia que os imigrantes têm boa qualidade de vida, mas enfrentam dois problemas: a saudade da família e a baixa remuneração — salários geralmente inferiores a R$ 1 mil:
— O referencial deles de imigração era os Estados Unidos. Aqui é diferente, há mais solidariedade e acolhimento, mas na questão financeira, se sentem frustrados. Não imaginavam que seria esse valor que o mercado pagaria para eles — afirma Zamberlan.
Entre as dificuldades dos estrangeiros, segundo o pesquisador, está a compreensão da dinâmica econômica brasileira e das leis trabalhistas. De acordo com a presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Alimentação de Encantado, Maria Inês Lorenzi Vian, os trabalhadores custaram a decifrar os descontos do contracheque e estranharam que não se trabalhava nos feriados.
— Eles não querem nada que desconte do salário — afirma Maria.
Além disso, as dificuldades também passam pela convivência. Como o ponto inicial de comunicação é o idioma, a maioria dos haitianos acaba convivendo apenas entre eles.
— Eles falam entre si muito alto e em crioulo, que ninguém aqui entende. Já vi gente que achava que eles estavam brigando, mas a gente que conhece sabe que é o normal deles — diz Maria.
Boa imagem do país ajuda na escolha
Os haitianos têm bons motivos para escolher o Brasil como destino, além do crescimento econômico e do avanço na qualidade de vida no país. De acordo com a coordenadora do curso de Relações Internacionais da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Mariana Dalalana Corbellini, um dos propulsores é a percepção positiva sobre o Brasil, principalmente devido à atuação dos militares em missões de paz da Organização da Nações Unidos (ONU). No entanto, considera que, com o aumento da entrada de estrangeiros, o país precisa repensar sua política migratória.
— Uma das dificuldades que precisam ser consideradas diz respeito justamente à integração desses estrangeiros à sociedade e à economia brasileira, mesmo aqueles que chegam aqui com diploma de ensino superior encontram obstáculos para atuar em sua área de formação — afirma Mariana.
No auge da entrada ilegal de haitianos no Brasil, em janeiro de 2012, o governo impôs limite de cem vistos por mês, na tentativa de conter a entrada irregular, geralmente promovida por coiotes. Ainda assim, os haitianos continuaram chegando pelas fronteiras do norte do país.
O Acre chegou a decretar estado de emergência social em dois municípios. No fim de abril, o governo brasileiro extinguiu o limite de concessão de vistos e ampliou os postos de emissão do documento. A situação no Acre foi considerada "estabilizada".
Veja onde estão os 416 trabalhadores haitianos registrados
O êxodo
* Com mais de 10 milhões de habitantes, o Haiti é o país mais pobre da América Latina. Cerca de 60% da população é subnutrida e mais da metade vive abaixo da linha de pobreza (menos de US$ 1,25 dólar por dia).
* Em janeiro de 2010, um terremoto provocou destruição e matou mais de 220 mil pessoas. O desastre forçou a saída de haitianos. Milhares se refugiaram no Brasil.
A iniciativa chamou a atenção de outros empresários, que passaram a ver nos haitianos uma solução para a falta de mão de obra. Após viajar por três meses, Dameus chegou ao Acre. Na cidade de Brasileia, passou fome, sofreu com a falta de abrigo, mas não desistiu. Depois de alguns dias, recebeu a visita de recrutadores e foi um entre 416 haitianos que ganharam carteira de trabalho e conseguiram emprego no Rio Grande do Sul.
Dameus faz parte da primeira leva de 50 haitianos contratados em setembro de 2012 pela Dália Alimentos, com sede em Encantado. Atualmente, são mais de 120 haitianos vivendo no município de 20,5 mil habitantes. A empresa fez um segundo recrutamento no início desse ano. O salário equivale ao piso da categoria, de R$ 830,50. A Dália ainda oferece seis meses de estada em um hotel da cidade, três refeições diárias no refeitório da empresa e transporte de ida e volta.
Além das condições de trabalho oferecidas, houve uma onda de solidariedade. Por mobilização da comunidade, foram recolhidas roupas e moradores se dirigiram até a fábrica para conhecê-los. A paróquia também oferece gratuitamente aulas de português semanais, já que a maioria dos imigrantes fala apenas o crioulo (língua nativa do Haiti).
Com português quase fluente, Dameus e outros três amigos alugaram um apartamento no centro da cidade O local tem poucos móveis — o que existe foi arrecadado pela paróquia.
— Sou muito feliz. Assim que juntar um pouco mais de dinheiro, quero trazer minha família para morar aqui — afirma o pedreiro.
Adaptado, Dameus conta que um vizinho o presenteou com cuia e bomba e o ensinou a fazer chimarrão:
— Adoro sentar no final do dia em frente à TV e tomar chimarrão.
Haitianos que moram em Marau também pegaram o gosto pelo mate e já se dizem adaptados ao Rio Grande do Sul, apesar do frio no inverno. Os caribenhos começaram a chegar ao município de 36,3 mil habitantes no início do ano passado. Os pioneiros foram acolhidos em uma empresa de estruturas metálicas. Para ajudar na comunicação com os empregadores, o frei brasileiro Carlos Rockenbach trabalhou como intérprete dos haitianos:
— Estavam perdidos, se comunicavam por gestos com os chefes. Passei alguns dias ajudando eles.
Quando o frei haitiano St-Ange Bastien, 35 anos, desembarcou em Marau, em abril de 2012, os conterrâneos puderam contar com mais um intérprete. Desde então, outros grupos de haitianos se instalaram na cidade, para trabalhar nas indústrias ou na construção civil. Mesmo com a barreira da língua, o frei conta que a maior dificuldade dos conterrâneos é ficar longe da família. Muitos deixaram mulher e filhos no Haiti para trabalhar no Brasil.
É o caso de Oscar Scheli, 25 anos, que está há um ano em Marau. Ele trabalha em uma indústria e divide um pequeno apartamento térreo com outros seis haitianos. Ex-morador de Porto Príncipe, diz que sente muita falta da mulher e do filho de dois anos:
— Eles estão há mais de seis meses esperando visto para vir ao Brasil. Quero que venham morar comigo.
Solteiro, o colega St-Patrick Adido, 24 anos, há quatro meses em Marau, afirma ter um problema maior:
— Difícil mesmo é enfrentar o frio.
*Colaborou Fernanda da Costa (Marau)
Dameus e três amigos alugaram apartamento em Encantado
Foto: Lidiane Mallmann, Especial
Empresário faz elogios a estrangeiros
Um levantamento da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, feito no fim do ano passado, confirmou que, pelo menos, 416 haitianos foram empregados em fábricas, transportadoras, construtoras, indústria alimentícia e outros setores gaúchos. No entanto, o número deve ser maior, porque, ao receber a carteira de trabalho e documentos brasileiros, os estrangeiros podem circular livremente pelo país. Dados da Polícia Federal indicam que, até maio, pelo menos 676 haitianos chegaram ao Rio Grande do Sul.
No Estado, muitas empresas evitam falar do assunto. Nas ruas de Encantado, moradores deram indícios das causas do receio dos empresários.
— Acho muito legal ajudar esse povo sofrido, mas tenho medo de que vão tirar o emprego dos meus netos — diz a aposentada Lucy Tarter, 82 anos.
Já a comerciante Marta Villa, 46 anos, afirma ter ouvido boatos de demissões de antigos funcionários em favor dos estrangeiros. O diretor-administrativo da Massas Romena, André Rosa, afirma que a produção engrenou após a contratação dos haitianos:
— Havia muitas vagas abertas e eles as ocuparam muito bem. São extremamente pontuais, educados e dedicados.
A experiência motivou a empresa de Gravataí a contratar mais trabalhadores — hoje, são 31 haitianos. Entre eles, quatro operários que trabalhavam em condições irregulares em Osório.
Saudade de casa e baixa remuneração
Depois de visitar trabalhadores haitianos em mais de 10 cidades gaúchas, o pesquisador do Cibai Migrações Jandir Zamberlan avalia que os imigrantes têm boa qualidade de vida, mas enfrentam dois problemas: a saudade da família e a baixa remuneração — salários geralmente inferiores a R$ 1 mil:
— O referencial deles de imigração era os Estados Unidos. Aqui é diferente, há mais solidariedade e acolhimento, mas na questão financeira, se sentem frustrados. Não imaginavam que seria esse valor que o mercado pagaria para eles — afirma Zamberlan.
Entre as dificuldades dos estrangeiros, segundo o pesquisador, está a compreensão da dinâmica econômica brasileira e das leis trabalhistas. De acordo com a presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Alimentação de Encantado, Maria Inês Lorenzi Vian, os trabalhadores custaram a decifrar os descontos do contracheque e estranharam que não se trabalhava nos feriados.
— Eles não querem nada que desconte do salário — afirma Maria.
Além disso, as dificuldades também passam pela convivência. Como o ponto inicial de comunicação é o idioma, a maioria dos haitianos acaba convivendo apenas entre eles.
— Eles falam entre si muito alto e em crioulo, que ninguém aqui entende. Já vi gente que achava que eles estavam brigando, mas a gente que conhece sabe que é o normal deles — diz Maria.
Boa imagem do país ajuda na escolha
Os haitianos têm bons motivos para escolher o Brasil como destino, além do crescimento econômico e do avanço na qualidade de vida no país. De acordo com a coordenadora do curso de Relações Internacionais da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Mariana Dalalana Corbellini, um dos propulsores é a percepção positiva sobre o Brasil, principalmente devido à atuação dos militares em missões de paz da Organização da Nações Unidos (ONU). No entanto, considera que, com o aumento da entrada de estrangeiros, o país precisa repensar sua política migratória.
— Uma das dificuldades que precisam ser consideradas diz respeito justamente à integração desses estrangeiros à sociedade e à economia brasileira, mesmo aqueles que chegam aqui com diploma de ensino superior encontram obstáculos para atuar em sua área de formação — afirma Mariana.
No auge da entrada ilegal de haitianos no Brasil, em janeiro de 2012, o governo impôs limite de cem vistos por mês, na tentativa de conter a entrada irregular, geralmente promovida por coiotes. Ainda assim, os haitianos continuaram chegando pelas fronteiras do norte do país.
O Acre chegou a decretar estado de emergência social em dois municípios. No fim de abril, o governo brasileiro extinguiu o limite de concessão de vistos e ampliou os postos de emissão do documento. A situação no Acre foi considerada "estabilizada".
Veja onde estão os 416 trabalhadores haitianos registrados
O êxodo
* Com mais de 10 milhões de habitantes, o Haiti é o país mais pobre da América Latina. Cerca de 60% da população é subnutrida e mais da metade vive abaixo da linha de pobreza (menos de US$ 1,25 dólar por dia).
* Em janeiro de 2010, um terremoto provocou destruição e matou mais de 220 mil pessoas. O desastre forçou a saída de haitianos. Milhares se refugiaram no Brasil.
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